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sábado, 1 de setembro de 2018

Manifesto de economistas de oposição ao PT (2003) - Paulo Roberto de Almeida

No primeiro semestre de 2003, os opositores de esquerda à política econômica do PT não esmoreceram, e continuaram publicando textos e manifestos criticando a política econômica, que no entanto vinha tendo sucesso no sentido de estabilizar a economia e preservar a confiança dos investidores. Novamente em junho de 2003, eu me posicionava contra um desses manifestos, como revelado no trabalho 1061, abaixo registrado:

1061. “Um manifesto econômico de ‘inversão’: Análise de um documento político com pouca consistência econômica”, Washington, 13-14 junho 2003, 20 p. Análise do “manifestos dos economistas”, de oposição à atual política econômica do governo, fazendo a crítica da postura totalmente política e nada econômica assumida nesse documento. Distribuído de forma reservada. 

A íntegra do manifesto figura ao final, para quem desejar lê-lo em primeiro lugar.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 1/09/2018


 Um manifesto econômico de “inversão”
Análise de um documento político com pouca consistência econômica

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 13-14 de junho de 2003

Um grupo de aproximadamente duas centenas de economistas brasileiros identificados com as causas da “antiga” oposição econômica ao neoliberalismo e às políticas econômicas do ancien régime “malanista”, revoltado com o que a “velha oposição”, consubstanciada no PT, vem fazendo em termos de política econômica uma vez chegada ao poder e convertida em “nova situação”, acaba de propor, na sexta-feira 13 de junho de 2003, uma “inversão” completa dos princípios e diretrizes que sustentam a política econômica posta em prática pelo PT no poder.
Segundo resumo efetuado pela Folha de São Paulo do mesmo dia, esse manifesto, em forma de carta a ser dirigida ao presidente da República, propõe, “entre outras coisas, controle de capitais externos, do câmbio, redução do superávit primário (acertado em 4,25% do PIB com o Fundo Monetário Internacional), corte na taxa de 26,5% de juros ao ano e investimentos em infraestrutura, além de dizer que a atual política leva o Brasil a um ‘beco sem saída de estagnação e desemprego’”.
Como acredito que o manifesto peca por excesso de política e insuficiência de economia, proponho-me examiná-lo e discuti-lo nos parágrafos seguintes apenas com o fito de registrar minha própria análise dessa peça representativa do economismo acadêmico. Esclareço que não tenho nenhuma intenção de defender quem quer que seja, mas estou tão simplesmente animado do objetivo expresso e declarado de preservar um pouco de racionalidade econômica (e política), numa situação conjuntural que ameaça descambar rapidamente para o maniqueísmo tradicional que sempre caracterizou o debate econômico no Brasil. Procederei segundo minha metodologia costumeira nesses casos, transcrevendo trechos sucessivos do documento em questão, agregando então meus próprios comentários.
Não creio sinceramente ser do interesse nacional, ou do próprio governo e sua equipe econômica (aos quais não sirvo diretamente, sendo apenas um funcionário público federal da carreira diplomática), ver cristalizar-se no País uma nova dicotomia alimentada por conceitos econômicos pouco claros e expressa em linguagem política, quando estávamos aparentemente assistindo à emergência (coisa rara no Brasil) de um quase consenso em torno de políticas econômicas responsáveis e animadas com a perspectiva de atingir o crescimento econômico com estabilidade monetária e um certo sentido de justiça social. Com menos de seis meses do início do novo governo, não parece claro que as medidas de política econômica postas em prática pela equipe atual venham criando um impasse considerável no processo de desenvolvimento, tanto porque não se completou um ciclo de reação às medidas introduzidas, suficiente em todo caso para uma avaliação ponderada de sua performance relativa.

O “manifesto” e sua leitura comentada por Paulo Roberto de Almeida (PRA:)

1) "O Brasil está sendo levado a um beco sem saída de estagnação e desemprego por uma política econômica que capitulou à insensatez do totalitarismo de 'mercado'.
(PRA:) Trata-se de um julgamento peremptório e aparentemente definitivo de uma situação que não chegou a completar seis meses de vida. Como regra de princípio, ciclos econômicos costumam apresentar uma temporalidade maior, e de toda forma não conseguem ser descritos através de conceitos tão drásticos e imprecisos como “totalitarismo de ‘mercado’”.
Pergunto: por que o uso do conceito de “totalitarismo” e por que a expressão “mercado” vem entre aspas? A utilização de uma noção associada, na ciência política, a regimes totalitários (isto é, despóticos e concentradores de um poder absoluto) não tem paralelo e não pode encontrar nenhuma correspondência com a situação política e econômica atual do Brasil. A qualificação, por outro lado, do conceito de mercado parece feita com a evidente intenção de diminuir suas modestas virtudes normativas e regulatórias, emprestando-lhe um certo caráter de bizarrice que não deveria normalmente freqüentar o discurso de economistas supostamente versados nos temas fundamentais de sua profissão. 
Disto concluo: apenas a intenção de chocar e de causar um certo impacto político – e supostamente um sentimento de revolta – parece animar a ouverture triomphaledo manifesto proposto por esses economistas.


2) Desde os anos 90 o debate sobre alternativas de desenvolvimento foi virtualmente interditado com o recurso ao dogma de que o ‘mercado’, sábio e virtuoso, se deixado a si mesmo promoverá a prosperidade coletiva. Passado mais de um decênio em que o experimento neoliberal vem sendo praticado no Brasil, é hora de um balanço, e de um questionamento: até quando o crescimento com redistribuição de renda será negado à sociedade brasileira? 
(PRA:) Não tem o mínimo suporte na realidade a afirmação de que algum ou todo debate sobre alternativas de desenvolvimento tenha sido “interditado” em nosso País nos últimos 13 anos. Não se sabe bem por quem, em que circunstâncias e com que autoridade moral, econômica ou “policial” essa censura e essa proibição tenham ocorrido. Bastaria, por exemplo, consultar os currículos completos dos autores do manifesto, todos eles ativos praticantes desses debates nos últimos 13 (e mais) anos, para comprovar a falsidade dessa acusação totalmente descabida e certamente pouca digna de um País que vive em completa democracia desde pelo menos 1985.
Mesmo antes dessa data, aliás, o debate, vivaz, loquaz, constante e mesmo estridente, vinha ocorrendo em circunstâncias totalmente normais para a vida acadêmica e mesmo para os padrões algo restritos da democracia tutelada em que vivemos entre os anos 1964 a 1985. Uma consulta aos índices de revistas especializadas como a Revista de Economia Política, de “tribunas” políticas da (então) oposição como Teoria e Debate, ou mesmo de órgãos “oficiais” como Conjuntura Econômicaou a Revista Brasileira de Economia, revela facilmente o quanto essa afirmação é descabida, despropositada, injusta ou simplesmente falsa. Em várias ocasiões e em todas as circunstâncias esse debate ocorreu, sem precisar referir-me aqui às páginas dos jornais diários e revistas de opinião e de informação, onde ele esteve constantemente presente. Tampouco preciso referir-me aos cursos de economia, aos incontáveis seminários realizados ao longo desses anos, a reuniões de sociedades científicas gerais como a SBPC ou especializadas como os encontros nacionais da ANPEC, para constatar que este debate esteve sempre vivo e se deu nas circunstâncias mais abertas possíveis. 
Isto pela suposta falta de liberdade ou presumida “interdição” desse debate. Mas os autores do manifesto são mais explícitos na condenação de algo que nunca existiu. Eles também acham que os “autores” (totalmente desconhecidos) dessa “proibição” valeram-se do “recurso ao dogma de que o 'mercado', sábio e virtuoso, se deixado a si mesmo promoverá a prosperidade coletiva”. Uma afirmação com tal grau de assertividade e clareza como essa mereceria, pelo menos, que se trouxessem as provas materiais desse “dogma” e de seu poder de convencimento, segundo eles forte a ponto de cercear o debate econômico sobre alternativas (que supostamente eles, economistas da então oposição teriam em torno) do desenvolvimento. Não seria difícil de encontrar essas provas: elas só poderiam estar nos discursos, entrevistas e escritos de FHC (I e II), Pedro Malan, Gustavo Franco e Armínio Fraga, reconhecidamente os principais arquitetos do “dogma” denunciado. Para que a acusação não possa ser tachada de irresponsável e inconsistente os autores do manifesto deveriam comparecer com as provas em mãos, como aliás se exige de qualquer bom trabalho acadêmico e artigo científico (mas talvez não dos manifestos políticos).
Dito isto, eu também acho que, encerrada a época do “malanismo econômico” (que para eles já estava provavelmente em vigor desde a era Collor), está mais do que em tempo de se fazer um balanço  do “experimento neoliberal” que, segundo eles, foi praticado no Brasil nesses anos passados. Como o debate não está interditado, como as tribunas dos jornais são livres aos que a eles têm acesso (e são muitos os autores do manifesto que publicam regularmente nos veículos diários) e como também as páginas das revistas especializadas brasileiras estão abertas a contribuições consistentes nessa vertente de “debate econômico sobre políticas alternativas”, espera-se apenas que os autores apresentem suas idéias já publicadas ou a publicar sobre o tema por eles mesmos identificado. De minha parte, já ofereci um primeiro balanço da “era neoliberal” no Brasil em capítulo apropriadamente intitulado “A indiscutível leveza do neoliberalismo no Brasil: avaliação da era neoliberal”, em meu livro A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política no Brasil (São Paulo: Códex, 2003), tendo concluído que fomos muito pouco liberais e que os verdadeiros testes do neoliberalismo no Brasil estão na verdade mais situados em direção do futuro do que na recuperação do passado. 
Também penso, como os autores do manifesto, de que é chegada a hora de se questionar “até quando o crescimento com redistribuição de renda será negado à sociedade brasileira?” Para isso, considero entretanto que a melhor fórmula seria identificar e apontar as políticas suscetíveis de produzir tão virtuosos resultados econômicos e sociais, não interromper o debate na negação do que vem sendo feito, na recusa “disso que está aí”, sem a apresentação concomitante de propostas credíveis e factíveis de medidas e políticas capazes de produzir os resultados esperados por eles. Sem isso, estaríamos apenas no terreno da crítica política, onde reconheço os dotes singulares (e plurais) dos autores do manifesto.


