Claro, ela estava brincando, e referindo-se à Copa do Mundo, mas é verdade que o Brasil sempre teve relações tempestuosas com o Fundo, e desde outros Carnavais: começamos com um acordo, em 1958, que foi denunciado demagogicamente pelo presidente Juscelino Kubitschek, "apenas" porque ele queria construir Brasília sem orçamento, à margem do orçamento, contra o orçamento. O FMI só queria que o Brasil colocasse suas contas em ordem, mas a consequência foi o início da inflação no Brasil, que resultou em 1964, e depois na voragem dos anos 1980 e início dos anos 1990. Parece que, agora mesmo, os companheiros, que já chamaram a diretora-gerente do FMI de "presidenta" do FMI, e que também denunciaram, demagogicamente um acordo com o Fundo (o de 2002, renovado em 2003, e que poderia ir até 2007, mas interrompido por eles em 2005, a um grande custo para o Brasil), estão provocando mais inflação, para desgosto de todos nós que já sofremos bastante sob os ciclos inflacionários anteriores.
Enfim, hoje mesmo acabo de terminar um artigo sobre as relações entre o Brasil e o FMI, nestes 70 anos de história desde Bretton Woods. Aliás, começo antes, como revelado neste resumo do artigo que transcrevo abaixo, mais o sumário do artigo. Mais adiante, darei conhecimento da íntegra.
“O Brasil e o FMI desde
Bretton Woods: 70 anos de História”.
Resumo: Ensaio sobre a inserção do Brasil no sistema monetário internacional,
desde antes de Bretton Woods: uma conferência interamericana no Rio de Janeiro,
em 1942, já previa o estabelecimento de um Fundo Internacional de
Estabilização. O ensaio retraça o itinerário do FMI, com destaque para a
mudança de padrão cambial em 1971, e segue as relações entre o Brasil e a
instituição, com ênfase nos acordos contraídos sob diferentes políticas
econômicas e em momentos diversos de crises nas transações externas; o primeiro
acordo foi rompido por razões políticas em 1958, e o mais recente, de 2003, foi
suspenso em 2005, antes de sua conclusão, também por motivos políticos. São
destacados os problemas enfrentados pelo FMI no período – estabilidade cambial,
liquidez, monitoramento das economias nacionais – e as circunstâncias que
levaram o Brasil a contrair seus muitos acordos com a instituição; uma tabela
final lista todos esses acordos e os valores envolvidos.
Sumário:
1. O FMI começou
no Brasil, dois anos antes de Bretton Woods
2. Os Direitos
Especiais de Saque também começaram no Brasil
3. Os
desequilíbrios se acumulam e Nixon corta o Nó Górdio de Bretton Woods
4. Os choques do
petróleo e a crise da dívida latino-americana dos anos 1980
5. Encontros e
desencontros entre o Brasil e o FMI nas
duas décadas perdidas
6. As crises
asiáticas e a moratória russa: o Brasil volta ao FMI
7. A crise argentina
e cenário eleitoral de 2002: as novas fases do drama
8. A esquerda
anti-FMI e o fim dos acordos formais
Anexo: Brasil:
acordos formais estabelecidos com o FMI, 1958-2010
Até lá
Paulo Roberto de Almeida
Brasil não está fazendo reformas estruturais, diz diretora do FMI
O Globo, 30/07/2014
Às vésperas do recesso de verão do Fundo Monetário
Internacional (FMI), a diretora-gerente Christine Lagarde reuniu-se na
manhã desta terça-feira com um grupo de jornalistas, na sede do
organismo multilateral, para discutir as perspectivas da economia
mundial. Ao falar do Brasil, brincou que o país foi “uma força
perturbadora” dos trabalhos do organismo por um mês, devido à Copa do
Mundo, durante a qual funcionários, diretores e ela própria pararam
constantemente para acompanhar os jogos. Mas também falou sério.
Questionada se, diante de 15 meses de prognósticos ruins e repetição das
mesmas recomendações, o governo brasileiro estava falhando na adoção de
políticas para corrigir fragilidades, diplomaticamente concordou:
— Temos reiterado as mesmas fortes recomendações para que reformas
estruturais sejam feitas, gargalos sejam reduzidos na economia e que o
potencial, a capacidade de o Brasil entregar crescimento seja liberada. E
isso não vem sendo feito — afirmou a diretora-gerente, que colocou o
Brasil ainda em estado de atenção em relação à expansão do déficit em
conta corrente (que fechou em 3,6% do PIB, ou 2,9% justados, em 2013,
para um patamar que o Fundo considera ideal entre 1% e 2,5%).
