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domingo, 2 de setembro de 2018

Um debate sobre o foco das politicas sociais - Roberto Mangabeira Unger, Paulo Roberto de Almeida

Um de meus últimos trabalhos do ano de 2003, um “debate” indireto com Roberto Mangabeira Unger, que havia publicado um daqueles artiguinhos desfocados na FSP. Para contestar-lo devo ter usado o dobro de caracteres para demonstrar os equívocos conceituais e os erros factuais em torno do falso debate da “universalização” ou da “focalização” dos gastos públicos. Como esse trabalho ainda não havia sido divulgado, fiz, como nos casos anteriores, esta postagem em meu blog: 

1166. “O social fora de foco?: um debate permeado de equívocos”, Brasília, 28 dezembro 2003, 7 p. Ensaio de comentários a artigo de Roberto Mangabeira Unger, “O social fora de foco” (FSP, 23/12/2003), demonstrando certos equívocos conceituais e erros factuais em torno do debate da “universalização” ou “focalização” dos gastos públicos. 

Transcrevo primeiro o artigo de Mangabeira, depois o meu.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 2/09/2018
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SOCIAL FORA DE FOCO

Roberto Mangabeira Unger
Folha de S.Paulo, 23 de dezembro de 2003

O governo Lula aderiu à ideia de "focalizar" as políticas sociais. Com isso, confirmou que está perdido. Focalizar as políticas sociais significa dirigir apenas aos mais carentes os recursos disponíveis para o social. A focalização se opõe a políticas ditas universais: destinadas a todos. Segundo o raciocínio da focalização, como o orçamento é limitado, precisa haver fila. Os mais pobres devem ser os primeiros na fila. Grande mal do Brasil, dizem, é que os benefícios sociais vão em peso para quem menos precisa deles: a classe média, que, por exemplo, frequenta as universidades públicas.

Focalizar parece, portanto, exigência de bom senso e de equidade. Nos Estados Unidos, onde fraqueja agora a imaginação transformadora, os filósofos se juntam aos técnicos para alardear as excelências dessa orientação. Não falta no Brasil quem os siga. Orientação errada. Política social é ramo da política, não da caridade. Nenhum dos países europeus em que se consolidou a socialdemocracia chegou lá priorizando políticas sociais focalizadas. Todos se dedicaram à construção de políticas universais de educação, saúde e previdência. Apenas sobre essa base ofereceram ajuda maior aos mais pobres. Reformaram instituições para conseguir mais igualdade. Usaram política social para capacitar seus cidadãos, não para atenuar os efeitos da falta de democratização de oportunidades.

Um dos objetivos da opção pela universalidade é formar maioria que defenda o Estado social por se beneficiar com ele. Outro é formar cidadania que tenha a segurança social necessária para constituir nação unida, capaz e inovadora. Política social não é distribuição de esmola a necessitados enfileirados por ordem de suas necessidades. É construção nacional.
Programas só para os mais pobres -em vez de programas que incluam os mais pobres- não resistem aos ciclos econômicos e políticos. Nos Estados Unidos, sede da propaganda em prol da focalização, as políticas sociais universalizantes do presidente Roosevelt perduram. A "guerra contra a pobreza" do presidente Johnson sumiu.

Esse debate tem significado especial para nós. O Brasil só muda quando a classe média se desgarra da plutocracia de viés colonial e passa a lidera reorientação do país em proveito de todos. Entre nós, focalização das políticas sociais é referência cifrada a guerra contra a classe média. Guerra que o governo atual conduz com afinco, convencido de ter na aliança entre financistas e famintos base melhor para hegemonia política duradoura. O exemplo mais claro do lado que o governo tomou será a campanha que ele está prestes a deslanchar contra a já destruída universidade pública e seus já arruinados professores.

Política séria é tragédia e transformação. É trágico não poder concentrar no atendimento dos mais sofridos os recursos limitados do Estado. Só por meio dessa tragédia, porém, é que se transforma sociedade de dependentes em república de cidadãos. Não culpemos pelo desvio da focalização os tecnocratas que fazem no governo o que sempre apregoaram. Responsável é quem os chamou: o homem que -sem clareza, sem coragem e sem fidelidade a compromissos históricos e eleitorais- ocupa a Presidência da República.