3) “A interdição do debate econômico nos últimos anos pretendeu desqualificar como anacrônica toda crítica a qualquer aspecto da política econômica. Hoje, repetindo o que aconteceu na última década, a sociedade vem sendo privada de participar ou acompanhar um debate genuíno sobre medidas de política econômica, boa parte das quais decidida de comum acordo com o FMI à revelia de qualquer instância democrática, inclusive do Congresso Nacional.
(PRA:) Os autores do manifesto incorrem, mais uma vez, na acusação sem fundamento, falando de uma “interdição” que não existiu (e não existe, tanto que eles comparecem, ruidosos, nas primeiras páginas de todos os jornais nacionais) e numa suposta “desqualificação” que tem ares de caricatura dos argumentos dos antigos situacionistas econômicos. O aspecto mais visível do debate e da apresentação de alternativas a respeito da política econômica do ancien régime ocorreu a propósito do regime cambial, onde se distinguiram vários economistas de oposição, inclusive um de “direita”, o ex-ministro Delfim Neto. 
Parece-me portanto totalmente descabida a afirmação de que hoje, como na década passada, a sociedade vem sendo privada de debates genuínos sobre a política econômica. Quanto ao FMI, caberia esclarecer que ele não participou em momento algum da formulação das bases principais do Plano Real de estabilização macroeconômica, que ele nunca recomendou fixação ou rigidez cambial (ao contrário, insistiu pela desvalorização desde a concepção do primeiro pacote de apoio financeiro, em outubro de 1998) e que o Congresso nunca teve cerceada sua capacidade de questionar as autoridades econômicas sobre esses planos, tendo o ministro da Fazenda comparecido em pessoa às comissões parlamentares (e mesmo à plenária do Congresso) a cada pacote contratado com o FMI. 