Lagarde reforçou a mensagem de que o mundo passa por um período de
retomada desigual do crescimento, com tração nos motores dos países
ricos e desaceleração sincronizada e sistemática das nações emergentes.
Alertou para os riscos associados à normalização das políticas
monetárias dos EUA e do Reino Unido, que pode provocar turbulências e
desarrumar ainda mais a casa dos países em desenvolvimento.
O receituário para vencer os obstáculos, disse Lagarde, é inequívoco:
reformas estruturais, conserto dos problemas macroeconômicos (inflação
alta, déficits em contas externas, desequilíbrios fiscais) e muita
coordenação entre autoridades.
Ela acredita ainda que a criação de mecanismos como o Arranjo de
Contingência de Reservas (ACR) das nações que compõem o Brics (Brasil,
Rússia, Índia, China e África do Sul) não afronta o FMI, e sim convoca
parceria entre os diversos agentes, refletindo um mundo multipolar mas
interdependente. A diretora-gerente considera ainda que a falha do
Congresso dos EUA em ratificar a reforma de governança do Fundo, que
dará mais poder aos emergentes, não afeta a eficiência da instituição
nem lhe retira credibilidade.
Sobre a iminência de default da Argentina, nesta quarta-feira,
Lagarde afirma que os efeitos serão circunscritos ao país sul-americano,
do ponto de vista de turbulências. Mas o episódio acentuará a
necessidade de reavaliação dos processos de reestruturação de dívida, da
eficiência da ação coletiva, “(d)a escolha de leis e outros critérios
legais tipicamente encontrados nesses casos”. O próximo trabalho do FMI
sobre o tópico será apresentado à diretoria-executiva do órgão entre o
fim de setembro e o início de outubro, pouco antes da Reunião Anual da
instituição e do Banco Mundial, em Washington.
Abaixo, alguns trechos da entrevista.
CONDIÇÕES GLOBAIS
“Estamos passando por uma recuperação desigual do crescimento global.
O que estamos identificando é risco associado com a normalização das
políticas monetárias dos países ricos, começando com EUA e Reino Unido. O
Fed (Federal Reserve, BC americano) e o Banco da Inglaterra estão agora
considerando o fim dos estímulos e a elevação dos juros. Banco Central
Europeu e Banco do Japão provavelmente continuarão mais um tempo com a
política acomodativa. Haverá consequências. Se a comunicação for bem
calibrada e feita, acreditamos que os efeitos colaterais serão
administráveis. Mas claramente temos em mente o que aconteceu em maio do
ano passado e como apenas a comunicação da intenção afetou os mercados
emergentes”.
Emergentes
“Também temos uma desaceleração mais sincronizada dos emergentes. Eu
colocaria a China de lado, pois medidas tomadas vão segurar o
crescimento de 7,5%. Mas demais emergentes, sim. Isso terá
‘consequências para a vizinhança’, no sentido de que os países que
comercializam ou se beneficiam de investimentos dessas nações emergentes
vão arcar com os efeitos desta desaceleração sincronizada. Se levarmos
esses dois elementos em consideração (desaceleração e normalização
monetária dos ricos), claramente haverá impacto na tentativa das
autoridades tomarem medidas e realçar a fragilidade do crescimento”.
Setor externo e ações
“(Antes), era mais uma questão do superávit da China versus o déficit
dos EUA no debate. O que vemos agora é menos desequilíbrio, mas esta
questão está mais espalhada. Do lado superavitário, claramente vemos
dois líderes, China e Alemanha. Do lado do déficit, temos os suspeitos
de sempre, os EUA e alguns dos países europeus, mas também países como
Turquia, África do Sul e Brasil. Está espalhando-se esse lado do
déficit. Então, acreditamos que o caminho de políticas é manter a casa
em ordem, cada um com suas particularidades no caso dos emergentes. O
que é comum a todos é fazer reformas estruturais de diversas categorias.
E nos frontes monetário e fiscal, cada um também tem políticas para
adotar. A segunda recomendação é: falem uns com os outros. E a terceira é
cooperem o quanto puderem. Parece incongruente recomendar cooperação em
tempos em que você não vê muita cooperação, mas, economicamente, isso é
o mais desejável, mais comunicação, mais cooperação, particularmente os
banqueiros centrais, quando forem mudar o curso de política”.
Copa do Mundo
“O Brasil foi uma força perturbadora do trabalho do FMI recentemente,
porque a Copa do Mundo mobilizou todo mundo nesta instituição, todos
grudados na tela de TV por um mês e muitos jogos. Afetou todos os níveis
da instituição, dos diretores-executivos ao staff, incluindo a
diretora-gerente, embora eu não tenha assistido todos os jogos, mas vi
alguns”.
