A PARCERIA ESTRATÉGICA COM A CHINA
O saldo da visita de Lula a China foi positivo, mas, de novo, o marketing foi muito negativo em função dos arroubos verbais presidenciais sobre a guerra na Ucrânia e a parceria estratégica com a China. Apesar de toda sua experiência, Lula está ignorando alguns princípios básicos na diplomacia: saber ficar calado, falar pouco e ter um discurso moderado. Era previsível a repercussão na mídia norte-americana e nacional pelo que foi interpretado como mudança da posição do Brasil e pelas críticas aos EUA. A coincidência da visita do ministro do exterior da Rússia Sergey Lavrov, logo em seguida a visita a Beijing, e a notícia do veto russo `a venda de munição a Alemanha para fornecimento a Ucrânia e possível cooperação nuclear também ajudaram a colocar em dúvida a equidistância brasileira.
Quando a China propôs uma parceria estratégica com o Brasil na década dos 90, o governo brasileiro apreciou o gesto e proclamou o novo nível do relacionamento bilateral. Acontece que o governo chines havia estudado por muito tempo o que queria dessa parceria e, nos últimos 15 anos, definiu seus interesses e objetivos na área agrícola e mineral. Passados três décadas dessa parceria estratégica, o Brasil ainda não definiu como quer se beneficiar dela.
O comunicado conjunto, publicado ao final da visita, em grande parte incluiu declarações de intenção, que poderiam estabelecer as bases da parceria estratégica, segundo o interesse brasileiro: cooperação nas áreas de economia digital, comércio eletrônico, tecnologia de informação, IA, centro de pesquisa, desenvolvimento e inovação, luz sincroton, cooperação espacial. Caso o governo, o setor privado e a universidade realmente se emprenharem para concretizar essas intenções, tecnologia e inovação poderiam sintetizar o interesse brasileiro na parceria estratégica. Assim, como fez a China nas áreas de seu interesse, cabe ao Brasil tomar as medidas internas necessárias para desenvolver a cooperação em todas essas áreas. O Brasil está atrasado nos avanços científicos e tecnológicos em muitas áreas. Surge a oportunidade de recuperar o tempo perdido e colocar o país na linha de frente da pesquisa e desenvolvimento na inovação, no 5G e na IA. Esse pode ser a longo prazo o principal resultado da visita. Caso a parceria estratégica entre o Brasil e a China se desenvolva e se amplie, será importante dinamizar os mecanismos de cooperação existentes com os EUA, assinar o Acordo com a UE e continuar os entendimentos para a adesão a OCDE ou com quem estiver disposto a colaborar com o Brasil.
Apesar da retórica da reforma da governança global, o comunicado defende o fortalecimento da ONU e da OMC. A China evitou comprometer-se quanto a candidatura brasileira ao Conselho de Segurança da ONU, quanto a proposta de formação de um grupo da paz para o fim das hostilidades na Ucrânia e a compra de aviões da Embraer. E o Brasil, a aderir `a Rota da Seda. Houve, em separado, uma longa declaração sobre meio ambiente e mudança de clima, acordo do BNDES e Banco chines para empréstimo de US$1,1 bilhão para investimento em infraestrutura, além de acordos comerciais entre empresas e estados.
Os contrastes e os resultados entre a visita a Washington e a Beijing ficaram evidentes, mas podem ser explicados pela diferente natureza dos encontros com Biden e com Xi Jinping. Nos EUA, a ênfase foi política, com o fortalecimento da democracia e das instituições, além da nova prioridade de meio ambiente e mudança de clima. Na China, foi econômica e comercial, tanto que os aspectos políticos da guerra na Ucrânia, da Rota da Seda, dos semicondutores, da moeda foram minimizados no comunicado conjunto.
Apesar das críticas, até aqui, não há evidência concreta de que o Brasil esteja abandonando a política, na defesa do interesse nacional, de manter-se equidistante nas tensões entre os EUA e a China, mesmo com a contradição entre princípios e valores e interesses, como de resto ocorre com todos os países, inclusive os EUA e as nações europeias. As declarações presidenciais sobre a guerra na Ucrânia – retificadas no discurso escrito durante a visita do presidente da Romênia e atenuadas ainda mais na visita a Portugal – não devem gerar consequências negativas contra o Brasil, mas podem acelerar o gradual esvaziamento do Itamaraty, como evidenciado na entrevista ao final da visita a Beijing, conduzida por Mercadante e Haddad e não por Mauro Vieira e nas viagens de Amorim a Colômbia, a Rússia e a Ucrânia.
Com a crescente tendência geopolítica de formação de dois polos, repetindo em outras bases a Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética, o Brasil tem de definir de forma mais clara seus interesses a fim de sobreviver `a divisão das atuais superpotências. Para manter uma autonomia estratégica na confrontação, não ideológica e militar, mas econômica, comercial e tecnológica, entre as superpotências, e apoiar a multipolaridade, o Brasil tem de manter seu relacionamento com os EUA, a China e a Rússia afastado de considerações partidárias, ideológicas e agora também geopolíticas, que possam, de uma maneira ou de outra, acarretar algum tipo de restrição econômica ou comercial contra interesses concretos brasileiros.
Rubens Barbosa, presidente do IRICE e membro da Academia Paulista de Letras