4) “O 'mercado' não debate, apenas ameaça. E aqueles que deveriam debater em seu nome tomam a ameaça de suas reações como suficientes para cancelar o próprio debate. Os pontos-chave da política econômica são encapsulados numa cadeia de tabus porque a simples menção de discuti-los é descartada em face do risco da especulação do 'mercado', pelo que o 'mercado' obtém uma franquia para continuar ditando os rumos de uma política econômica em proveito único de seus operadores, e cujo resultado para a sociedade tem sido baixo crescimento econômico e ampliação do desemprego.
(PRA:) Singular afirmação e santa onisciência esta da primeira frase: o mercado não debate e de fato não se conhece um ou vários “porta-vozes” do alegado mercado com aspas. O mercado sem aspas é constituído da ação conjugada e desconjugada, racional e irracional, organizada e caótica de milhões, centenas de milhões por vezes, de agentes econômicos individuais. Por certo, alguns desses porta-vozes aparecem ocasionalmente de forma algo mais transparente: são os chamados “especuladores de Nova York”, ou seja, os analistas econômicos (especializados em Brasil) das firmas de investimento de Wall Street e adjacências (algumas dessas “adjacências estão em Londres, Frankfurt ou Tóquio). Esses “especuladores de Wall Street” (George Soros costuma ser um dos mais citados) chegaram certamente, em determinadas circunstâncias (na campanha presidencial de 2002, por exemplo), a “ameaçar” o País com a retirada de capitais, o desvio de investimentos e outros comportamentos mais ou menos nocivos ao bom equilíbrio das contas nacionais (posto que dependente, esse equilíbrio, da injeção de recursos externos). 
Nada disso é novo e certamente os autores do manifesto devem saber disso. O que é novo, em contrapartida, é essa suposta capacidade que teria o mercado com aspas de “cancelar o próprio debate”, quando o que mais acontece, ao contrário, é que essas manifestações orais ou práticas do mercado sem aspas faz mais para incitar (e excitar) ao debate do que as toneladas de tinta e papel descarregadas nas revistas acadêmicas e nos jornais diários por todo um exército de reserva de economistas de oposição. Basta um economistazinho, por vezes medíocre e totalmente alheio às condições reais da conjuntura econômica no Brasil, falar em Wall Street que no dia seguinte os jornais brasileiros já encontraram vários economistas da oposição e da situação para comentar à exaustão essas “ameaças” do mercado com aspas. 
Não se compreende, tampouco, como os “pontos-chave da política econômica (estariam) encapsulados numa cadeia de tabus”, quando o que mais ocorre no Brasil, desde a época de alta inflação, são colunas e colunas de comentaristas econômicos (mais numerosos certamente do que os de futebol ou os colunistas sociais) destilando todos os dias toneladas de argumentos a favor e contra esses famosos “pontos-chave” da política econômica governamental. Qualquer leitor de jornal diário pode comprovar esse fato corriqueiro da esquizofrenia econômica brasileira: vivemos literalmente cercados de colunistas econômicos, nos jornais, revistas, rádios e TVs, uma verdadeira inflação deles, junto com a praga dos comentaristas políticos, que nada mais são, em muitos casos, do que propagadores de fofocas. 
Todos eles, aliás, economistas, comentaristas e colunistas, contribuem, cada qual ao seu modo, para alimentar essa “especulação do ‘mercado’” (com aspas, lembre-se), pois que eles simplesmente não ficam quietos, sobretudo os primeiros (de oposição), que fornecem as armas da crítica para os segundos e terceiros, geralmente jornalistas não necessariamente formados em economia. Mas nem precisaria, pois a especulação alimenta-se de dados objetivos também, ou seja, estatísticas de produção, de comércio, de receitas e de taxas de câmbio e de juros. Na verdade, os verdadeiros especuladores, isto é, os rapazes de Wall Street, não costumam ler nenhum dos primeiros, nem os economistas sérios nem os colunistas ligeiros, pois em geral eles não precisam saber português para começar a operar. Eles simplesmente começam a olhar os indicadores do país, inserem esses dados em algum modelo matemático que fornece resultados futuros e, zut!, voilà: está criada a especulação. Basta que algum indicador indique uma curva preocupante (deterioração das exportações, por exemplo) para que o especulador mais “esperto” lance o alarme: “take your money and run!”. É o que fazem os verdadeiros investidores do mercado, com aspas ou sem aspas, os donos do dinheiro.
Talvez isso seja sinônimo de “ditar a política econômica” do governo brasileiro, como parecem querer os autores do manifesto, mas então não há nada ser feito na sua perspectiva, ou talvez sim: ir “contra” o mercado (qual deles?: com aspas ou sem?). Não se sabe bem como isso poderia ocorrer, pois quem geralmente depende dos humores do mercado – como ocorre com o Brasil há quase duzentos anos – não pode se dar a luxo de “correr” do mercado, pois este estará onde sempre esteve: em Nova York, Londres, Frankfurt, Tóquio, ou até mesmo em São Paulo, Rio de Janeiro, Vitória do Santo Antão, Cabrobó da Serra e outros lugares menos conhecidos. O mercado – isto é, os agentes econômicos – encontra-se em todas as partes e em nenhuma, pois que ele perpassa todas as atividades econômicas de um país “normal”. Sem querer desanimá-los, tampouco, eu diria que o primeiro mercado que “foge” do governo é aquele dos investidores domésticos – mais conhecedores das fofocas locais, a que estão alheios os rapazes de Wall Street – e, sobretudo, os agentes nacionais da atividade econômica, empresários, banqueiros ou simples poupadores da classe média. Ao menor sinal de que o governo pretenderia “fugir” do mercado, eles correm para se “refugiar” antes, comprando dólares, remetendo dinheiro para o exterior,  reforçando o caixa-dois, enfim, preparando-se para tempos amargos. Esta é a especulação que já derrubou mais de um país – o México, por exemplo – ou que fez o Brasil ostentar, em outras épocas, ágios de quase 100% na taxa cambial. 
Que, por outro lado, o chamado mercado – sinto muito, mas já não consigo distinguir se seria com aspas ou sem – faça tudo isso “em proveito único de seus operadores”, parece-me de uma banalidade tão elementar que dispensaria qualquer comentário de minha parte. Qual é o mercado que não opera em favor de alguns e em (relativo) desfavor de outros, muito embora ele não seja exatamente um jogo de soma zero? Todo mercado consiste numa troca de produtos – meu dinheiro contra as tuas abobrinhas ou minha emissão de títulos governamentais contra tal taxa de juros – e é evidente que o agente dotado de maior poder de barganha (ou de maior informação) sairá relativamente melhor nessa troca, mas o outro agente é “livre” para aceitar ou não as condições da operação. O que os autores do manifesto querem dizer, obviamente, é mais grave do que isso: eles querem significar que o Brasil e os brasileiros estão aprisionados numa rede (cruel?) de compromissos financeiros que os impede de fazer suas próprias escolhas, sujeitando-se às forças implacáveis do mercado (com aspas aqui) em total prejuízo dos interesses nacionais. Mas tanto o mercado não é um jogo de soma zero que, mesmo nessas circunstâncias, o Brasil se sairá com o que ele quer obter do mercado: dinheiro para equilibrar suas contas. 
Se não fosse assim, o Brasil não compareceria ao mercado (as aspas são indiferentes neste caso), pois ninguém fica acumulando reservas para nada. E se ele o faz, é porque muito necessita dessa injeção de vitamina na veia, do contrário não se sujeitaria a essas condições humilhantes de “taxas de juros impostas do exterior”, de “monitoramento das contas nacionais pelos gigolôs do FMI” e outras vergonhas do gênero. Isto pode não ser muito edificante para o orgulho nacional, mas se preferem que não seja assim, os economistas do manifesto precisariam dizer, precisamente, como o Brasil poderia fazer de outra forma, sem, claro, colocar em risco as condições ditas normais de atividade econômica no País.
Por fim, afirmar que essa “ditadura dos mercados” (a frase não é deles, é minha) tem produzido, como único resultado “para a sociedade (, …) baixo crescimento econômico e ampliação do desemprego” representa fazer uma leitura singularmente enviesada do poder dos mercados que, em outras circunstâncias, mundo afora e em diferentes épocas econômicas, foi capaz de produzir crescimento e emprego, justamente. As situações inversas correspondem a momentos de disfunções dos mercados (o que também pode ocorrer) ou intervenções do poder político, cujo arbítrio pode impedir os “mercados” (concedamos as aspas, pois eles nunca foram perfeitos) de encontrar seu próprio ponto de equilíbrio. Qualquer manual de economia política do primeiro ano de faculdade vai trazer as curvas de equilíbrio de mercado, que esses economistas devem conhecer muito bem, indicando como e em que condições os mercados crescem e criam empregos. Os agentes econômicos deixados à sua própria sorte costumam ser, em princípio, racionais, só deixando de sê-lo na presença de algum burocrata governamental que pretende dizer-lhes como melhor aplicar e fazer frutificar o seu (deles) dinheiro. 
Isso tudo deveria ser do conhecimento dos autores do manifesto, sendo inacreditável que eles repitam essas bobagens de manual econômico do materialismo dialético, dotado do pecado original do antimercado e da antiespeculação. Mercados e especulação são inseparáveis e inevitáveis, em qualquer época e lugar (mas talvez não na academia).


5) “Basta. Queremos abrir a agenda da economia política brasileira e expor a caixa preta da política econômica ao debate aberto. É um imperativo moral que reconheçamos o alto desemprego, sem precedentes em nossa história, como o mais grave problema social brasileiro, resultante diretamente das políticas monetária e fiscal restritivas, assim como da abertura comercial sem restrições.
(PRA:) Bela frase: trazer a “caixa preta” da política econômica a debate aberto. Mas, como?, se essa “caixa” já está aberta há muito tempo, seu conteúdo vem sendo exposto e explicado pelo ministro da Fazenda desde antes de assumir e seus principais elementos vêm sendo expostos à sanha dos opositores desde o primeiro dia de governo da nova maioria? Aliás, não precisa de nenhum “imperativo moral” para reconhecer que a taxa de desemprego é uma das maiores de nossa história econômica, bastando dar uma olhada nas estatísticas do IBGE (ou, pior, do DIEESE). Que o desemprego resulte das políticas restritivas (há outros fatores, mas concedamos essa prioridade à política econômica) também não exige nenhum prêmio Nobel para constatar, ainda que eu disputaria o papel do comércio exterior (ele apresenta baixo coeficiente no Brasil e de toda forma cria empregos em outros setores).
O problema é que a certeza do diagnóstico não se completa aqui com nenhuma evidência de tipo econômico, pelo lado dos fatores causais. O discurso da “caixa preta” tem mero efeito retórico, e a gravidade da inflação e do descalabro fiscal, por exemplo, também atingem o tecido social, com estragos iguais ou superiores aos do desemprego, sem que os autores do manifesto tenham qualquer lembrança para seus efeitos deletérios na história econômica do Brasil. Em suma, a indignação moral não costuma ser um bom substitutivo da análise econômica.


6) “É um imperativo político, em face dos direitos de cidadania e tendo em vista a preservação da democracia, que se promova uma política retomada do desenvolvimento com justiça social e estabilidade cujo objetivo último é o pleno emprego.
(PRA:) Totalmente de acordo, e eu diria mais: trata-se de um imperativo econômico, também, e social, e religioso, e filosófico, enfim, ninguém pode, em sã consciência, ser contra a democracia e a justiça social, o progresso econômico, a estabilidade e o pleno emprego. Até aí estamos de pleno acordo. O problema começa quando se examinam as alternativas de política econômica, como veremos a partir de agora.