Brasil
“É verdade que temos revisado para baixo nossas projeções para o Brasil e
é verdade que todos temos reiterado as mesmas fortes recomendações para
que reformas estruturais sejam feitas, gargalos sejam reduzidos na
economia e que o potencial, a capacidade de o Brasil entregar
crescimento seja liberada. E isso não vem sendo feito”.
Argentina
“Estamos obviamente monitorando a situação. A Argentina está fora dos
mercados financeiros e de qualquer círculo financeiro há muito tempo e,
embora defaults sejam sempre lamentáveis, nós não temos a visão de que
teria grandes consequências significativas além daquela situação
geográfica particular (…) (há) a questão significativa dos princípios da
reestruturação de dívidas e qual seria o resultado das decisões legais
que estão sendo tomadas em NY no momento, que têm significado mais
amplo. Os princípios da reestruturação de dívidas e a eficiência da ação
coletiva precisarão ser reavaliadas, junto com escolhas de leis e
outros critérios legais tipicamente encontrados nesses casos. É neste
ponto em que estamos trabalhando e continuaremos nos próximos meses”.
Reforma de governança e credibilidade o FMI
“Sobre (a redistribuição das) cotas, não acho que afete a eficiência
do Fundo, a efetividade da diretoria. Quando olho para os nossos
programas, linhas de crédito em vigor, a estabilidade que tentamos
entregar por intermédio da nossa assistência técnica, da supervisão
bilateral que oferecemos baseada em 70 anos de expertise em campo, não
acho que a falha de alguns membros em aprovar a reforma de governança é
um impedimento às nossas operações. Isso está corroendo a credibilidade
da instituição. Alimenta algumas pesquisas acadêmicas e alguns
editoriais de observadores, mas na minha vida cotidiana, nas nossas
operações com o staff e os membros da diretoria, e, mais importante, nas
minhas tratativas com as autoridades dos países, incluindo com as dos
países do Brics, isso não afeta o Fundo e não corrói nossas ações”.
Iniciativas financeiras dos Brics
“O Arranjo de Contingência de Reservas (ACR) criado pelo Brics vem
sendo construído nos últimos três ou quatro anos. Então, acho que é
bastante independente da falha dos EUA em ratificarem a reforma (de
governança). É atribuída uma ligação pelos observadores, mas o Brics já
vinha falando disso há algum tempo, eles decidiram em um encontro deles,
há alguns anos, os princípios (do ACR). Há uma cooperação intrínseca
entre o ACR e o FMI. Dos US$ 100 bilhões que o Brics reservaram, cada
membro pode sacar do que aportou até 30%. Para mais, tem que ter um
programa em curso com o FMI. Quando se olha para a relação do FMI com
essas novas agências, os acordos, é muito similiar ao Chiang Mai
(mecanismo de contingência e reserva) criado pelos países asiáticos, que
tem o FMI do outro lado. Não digo que foi um ‘corte e cola’. O Brics
não é uma região, Brics é um agrupamento com interesses comuns. Embora,
por interesses comuns, eu digo a mim mesma ‘eles não são a mesma coisa
de forma alguma’…”.
Papel do FMI
“Estamos celebrando os 70 anos das instituições de Bretton Woods e há
muita nostalgia expressa sobre os objetivos dos ‘fundadores’. O mundo
mudou ao redor do FMI e o próprio Fundo mudou imensamente. E continuará a
mudar. Esta é uma das belezas desta instituição, ela se ajusta, é
flexível, mudamos os instrumentos e os programas ao longo do tempo,
mudamos a supervisão, ampliamos massivamente a assistência técnica. E
continuaremos a fazê-lo. Todo o mundo está mudando continuamente. O
equilíbrio de poder está mudando, há confrontos e há poderes econômicos
emergindo, se consolidando e cooperando, há efeitos sobre os vizinhos,
que valerá a pena continuar explorando. O fato é que a rede de proteção
que os coreanos particularmente demandaram no encontro do G-20 vem sendo
construída, em torno do arranjo do Chiang Mai, do mecanismo europeu de
estabilidade, do ACR, dos instrumentos de swap entre vários bancos
centrais. Isso reflete o fato de que o mundo é vastamente global e
interdependente e precisa, provavelmente, de diferentes camadas nesta
rede de proteção. Mas não vejo nada que seja inconsistente com a missão
do FMI, que acho que é coordenação, cooperação entre os pilares das
redes de proteção internacionais – das quais o FMI é a peça central”.