Roberto Mangabeira Unger
Harvard University
Law School

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O social fora de foco?: 
um debate permeado de equívocos

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 de dezembro de 2003

É trágico, pelo menos teoricamente, que filósofos sociais se dediquem a opor, conceitualmente, focalização e universalização de políticas sociais. Por outro lado, chega a ser patético que essa oposição seja feita contra as políticas sociais que deveriam estar sendo implementadas pelo governo Lula, que tenta empreender uma saudável correção de rumos em relação a tudo o que se fez, durante décadas, no Brasil, em matéria de políticas públicas redistributivas. 
O artigo de Roberto Mangabeira Unger, “Social fora de foco” (23/12/2003), pratica essa espécie de dicotomia conceitual entre políticas “focadas” e políticas ditas “universais”, acusando o governo Lula de se afastar destas últimas para seguir o caminho das primeiras, como se houvesse oposição entre ambas e como se constituísse mesmo uma grande perversidade “focalizar” políticas redistributivas em direção dos mais pobres. 
Em primeiro lugar, caberia esclarecer que o governo Lula não aderiu a nenhuma ideia de “focalizar” o que quer que seja em matéria de políticas sociais, pela simples razão de que não ocorreu, até agora, nenhuma decisão de ordem filosófica que fizesse o conjunto do governo Lula reorientar o conjunto de suas políticas sociais numa dada direção de favorecer determinados estratos sociais em detrimento de outros. O que está em questão é um estudo do Secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda que tenta fazer um balanço do perfil de gastos sociais do governo, constatando como certos fluxos beneficiam, justamente, determinados grupos sociais em detrimento de outros. Trata-se, portanto, de uma “especulação” com base nos dados disponíveis, ou se quisermos, de uma simulação de impactos de determinados gastos, não de uma decisão de governo quanto a uma “refocalização” de certas alocações sociais.
Aliás, ainda que o governo tivesse tomado a decisão de “refocalizar” os seus gastos sociais, qual seria o impedimento moral, filosófico ou prático a que isto ocorra? Desde que essa “refocalização” tivesse em mente uma maior eficiência do gasto público, uma melhor relação custo-benefício e o máximo de bem estar possível para os diferentes grupos sociais em que se divide o conjunto da população – o que é um dado estrutural de qualquer sociedade – ela seria extremamente bem vinda e deveria ser recebida com encômios pelos filósofos sociais, em lugar de receber reprimendas como se se tratasse de um atentado aos sagrados princípios da igualdade, da fraternidade e da solidariedade. Mas não é isso que está em causa e sim um debate até aqui meramente teórico e que incide sobre a forma pela qual são conduzidos os gastos sociais do governo e sobre quais grupos eles projetam um melhor nível de bem estar. 
Independentemente do debate – e seus equívocos propositadamente disseminados por uma certa categoria de cidadãos que pressentem alguma diminuição do “maná” que lhes chega às mãos (e aos bolsos) sem que eles façam grande esforço para isso – deve-se ressaltar, antes de mais nada, que não há, nem pode haver, nenhuma oposição entre gastos “focados” e gastos “universais”, pela simples razão de que o Estado pratica ambos ao mesmo tempo, mediante diferentes instrumentos que incidem desigualmente sobre os grupos sociais que podem (ou não) ter acesso aos vários programas redistributivos governamentais. Opor um ao outro significa, simplesmente, não refletir sobre a natureza dos gastos públicos e sua incidência diferenciada nas várias clientelas que compõem toda e qualquer sociedade. Assim como os impostos diretos devem ser, e presumivelmente o são, progressivos, isto é, atingem desigualmente os cidadãos em função da renda auferida em suas atividades tributáveis, os gastos sociais deveriam ser, idealmente, progressivos, atingindo os mais necessitados com uma fração maior da riqueza social.