7) “Há alternativa. Ela não passa por mudanças tópicas em um ou alguns dos aspectos da 'coerente' política ortodoxa em curso, mas pela inversão de toda a matriz da política econômica. Isso significa reforçar a interferência do Estado no domínio econômico, a exemplo do que ocorreu historicamente em situação similar com o New Deal, nos Estados Unidos, para corrigir as distorções provocadas pelo 'livre mercado', sobretudo o alto desemprego, que compromete a estabilidade social e política do país. Em linhas gerais, implicaria um conjunto simultâneo de medidas do tipo:” 
(PRA:) Toda política – ou todo emprego de recursos econômicos escassos – tem alternativas e elas estão à disposição de qualquer “planejador” devidamente respaldado pelo poder político. Em democracia, as escolhas costumam ser mais restritas do que nos regimes ditatoriais, que não têm os constrangimentos dos parlamentos, da imprensa livre, dos economistas de oposição. Dadas essas circunstâncias, por que as alternativas não poderiam concentrar-se em medidas “tópicas” e precisam, de imediato, passar pela revolução da “inversão”? Os autores do manifesto conseguem se dar conta, finalmente, de que as revoluções, trazendo inversões radicais de orientação política ou econômica, são extremamente raras na história da humanidade, uma vez que as sociedades mudam mais por adaptações graduais e alterações imperceptíveis do que por meio das grandes convulsões sociais? Ainda que não se queira dar ao conceito de “inversão” essas tonalidades jacobinas ou bolcheviques, convenhamos que alterar “toda a matriz da política econômica”, como se pretende, representa simplesmente uma pequena revolução que não deixará de afetar a vida de milhares de agentes econômicos – e de milhões de simples cidadãos, impotentes – pelo país afora. 
Dito isto, pergunto: os autores do manifesto receberam alguma delegação democrática, comprovada no voto, para assim proceder? Qual a legitimidade intrínseca – e extrínseca também – que tem esse apelo em favor de uma completa inversão de orientação econômica no País? Trata-se de um mandato auto-atribuído, dependente apenas dos próprios humores cambiantes dos economistas? Se for assim, eles mesmos têm o dever de suscitar o debate democrático a que fazem referência e tentar legitimar, por um mandato expresso, essa função auto-atribuída de tentar inverter a política econômica nacional. Até que eles consigam obter esse mandato, sua manifestação tem tanta legitimidade e poder social quanto um manifesto de senhoras católicas contra a pornografia nas novelas de televisão. Não quero diminuir a importância dessas duas centenas de mentes iluminadas e altamente participantes no debate econômico nacional – que portanto já existe, está instalado e funcionando, em condições de mercado –, mas as suas “mercadorias” têm de encontrar compradores com base em suas qualidades intrínsecas, em seu preço, em sua utilidade e escassez relativa. 
Infelizmente para os economistas desse novo manifesto alternativo, essas idéias por ele veiculadas têm muitos compradores e consumidores (cativos) dentro da academia, mas muito poucos em outros mercados, aqueles bem mais amplos, que funcionam com aspas ou sem. Essas idéias, aliás, não são todas novas, em sua maioria, nem são todas boas (ainda que algumas sejam sensatas em sua banalidade conceitual), como agora comprovaremos mediante um exame mais acurado dessas propostas alternativas.


8) “1.controle do fluxo de capitais externos e administração do câmbio em nível favorável às exportações;
(PRA:) Controle de capitais vem sendo praticado no Brasil, em graus diversos, desde a independência, embora o Império e a República velha tenham conhecido períodos mais ou menos prolongados de conversibilidade cambial e de liberdade de exportação e de importação de capitais. De fato, a atividade econômica, entre nós, esteve sempre cerceada por um conjunto de regras restritivas que impediam os agentes econômicos de se desempenharem livremente nos mais diversos campos abertos ao engenho e arte do homem econômico. Como regra de princípio, enquanto no mundo anglo-saxão tudo o que não fosse expressamente proibido pela autoridade estava ipso factoaberto à liberdade de iniciativa individual (inclusive e sobretudo a formação de sociedade por ações ou de responsabilidade limitada), no nosso mundo cartorial-português tudo o que não estivesse devidamente amparado numa carta-régia, num alvará de concessão era, de fato, proibido, a ponto de a própria constituição de companhias abertas ter necessidade de um ato do parlamento até bem avançado o Império. Não se trata propriamente de novidade, portanto, a sugestão de controle de capitais (sobretudo estrangeiros).
O que está sendo proposto no manifesto dos economistas é a centralização cambial e sua administração política pelas autoridades econômicas, uma das medidas mais estúpidas que se pode conceber numa conjuntura na qual o País está esforçando-se de verdade por tornar-se um “país normal”. Por “país normal” eu quero dizer obviamente um no qual os mercados funcionam de forma relativamente livre, o que implica igualmente liberdade de entrada e saída de capitais. Concedamos que por razões próprias à nossa história (geralmente identificada com o período pós-1931) temos um problema de balança de pagamentos e um crônico déficit de divisas fortes (supondo-se que a nossa seja “fraca”, o que ela o é, efetivamente, desde mais ou menos essa época), o que nos obriga a restringir as “oportunidades” de exportação de “capitais escassos” e também – se for o caso, por necessidades da política monetária, por exemplo – as “possibilidades” de ingresso de capitais estrangeiros. Essas fragilidades da história econômica brasileira estão obviamente ligadas à nossa baixa capacidade exportadora, uma vez que se fôssemos um exportador líquido, cronicamente superavitário em capitais, seriamos há muito tempo um país “imperialista”, isto é, exportador de capitais, no entender de Lênin e de Rosa Luxemburgo (mas também de um economista “burguês” como Hobson). 
Eu digo “estúpida” sem intenção de agredir os autores do manifesto, porque esse tipo de medida, além de estúpida, é também self-defeating, como diriam os economistas, pois que a simples menção a controle de capitais faria com que o governo deixasse de ter qualquer controle sobre eles. De fato, o controle implica em duas coisas: o governo passa a cercear a capacidade dos agentes nacionais em remeter para fora o seu dinheiro, o que geralmente redunda em fuga de capitais, fraudes fiscais, ágio cambial e redução dramática dos ativos líquidos na economia; o governo diz aos residentes estrangeiros que o seu dinheiro será igualmente cerceado na sua capacidade de ir e vir, o que resulta simplesmente na drenagem quase completa de recursos externos. Belas medidas que propõem esses economistas alternativos: o esgotamento do mercado de capitais no Brasil e sua substituição por talões e boletos de “permissões” de exportação e de registro de importação de capitais. Só por esse progresso fantástico da teoria e da prática econômica em nosso País, eles mereceriam o prêmio “(ig)Nobel” de gestão responsável das contas nacionais. 
Repito: a medida é tão estúpida que não mereceria maiores comentários econômicos, podendo ser classificada como um desses absurdos políticos que só costumam surgir na cabeça daqueles que vivem num mundo completamente afastado das condições normais de mercado (aqui sem aspas). Quanto à “administração do câmbio em nível favorável às exportações”, trata-se igualmente de prática a que o Brasil recorreu extensivamente num passado não muito distante e que se tenta dispensar nestes quatro últimos anos de regime de flutuação (ela deveria ser de mercado, sem aspas, mas o governo por vezes intervém, mediante compra ou venda de dólares, para “produzir” uma paridade julgada mais realista ou conforme nossas possibilidades).
Em favor daqueles que propõem a administração política da taxa de câmbio ressalte-se que ela beneficiaria, sem dúvida alguma, os exportadores, como é a intenção manifesta dos manifestantes, e a partir daí o objetivo governamental de produzir saldos na balança comercial como forma de compensar os déficits crônicos de serviços e de contribuir para resultados mais favoráveis na balança de transações correntes. Lembre-se porém de que ela prejudica todos aqueles que devem realizar importações – mas talvez seja essa mesmo a intenção dos autores –, aqueles que contraíram dívidas em dólares, assim como deixa todos os brasileiros um pouco mais pobres em relação ao mundo, diminuindo nossa presença no mundo e atingindo também a auto-estima de todos os que realizam transações com o exterior. 
Creio também ser melhor a produção de emprego e renda no Brasil do que a “satisfação” de ver o Brasil alinhado entre as dez primeiras economias do mundo, mas o problema de um regime burocraticamente administrado da taxa de câmbio está justamente em que ele nos afasta ainda mais do mercado sem aspas e nos coloca nas mãos daqueles burocratas que pensam que o arbítrio governamental é preferível à sujeição às forças de mercado (aqui com aspas). Pensando bem, acho que um regime de flutuação de mercado (sem qualquer aspa) é ainda melhor do que a intervenção, pois sua “imprevisibilidade” e sujeição a “choques” é de toda forma melhor, para todos os agentes econômicos e simples cidadãos do que a angústia de saber que o câmbio pode ser alterado inopinadamente por alguma decisão política tomada com base em critérios que lhe são relativamente desconhecidos. Pelo menos os critérios de mercado (sem aspas) se tornam imediatamente disponíveis sob a forma de movimentos de compra e venda que podem ser medidos e avaliados pelos agentes, ao passo que as intenções de burocratas e decisores nem sempre podem ser previstas (sem mencionar o risco doinsider tradinge da corrupção). 


9) “2.enquanto perdurar o alto desemprego, redução do superávit primário pelo aumento responsável do dispêndio público, a fim de ampliar a demanda efetiva agregada induzindo a retomada do desenvolvimento e do emprego;
(PRA:) O déficit primário não vem sendo perseguido a favor ou contra o emprego, mas porque as contas públicas incorrem em déficit crônico e precisam ser financiadas pelo apelo ao crédito público, o que por sua vez gera um certo volume de dívida pública e o conseqüente fluxo de amortizações e juros, agravando ainda mais esse precário equilíbrio em que vivemos. Essa situação provoca, por sua vez, alta de juros e portanto diminuição das oportunidades abertas aos agentes de investir produtivamente e portanto de abrir novas possibilidades de emprego e de criação de renda, que por sua vez vai estimular a demanda efetiva agregada, etc, etc, etc. Tudo isso é conhecido dos economistas e simples estudantes, pois está nos livros-texto, sobretudo naqueles de orientação keynesiana em que parecem basear-se os autores do manifesto. 
Estamos aqui no coração das oposições, com isso querendo dizer que chegamos ao problema do ovo e da galinha. Debate interminável este, em que cada lado tem sua razão, sem que se consiga chegar a um consenso ou resultado satisfatório para cada um dos lados. Não vou oferecer uma saída teórica para essa dicotomia, limitando-me de minha parte a uma constatação prática: quando na oposição, os economistas pregam juros baixos e um superávit primário o mais baixo possível, como forma de realizar os investimentos sociais necessários suscetíveis de alimentar a tal de demanda agregada etc., etc. e tal. Quando esses mesmos economistas ascendem à situação de governo eles passam a manifestar uma indeclinável preferência pela produção de superávits, como forma de se lograr a chamada “administração responsável” da economia. Pois bem, dada esta constatação, o único remédio para o problema do ovo e da galinha parece ser fazer com que os economistas de oposição ascendam à posição de governo e aí tentarem suas fórmulas de livro-texto acadêmico. Eles podem tentar a via da persuasão, a da influência (como pretendem agora) ou a do voto direto, geralmente a via mais clara, transparente e socialmente sustentada de se concretizar qualquer política alternativa. Às urnas, pois, caros autores de manifestos, pois só assim os próximos manifestos terão consistência social…


10) “3.ampliação dos gastos públicos nos três níveis da administração, com prioridade para dispêndio com ampliação dos serviços de educação, saúde, segurança, assistência e habitação, grandes geradores de empregos, e de competência também dos estados e municípios --o que implica a restauração da saúde financeira da Federação, inclusive mediante renegociação das dívidas de Estados e Municípios para com o governo federal;”
(PRA:) Duas partes aqui: a primeira com generosos investimentos sociais e benefícios para todos, o que constitui obviamente o mundo ideal, bastando para isso que os gastos sejam financiados de forma responsável, isto é, via receitas adequadas ou financiamento de largo prazo. Supõe-se que os “planejadores” governamentais sejam responsáveis a ponto de medir o quanto de gasto social é possível nas condições do Brasil. A segunda parte, relativa à renegociação das dívidas, constitui a receita mais segura para a volta do descalabro orçamentário em que o Brasil vivia antes dessa negociação – ocorrida em FHC-I – e da Lei de Responsabilidade Fiscal, que veio sancionar a gestão responsável da economia pública. O que os autores do manifesto estão dizendo aqui é que os gestores mais irresponsáveis das dívidas estaduais e dos orçamentos locais serão premiados com a socialização generosa do “meu, do seu, do nosso” dinheiro, isto é, de todos os brasileiros, com o objetivo pouco responsável de paliar alguma carência localizada em algum estado ou município. Quem, em sã consciência, pode ser favorável a tal tipo de tratamento desigual? Porque os bons gestores seriam penalizados com uma contribuição adicional em favor de colegas inadimplentes, pródigos ou irresponsáveis? 
Mas eu acho que os autores do manifesto não estão animados de más intenções em relação às dividas negociadas entre os estados e municípios e a União (que assumiu parte do ônus), pois eles também falam da “restauração da saúde financeira da Federação”. Não preciso portanto dizer mais nada: tudo está aí.


11) “4.redução significativa da taxa básica de juros, como complemento indispensável da política fiscal de estímulo à retomada dos investimentos privados;
(PRA:) Irretocável esta parte e eu não teria nada a acrescentar se implícita a esta demanda não estivesse a tal de “fixação política dos juros”, o que nos remete aos velhos demônios de política econômica bem conhecidos de todos. Acrescento apenas que uma “política fiscal de estímulo à retomada dos investimentos privados” não poderia ser feita em detrimento do equilíbrio das contas públicas e tendo como resultados uma política fiscal de estímulo ao crescimento de déficit público e a retomada dos comportamentos irresponsáveis do passado (bem conhecido pelo emissionismo desenfreado, pela inflação induzida pelo governo e pelas políticas sociais regressivas que tivemos em conseqüência disso tudo). 


12) “5.promoção de investimentos públicos e privados em saneamento e infra-estrutura (logística e energia), para assegurar a melhoria da competitividade sistêmica da economia; incentivo a investimentos imediatos em setores privados próximos da plena capacidade;
(PRA:) Irretocável, igualmente, e nenhum planejador, decisor ou líder político dotado do mínimo de bom senso seria contra essa panóplia de medidas de estimulo ao crescimento e ao aumento do bem-estar. Resta saber quem vai alimentar a cornucópia, que na vida real precisa ter um lado de insumo e não apenas a face risonha do produto. O lado bom da academia é que você pode, justamente, apontar todas as coisas boas da vida, sem se preocupar com o lado ruim da economia, a famosa “by the other hand” dos economistas responsáveis e dos conselheiros do príncipe. Sim, porque alguém precisa dizer ao príncipe de onde vai sair o dinheiro que vai fazer todas aquelas coisas boas que ele gostaria de fazer para ser amado do seu povo (e ser reeleito). 