Em outros termos, o Estado recolhe de cada um segundo a sua capacidade, e dispensa favores segundo as necessidades de cada um, dentro de um quadro “universal” de políticas públicas que nem por isso é menos “focado” em função do grau de carência relativo de cada grupo social. A escola pública, por exemplo, é um dever do Estado e um serviço público universal, mas nem todos são obrigados a “universalizarem” a educação dos seus filhos nas escolas públicas, facultando-se no Brasil a existência do mesmo serviço a cargo de particulares, que fazem dessa atividade um empreendimento lucrativo. Pode-se dizer, portanto, que os cidadãos mais ricos têm o produto de seus impostos “universalizado” em favor do conjunto da sociedade, mas que eles preferem “focar” os seus filhos em estabelecimentos privados, pagando, portanto, duplamente por um serviço que está normalmente coberto pelos gastos “universais” do Estado. 
O mesmo ocorre em outras esferas, na saúde, por exemplo, segundo o mesmo esquema da “universalização impositiva” e da “focalização” da utilização do serviço, ou ainda no terreno da previdência, mas aqui segundo uma outra lógica, na medida em que determinadas categorias de cidadãos conseguiram “focalizar” em suas aposentadorias uma fração proporcionalmente maior da contribuição “universal” imposta ao conjunto da sociedade. Ou ainda no campo da educação superior, “focalizada” vantajosamente com transferências desproporcionais em relação aos gastos “focados” nos dois primeiros níveis de ensino, a partir de impostos absolutamente “universais”. 
Em síntese (e esperando que esta pequena introdução à economia política do imposto tenha ficado clara), não há nenhuma oposição conceitual ou prática entre gastos “universais” e gastos “focalizados”, pela simples razão de ambos constituem facetas dos deveres do Estado de um ponto de vista estritamente técnico. Se quisermos porém tocar no problema da equidade, ou da ética do gasto público, parece ser igualmente claro que uma maior fração do gasto público deveria dirigir-se aos estratos mais carentes da população, por uma simples razão de solidariedade humana (que está na base de qualquer sociedade digna desse nome) e também por motivos de incorporação progressiva dos grupos menos privilegiados numa divisão social do trabalho mais racional e mais conforme aos verdadeiros princípios da “universalização” de gastos e de contribuições sociais. 
Parece evidente a qualquer economista normalmente constituído que os estratos mais pobres da população são taxados pelo Estado em níveis mínimos, em virtude de sua produtividade extremamente reduzida, o que os coloca nos níveis inferiores de renda imponível. Ou seja, sua contribuição para o “bolo social universal” apresenta uma “focalização regressiva”. Os grandes progressos distributivos na sociedade avançada do capitalismo ocidental tiveram lugar, precisamente, quando o Estado, em princípios do século 20, começou a redistribuir a riqueza social via imposição e “focalização” de gastos públicos, isto é, “universalização” de serviços públicos (como escola, saneamento e obras de infraestrutura) que, por acaso, beneficiaram desproporcionalmente os mais pobres, ou seja, aqueles que até então tinham ficando à margem dos progressos da civilização e da saúde moderna.
Mas deixemos David Ricardo e os fabianos de lado para nos concentrarmos agora no caso do atual governo do Brasil, que concentra a ira escrevinhadora do filósofo social Roberto Mangabeira Unger. Ele deve estar certamente de acordo em que o Sr. Antonio Ermirio de Moraes pague ao Estado mais impostos do que o Seu Zé das Cabras, perdido no interior de Cabrobó da Serra e à margem de muitos benefícios do Estado benefactor. Acredito também que ele deve achar um escândalo que um indivíduo de classe média, como eu por exemplo, assalariado do setor público ou professor universitário, pague tanto imposto quanto o Sr. Antonio Ermirio de Moraes, ou seja, 25% (agora 27,5%) sobre a renda de cada um de nós. Um Estado verdadeiramente “universal” deveria “focalizar” uma alíquota de 35% no Sr. Antonio Ermirio de Moraes e apenas 25% em mim, já que nossas produtividades são desiguais e a capacidade contributiva dele é muito maior do que a minha. 