13) “6.manutenção e ampliação da política de incentivo às exportações; e substituição de importações;” 
(PRA:) Irretocável na primeira parte, menos virtuoso na segunda. Ninguém dispensaria a demanda agregada do mundo inteiro como poderoso fator de estímulo à atividade interna. Quanto a promover a famosa “SI” dos livros-texto ditos “estruturalistas”, o consenso é menos explícito, pois se está falando, na verdade, de indução governamental de movimentos ou fluxos não diretamente induzidos pelo mercado (sem aspas). Ou seja, você aumenta as tarifas por um lado e pratica uma generosa política industrial por outro, com subsídios e isenções concedidas aos industriais substitutivos (e alternativos). Tudo isso tem um custo e provoca distorções no mecanismo econômico da sociedade. Voltamos assim aos velhos problemas de saber quem vai pagar – supostamente, para os manifestantes, toda a sociedade paga em favor de alguns poucos privilegiados da indústria – e sobretudo de saber que tipo de economia se pensa estimular no Brasil, uma relativamente conforme ao livre jogo do mercado (sem aspas, por favor), ou aquela velha economia que dependia de favores e arbítrios governamentais, com toda a cadeia de corrupção associada (que no Brasil nunca deu cadeia a ninguém, com perdão da alusão). Mais uma vez se constata, portanto: é muito fácil fazer política econômica a partir da academia, basta querer…


14) “7.política de rendas pactuada para controle da inflação.
(PRA:) Edificante, sensível mesmo, bastando apenas saber como será feita a tal de pactuação. Como todos vão querer aumento de renda sem os custos associados da inflação, seria preciso arbitrar um meio de conseguir esse mundo ideal. Nas democracias esse objetivo costuma ser decidido nas eleições e nos debates parlamentares em torno do orçamento, ou seja nada de muito diferente do que se pratica hoje no Brasil. Os autores do manifesto teriam alguma outra fórmula criativa a nos propor?: talvez um novo “conselho representativo”, capaz de produzir apenas bondades e nenhuma maldade? Com a palavra os manifestantes…

15) “Sustentamos que o Brasil tem diante de si uma alternativa de política econômica de prosperidade. O atual governo, que foi eleito em função de expectativas de mudança, tem diante de si a responsabilidade de evitar que a crise social herdada se transforme numa crise política de proporções imprevisíveis, a exemplo do que tem ocorrido em outros países da América do Sul contemporaneamente, e do que ocorreu historicamente na Europa, nos anos 20 e 30. Os obstáculos políticos à mudança não são maiores que os riscos de não realizá-la.” 
(PRA:) Ou muito me engano, ou o governo atual vem fazendo justamente isso: tentando introduzir mudanças sem expandir o quadro de carências generalizadas em que sempre viveu o Brasil, tanto a população em geral, como os industriais chorões, os agricultores irrequietos, os sindicalistas brigões e o governo “paupérrimo”, inclusive. Todos eles querem isso mesmo o que dizem os manifestantes (uma “política econômica de prosperidade”), mas eles precisariam tentar esclarecer essa questão dos riscos, que não está muito clara em seu manifesto. Vamos tentar colocar um pouco de ordem neste debate democrático no qual me permito exercer o papel do contraditório ao manifesto dos economistas alternativos.
Como regra de princípio, toda medida política traz implícita um impacto econômico, já que se trata de alguma disposição afetando o funcionamento do Estado ou diretamente a vida das pessoas. Da mesma forma, toda norma econômica apresenta um custo político, na medida em que as novas regras inevitavelmente afetam patrimônio ou as condições da atividade produtiva ou de intermediação (produzindo menor taxa de “reelegibilidade” nas próximas eleições). 
Toda a ciência da arte econômica, ou toda a arte da ciência econômica – com perdão pela contradição, mas ela é própria dessa disciplina já descrita como “lúgubre” –, está precisamente em combinar diversos elementos regulatórios ou normativos de maneira a diminuir os custos e aumentar os benefícios para o maior número de pessoas. Nessa combinação reside algum risco, como devem saber os partidários alternativos da ciência sombria. O governo já confessou que examinou os riscos da derrapagem inflacionária e da mudança de sistema cambial (para um mais intervencionista, entenda-se) e concluiu que o caminho de menor risco era o da manutenção das linhas e diretrizes econômicas do ancien régime, descrito pelos economistas alternativos como neoliberal (o que isso quer dizer não ficou muito explícito no manifesto, em face do manifesto intervencionismo do governo anterior, com perdão mais uma vez pela redundância). 
Os economistas alternativos acreditam, entretanto, que os “obstáculos políticos à mudança não são maiores que os riscos de não realizá-la”, o que é uma afirmação bonita, e mesmo clara, do ponto de vista da ciência política. Resta saber se, do ponto de vista econômico, eles mediram os riscos – alguma simulação econométrica em curso de preparação? – de uma e outra situação e lograram provar que o risco da mudança é menor (ou pelo menos não maior) do que o da não-mudança.
Um decisor governamental, entretanto, não pode ficar mudando de política todo santo dia, ou pelo menos toda semana, pois que isto aumenta a taxa de volatilidade da economia, como todos devem (ou deveriam) saber. Por isso mesmo, uma cuidadosa análise de custo-benefício (inclusive dos economistas alternativos) deve sempre preceder toda e qualquer mudança de política econômica. Se não fosse assim seria fácil, por exemplo, efetuar a reforma tributária pois que o “risco” de não realizá-la, seguindo a linha argumentativa dos nossos economistas, é muito maior (em face da estrutura antiprodutiva e regressiva do atual sistema) do que de não fazer. Os economistas alternativos deveriam começar, em cada estado, por convencer os governadores dessa realidade tão simples quanto prosaica: mude as regras tributárias atuais, pois mudança sempre é bom…


16) “Colocamos o foco de nossas sugestões na promoção do pleno emprego porque se trata de uma política estruturante da solução de outros problemas sociais e econômicos miséria, subemprego, marginalidade, iníqua distribuição de renda, violência, insegurança.”
(PRA:) Estruturante ou não, a política do pleno emprego é o Santo Graal de todo político desejoso de uma longa carreira no controle do poder. Poucos conseguem, porém, e os melhores economistas do primeiro, do segundo e do terceiro mundo ainda não conseguiram descobrir a fórmula ideal que garanta “pleno emprego”. Como sabem (ou deveriam saber) todos eles, algum desemprego estrutural sempre existe em qualquer economia, pelo menos fora de um sistema do tipo gulag soviético (onde todos estavam, teórica e praticamente, “empregados”). Dito isto, onde estão exatamente as “sugestões” dos economistas alternativos para assegurar o “pleno emprego” num país como o nosso que combina educação africana e regras laborais francesas? Um segundo manifesto, por favor, desta vez com notas de rodapé sobre o NAIRU brasileiro (para os que não sabem se trata do diminutivo de “non accelerating inflation rate of unemployment”, e deve ter artigos sobre isso em alguns dos debates da ANPEC).


17) “Contudo, este não é um projeto estritamente econômico, nem um projeto fechado. É uma contribuição de economistas à busca de um novo destino nacional, base do resgate da cidadania, e condição para uma sociedade solidária.” 
(PRA:)Economistas, normalmente, não se ocupam do resgate da cidadania ou da construção de uma sociedade solidária, pelo menos não enquanto economistas. Talvez como cidadãos, como acadêmicos de outras disciplinas, ou até mesmo como políticos, eles poderiam fazer isso, mas aí já estamos falando de outra coisa. Na condição de economistas, eles têm mesmo é de produzir trabalhos “científicos”, com razoável base empírica, que logrem fornecer ao decisor político as soluções de menor custo social que produzam o máximo de bem-estar para a maior parte, senão o conjunto da população. Esta é a função primária, básica, do economista, mas a ela os autores do manifesto se furtaram incompreensivelmente. 
Diferente é a situação do político, cuja primeira obrigação, numa democracia, não é exatamente a de produzir o maior grau de bem estar para todos e de felicidade geral para a nação, mas simplesmente a de ser eleito (sua segunda obrigação, novamente, não é a de produzir coisas boas para a população, mas a de ser reeleito). Contrariamente ao que acreditam muitas pessoas de bom senso (inclusive vários economistas), a democracia não é exatamente o regime do povo, pelo povo e para o povo, mas tão simplesmente uma arena de competição entre agentes políticos interessados em suas próprias carreiras (e que formam uma classe dominante), cujo desempenho público em função das expectativas dos eleitores será sancionado pelo povo após um prazo fixo ou limitado no poder. Estou seguro que muitos economistas, inclusive alternativos, concordariam com esta perspectiva shumpeteriana da democracia política, mas isto não deveria normalmente desviá-los de suas funções técnicas, estritamente não políticas, do exercício de suas funções. 
O manifesto, nesse sentido, deve ser entendido, o que aliás está explícito no documento, como um projeto não estritamente econômico e totalmente aberto à uma reflexão de ordem política e social. Excelente, tanto porque o debate sobre as vias alternativas de desenvolvimento econômico e social para o Brasil encontra-se plenamente aberto, como aliás sempre esteve. Agora, como economistas, eles falharam miseravelmente, até aqui, em produzir uma única sugestão que não pudesse ser contestada em seus méritos próprios ou com base na experiência histórica acumulado pelo processo de (sub)desenvolvimento econômico e social brasileiro. 


18) “Nenhuma das medidas propostas ou seu conjunto são um anátema à luz da história econômica real dos países que experimentaram algum êxito econômico e social, hoje como no passado. Desafiamos os que se escondem por trás da onipotência do deus ‘mercado’ que sustentem à luz da discussão pública e de suas conseqüências atuais e futuras suas propostas de política econômica. Queremos o debate já. Queremos o exercício democrático da controvérsia. Chega de interdição.
(PRA:)Os economistas do manifesto insistem em falar de “interdição” quando são eles mesmos – agora, no passado, e seguramente no futuro – que se ocupam de manter bem acesa a chama do debate econômico, aliás envolvendo eles mesmos, o governo, economistas de direita, observadores do mundo político, jornalistas mais ou menos de esquerda, as donas de casa, os especuladores de Wall Street, enfim tutti quantise acreditam ser capazes de um argumento inteligente sobre o rumo atual das políticas econômicas no Brasil. O “exercício democrático da controvérsia” em torno de questões econômicas sempre existiu no Brasil, mesmo nos piores tempos da ditadura: basta perguntar a qualquer economista de oposição, ou hoje de situação. Eu poderia citar, por exemplo, “n” artigos de alguns atuais ocupantes de cargos econômicos – como também de vários signatários do manifesto – em veículos sérios como Revista de Economia PolíticaEstudos CEBRAPNovos Estudos CEBRAPEstudos Econômicos, para não falar de revistas da chamada “mainstream economics”. A referida “interdição da controvérsia”, portanto, é algo que só existe na cabeça dos autores do manifesto.
O que talvez os incomode é que economistas que não rezam pela cartilha de alguns dos dogmas ostentados por eles mesmos tenham ocupado o poder nos últimos 13 anos (ou talvez mesmo mais, considerando o período anterior de “liberal-intervencionismo”), implementando medidas e políticas econômicas que não vão exatamente no sentido de algumas dessas cartilhas que costumam ter sucesso na academia (onde a clientela é passiva, pois que tem de aceitar a “bibliografia” indicada pelo professor, quando não seguir a linha do orientador de tese). Se usei as expressões “cartilha” e “dogma” foi porque os próprios autores do manifesto insistem em falar de “anátema” e de “onipotência do deus ‘mercado’”, o que nos deixa no mesmo terreno dos instrumentos de culto e das normas litúrgicas. De minha parte, confesso-me um “irreligioso”, em matéria econômica ou política, sendo mesmo um “anarquista teórico”, um cultor obcecado dos dados estatísticos e um fervoroso examinador de estudos empíricos.
Vejamos pois, para terminar, as duas últimas afirmações carregadas de promessas e de cobranças que nos fazem os autores do manifesto: (1) “Nenhuma das medidas propostas ou seu conjunto são um anátema à luz da história econômica real dos países que experimentaram algum êxito econômico e social, hoje como no passado”; (2) “Desafiamos os que se escondem por trás da onipotência do deus ‘mercado’ que sustentem à luz da discussão pública e de suas conseqüências atuais e futuras suas propostas de política econômica.
No que se refere a (1), seria possível, sim, encontrar países que, no passado ou mesmo no presente, utilizaram-se ou continuam a fazer uso de algumas das medidas propostas pelos nossos economistas alternativos, mas fica difícil, com tal grau de generalidade saber: (a) se esses países as usaram ao mesmo tempo e o tempo todo; (b) se o fizeram na ausência de outras políticas macroeconômicas ou setoriais que reforçaram traços eventualmente “virtuosos” de algumas dessas medidas propostas; (c) que grau de sucesso obtiveram na consecução dos objetivos pretendidos pelas suas lideranças políticas (que podem ser, alternativa ou seqüencialmente, de estabilização, de distribuição, de upgradetecnológico, de driveexportador etc.), e se isso foi feito com base unicamente naquele conjunto de medidas propostas pelos nossos economistas alternativos; e (d) quais seriam, exatamente, os países que eles têm em mente: seriam aqueles do centro capitalista euro-atlântico ou aqueles da periferia que lograram sucesso na industrialização com aumento de renda (Japão, Coréia do Sul, quem mais?). Se os economistas não explicitam sua shopping listfica difícil manter um debate aberto e contraditório sobre esses casos. Podemos dizer, como regra de princípio, que os “modelos” de desenvolvimento são sempre construídos com base em casos de sucesso, pois que ninguém (medianamente sensato, pelo menos) costuma construir modelos a partir de casos fracassados (que também podem envolver, não custa lembrar, algumas, ou todas, aquelas propostas de política econômica sugeridas pelos nossos economistas).
Dito isto, o que se pode constatar é que os países hoje avançados podem, sim, ter utilizado algumas daquelas políticas mencionadas, geralmente controle cambial e de capitais, protecionismo tarifário e não tarifário, subsídios explícitos ou embutidos em setores definidos, políticas fiscal e monetária ativas e pretensamente “virtuosas” etc. Outra constatação que se pode fazer é que poucos deles hoje em dia, se algum, continuam a se utilizar extensivamente dessas receitas supostamente estimuladoras da atividade econômica; o que se nota, ao contrário, é controle inflacionário, rigor fiscal, ausência de políticas setoriais, liberdade de movimentação de capitais, equilíbrio orçamentário ou mantido em patamares razoáveis, dívida pública contida em certos limites do PIB, flutuação cambial, liberalização comercial, enfim, a panóplia de medidas geralmente identificadas com as instituições de coordenação de políticas (OCDE, FMI, OMC). Quanto aos países que saltaram a barreira (Japão, Coréia, quem mais?) não descuraram o rigor fiscal e uma política de inserção ativa nas correntes de comércio, ainda que tenham sido pecadores no lados dos capitais e das tarifas (em prejuízo relativo de seus próprios agentes). O que eles fizeram, sobretudo, foi concentrar recursos e esforços na educação básica e profissional de suas populações, algo sequer mencionado no manifesto dos economistas. 
A cobrança inscrita em (2), por sua vez, é totalmente descabida, pois que o ministro da Fazenda não faz outra coisa, ultimamente, senão explicitar sua política, defendendo-a de ataques inconseqüentes como esse manifesto dos economistas alternativos. Pode-se recolher nos jornais declarações repetidas das autoridades econômicas em defesa da linha seguida e sua justificação, e o Congresso tem sido igualmente um ativo debatedor (e convocador dessas autoridades). Os colunistas econômicos, com freqüência praticamente diária têm dado abrigo às mais sérias (algumas nem tanto) críticas e contestações da linha econômica oficial, assim como recolhem os argumentos em defesa da linha seguida até aqui. 
Não parece, assim, ser por falta de esclarecimento público ou por ausência de debate que o exame de políticas alternativas vai deixar de ser feito. Resta, porém, uma hipótese, aliás não recolhida no manifesto dos economistas alternativos: e se não houvesse alternativas? A tese pode parecer absurda, mas ela não é implausível: quando o sujeito está se afogando, a primeira providência é tirá-lo da água, depois ver o melhor método de reanimação. Com isso não quero dizer que a economia brasileira encontrava-se em estado terminal, mas existe uma razoável percepção, por parte de economistas domésticos, como de especuladores de Wall Street, que as condições estão longo do ideal para relaxar no rigor fiscal e no controle inflacionista.
Estes são, aliás, dois aspectos praticamente intocados no manifesto dos economistas: para eles não existe um problema fiscal no Brasil e sequer se menciona o buraco previdenciário; a inflação, quem se lembra?, parece constituir apenas uma vaga lembrança de eras geológicas enterradas. Parece incrível que se comprove esse tipo de descaso, num país seriamente engajado no primeiro esforço fiscal de toda a sua história econômica, devendo lutar contra uma catástrofe anunciada no setor previdenciário e ainda se debatendo com surtos inflacionários que roubam poder de compra aos mais pobres. Que economistas responsáveis sequer se dignem em tocar nesse tipo de problema me parece sintoma de algo mais grave do que a simples inconsciência social ou o descaso com o que é, e continua a ser, relevante para o País. 
Trata-se do conhecido problema da “torre de marfim”: eles são economistas acadêmicos e como tais preferem encerrar-se em suas diatribes políticas em lugar de se ocupar dos problemas reais do Brasil. Volto ao início deste ensaio: como considero este manifesto alternativo uma peça essencialmente política, sugiro que os economistas alternativos voltem e façam direito o seu dever de casa. Esqueçam a ideologia e consultem os números da conjuntura econômica, para então, a partir daí, tentar formular políticas econômicas alternativas, economicamente credíveis e tecnicamente sustentáveis, às atuais políticas econômicas do governo. Se eles provarem que são capazes de, afastando a diatribe política, embasar economicamente propostas factíveis, eles ganham o direito de continuar participando do debate. Do contrário, correm o sério risco (político e econômico) de caírem na irrelevância política e social. Se isso ocorrer, seria uma pena, pois que eles mesmos estariam se “interditando” de participar, de maneira responsável, de um rico debate sobre o futuro do Brasil.