Mas, digamos que minha “solidariedade contributiva” me coloque no mesmo patamar do Sr. Antonio Ermirio de Moraes e eu não possa fazer nada para paliar os efeitos indesejáveis dessa desigualdade impositiva: ainda que os 25 (ou 27,5)% do Sr. Antonio Ermirio de Moraes sejam um volume muito maior de recursos do que a minha “contribuição” de assalariado, ele continua a dispor de muito mais renda suplementar do que eu, que sou obrigado a cobrir determinados “serviços” obrigatórios – hospital e estudo especializado, por exemplo – com a fração restante que me restou pós-tributo. Eu gostaria, por exemplo, que o Estado “focalizasse” esses serviços com a renda “universal” que ele auferiu de mim e do Sr. Antonio Ermirio de Moraes, em igual proporção, mas não nos mesmos montantes (é a vez dele de prestar “solidariedade contributiva”).
Assim, quando se trata de “universalização” ou “focalização” dos gastos públicos, eu preferiria, por exemplo, que o Estado não gastasse dinheiro construindo heliportos que só podem beneficiar pessoas como o Sr. Antonio Ermirio de Moraes, e se dedicasse, alternativamente, à melhoria da infraestrutura urbana de transportes (metrô, ônibus etc.), que podem beneficiar um número muito maior de usuários. Mutatis mutandis, é o que ocorre todos os dias quando prefeitos ou governadores preferem investir na expansão “focalizada” de certos eixos viários, desproporcionalmente beneficiosos aos que possuem transporte individual (carro), em lugar de se dedicar, precisamente, ao transporte público “universal”. 
Eu pessoalmente acredito que o atual governo brasileiro fez um cálculo desse gênero, ao constatar que determinados gastos sociais aparentemente “universais” – como a previdência do setor público, ou a universidade “pública”, por exemplo – estão muito mais “focalizados” numa determinada categoria da população, digamos a classe média do Sr. Roberto Mangabeira Unger, do que no conjunto da sociedade, a começar pelos mais necessitados desse tipo de “favor” do Estado benefactor. Feita a constatação, nada de mais honesto do que tentar “refocalizar” os gastos públicos, de molde a que eles sejam o mais “universais” possíveis. Não apenas esse tipo de redirecionamento é absolutamente ético do ponto de vista da solidariedade social, como ele tenta, justamente, colocar o social dentro do foco que deveria ser o seu, o seja, o maior benefício possível para o maior número de pessoas. 
Os equívocos conceituais e históricos que atingem determinados filósofos sociais são ainda mais incompreensíveis quando o pensador em questão vive na própria sociedade de onde pretende retirar seus exemplos de gastos “universais” ou “focalizados”. Vejamos, por exemplo, este trecho do artigo do Sr. Roberto Mangabeira Unger: “Programas só para os mais pobres - em vez de programas que incluam os mais pobres - não resistem aos ciclos econômicos e políticos. Nos Estados Unidos, sede da propaganda em prol da focalização, as políticas sociais universalizantes do presidente Roosevelt perduram. A ‘guerra contra a pobreza’ do presidente Johnson sumiu”.
Nada de mais equivocado e historicamente incorreto. Em primeiro lugar, de um ponto de vista meramente instrumental, programas governamentais podem ser criados em função de um determinado ciclo econômico (supostamente “depressivo”), mas eles geralmente ultrapassam, por força da inércia burocrática (e dos interesses criados em função dele), seu próprio “ciclo de vida” e se tornam permanentes e extensos demais, criando outras distorções quando sua necessidade já foi superada por uma inversão daquele ciclo econômico original. A razão burocrática é uma das que mais apresentam capacidade de latência e resistência a mudanças absolutamente inevitáveis.