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 13-14 de junho de 2003

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Íntegra do manifesto: 
A Agenda Interditada

"O Brasil está sendo levado a um beco sem saída de estagnação e desemprego por uma política econômica que capitulou à insensatez do totalitarismo de 'mercado'.

Desde os anos 90 o debate sobre alternativas de desenvolvimento foi virtualmente interditado com o recurso ao dogma de que o 'mercado', sábio e virtuoso, se deixado a si mesmo promoverá a prosperidade coletiva. Passado mais de um decênio em que o experimento neoliberal vem sendo praticado no Brasil, é hora de um balanço, e de um questionamento: até quando o crescimento com redistribuição de renda será negado à sociedade brasileira? 

A interdição do debate econômico nos últimos anos pretendeu desqualificar como anacrônica toda crítica a qualquer aspecto da política econômica. Hoje, repetindo o que aconteceu na última década, a sociedade vem sendo privada de participar ou acompanhar um debate genuíno sobre medidas de política econômica, boa parte das quais decidida de comum acordo com o FMI à revelia de qualquer instância democrática, inclusive do Congresso Nacional.

O 'mercado' não debate, apenas ameaça. E aqueles que deveriam debater em seu nome tomam a ameaça de suas reações como suficientes para cancelar o próprio debate. Os pontos-chave da política econômica são encapsulados numa cadeia de tabus porque a simples menção de discuti-los é descartada em face do risco da especulação do 'mercado', pelo que o 'mercado' obtém uma franquia para continuar ditando os rumos de uma política econômica em proveito único de seus operadores, e cujo resultado para a sociedade tem sido baixo crescimento econômico e ampliação do desemprego.

Basta. Queremos abrir a agenda da economia política brasileira e expor a caixa preta da política econômica ao debate aberto. É um imperativo moral que reconheçamos o alto desemprego, sem precedentes em nossa história, como o mais grave problema social brasileiro, resultante diretamente das políticas monetária e fiscal restritivas, assim como da abertura comercial sem restrições.

É um imperativo político, em face dos direitos de cidadania e tendo em vista a preservação da democracia, que se promova uma política retomada do desenvolvimento com justiça social e estabilidade cujo objetivo último é o pleno emprego.

Há alternativa. Ela não passa por mudanças tópicas em um ou alguns dos aspectos da 'coerente' política ortodoxa em curso, mas pela inversão de toda a matriz da política econômica. Isso significa reforçar a interferência do Estado no domínio econômico, a exemplo do que ocorreu historicamente em situação similar com o New Deal, nos Estados Unidos, para corrigir as distorções provocadas pelo 'livre mercado', sobretudo o alto desemprego, que compromete a estabilidade social e política do país. Em linhas gerais, implicaria um conjunto simultâneo de medidas do tipo: 

1.controle do fluxo de capitais externos e administração do câmbio em nível favorável às exportações;

2.enquanto perdurar o alto desemprego, redução do superávit primário pelo aumento responsável do dispêndio público, a fim de ampliar a demanda efetiva agregada induzindo a retomada do desenvolvimento e do emprego;

3.ampliação dos gastos públicos nos três níveis da administração, com prioridade para dispêndio com ampliação dos serviços de educação, saúde, segurança, assistência e habitação, grandes geradores de empregos, e de competência também dos estados e municípios --o que implica a restauração da saúde financeira da Federação, inclusive mediante renegociação das dívidas de Estados e Municípios para com o governo federal; 

4.redução significativa da taxa básica de juros, como complemento indispensável da política fiscal de estímulo à retomada dos investimentos privados; 

5.promoção de investimentos públicos e privados em saneamento e infra-estrutura (logística e energia), para assegurar a melhoria da competitividade sistêmica da economia; incentivo a investimentos imediatos em setores privados próximos da plena capacidade; 

6.manutenção e ampliação da política de incentivo às exportações; e substituição de importações; 

7.política de rendas pactuada para controle da inflação.

Sustentamos que o Brasil tem diante de si uma alternativa de política econômica de prosperidade. O atual governo, que foi eleito em função de expectativas de mudança, tem diante de si a responsabilidade de evitar que a crise social herdada se transforme numa crise política de proporções imprevisíveis, a exemplo do que tem ocorrido em outros países da América do Sul contemporaneamente, e do que ocorreu historicamente na Europa, nos anos 20 e 30. Os obstáculos políticos à mudança não são maiores que os riscos de não realizá-la. 

Colocamos o foco de nossas sugestões na promoção do pleno emprego porque se trata de uma política estruturante da solução de outros problemas sociais e econômicos miséria, subemprego, marginalidade, iníqua distribuição de renda, violência, insegurança.

Contudo, este não é um projeto estritamente econômico, nem um projeto fechado. É uma contribuição de economistas à busca de um novo destino nacional, base do resgate da cidadania, e condição para uma sociedade solidária. 

Nenhuma das medidas propostas ou seu conjunto são um anátema à luz da história econômica real dos países que experimentaram algum êxito econômico e social, hoje como no passado. Desafiamos os que se escondem por trás da onipotência do deus 'mercado' que sustentem à luz da discussão pública e de suas conseqüências atuais e futuras suas propostas de política econômica. Queremos o debate já. Queremos o exercício democrático da controvérsia. Chega de interdição."

Retirado do jornal Folha de São Paulo
(site do Folha online, acessado em 13 de junho de 2003)