“Focalizando” agora as políticas presumivelmente “universais” do presidente Roosevelt, podemos constatar que ele criou determinados “colchões” de seguro social para os mais pobres – medidas “focadas” portanto – e “universalizou” determinadas conquistas sociais e laborais que estavam sendo implementadas pelos regimes socialdemocratas de alguns países europeus (e que já tinham sido iniciadas por regimes tão pouco progressistas como o de Bismarck, a partir de 1875), e que constituíam, na verdade, políticas “focadas” nas condições de trabalho da classe operária, e portanto nem um pouco “universalizadas” para patrões, empresários ou outras categorias sociais. Essas mesmas políticas foram “universalizadas” por Vargas, no Brasil, em favor da classe trabalhadora, uma fração (ou “foco”), portanto, da sociedade em seu conjunto, não tendo sido “universalizadas” em favor dos trabalhadores rurais senão um quarto de século mais tarde. Quanto aos programas “grande sociedade” e “guerra contra a pobreza” de Johnson, não apenas eles não sumiram como constituíram a base de todo o intervencionismo social do governo americano no pós-guerra (aliás idealizados a primeira vez pelo presidente Kennedy), tendo persistido até uma data bem recente, quando disfunções e desvios demonstraram, mais uma vez, a necessidade de sua reestruturação.
Para mencionar apenas alguns dos programas do presidente Johnson, eles “universalizaram” direitos como comida, assistência pública, seguro desemprego, assistência médica básica, ajuda habitação, com um “foco”, obviamente, nos mais necessitados, isto é, aqueles situados abaixo da linha da pobreza ou momentaneamente carentes de recursos. Mais uma vez, encontramos aqui a mesma ambiguidade estatal do “universal” e do “focalizado”, características que permeiam todo e qualquer programa governamental de caráter redistributivo. 
Mais perto de nós, e sem qualquer opinião pessoal sobre sua eficácia relativa, o que é o programa “Fome Zero” senão um imenso empreendimento “universal” de “focalização” de gastos em favor dos absolutamente carentes de nossa sociedade? Por sua extensão progressiva, o governo Lula pretende atingir o “universo” dos mais pobres no Brasil, com base em determinados critérios de renda e situação familiar (foco). O que é a reforma previdenciária, empreendida pelo governo FHC e continuada pelo governo Lula, senão uma tentativa – até aqui largamente frustrada – de desviar o “foco perverso” dos gastos previdenciários – pretensamente “universais” – em favor de uma minoria de privilegiados do setor público, que conseguiu, à golpes de decretos especiosos e outras artimanhas legais, “refocalizar” a riqueza “universal” da sociedade brasileira em seu próprio favor? O que é a pirâmide invertida dos gastos educacionais senão uma perversa “focalização” desses gastos setoriais com uma fração mínima da população brasileira, aquela que consegue acesso à universidade pública? 
Eu poderia repetir os exemplos de “focalização” restrita de recursos “universais” no Brasil, mas creio que estes bastam para “focalizar” o debate naquilo que vem tentando fazer, realmente, o governo Lula: o início da correção das imensas distorções sociais e desigualdades distributivas que fizeram do Estado brasileiro, não o “pai dos pobres”, mas a mãe dos ricos e da classe média. Por isso, encontro particularmente canhestra a caracterização do Sr. Roberto Mangabeira Unger de que, agora, no Brasil, “focalização das políticas sociais é referência cifrada a guerra contra a classe média.” Ele parece não considerar que, no Brasil, ao longo dos séculos e certamente no decurso do longo século republicano, as elites e a classe média souberam organizar-se para “socializar” os gastos do Estado, focalizando as despesas em áreas e programas que sempre beneficiaram elas próprias, em lugar dos mais pobres e necessitados. Não é outro o sentido do caráter não universal, ainda hoje, do ensino fundamental e médio, ou não é isso o que ocorre de fato?
Por estas e outras razões, seu artigo me parece singularmente “fora de foco” quanto ao verdadeiro sentido de políticas sociais públicas. Contrariamente ao que ele diz, tecnocratas do Estado podem, sim, conceber, aplicar e controlar políticas “focadas” de gastos sociais que sejam as mais “universais” e inclusivas possíveis, sob a orientação e a responsabilidade do homem que tem a seu encargo a ingrata tarefa de corrigir as muitas políticas “desfocadas” do Brasil injusto, para torná-lo uma nação menos desigual para o imenso universo de seus filhos mais pobres.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 de dezembro de 2003