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terça-feira, 24 de outubro de 2017

Alguem inteligente pode-se pretender comunista hoje em dia? - Paulo Roberto de Almeida

Essa pergunta aparentemente ingenua, ou marota, foi a gota d'água entre os membros de uma revista tipicamente acadêmica para que eles decidissem retirar-me de seu corpo editorial. Com efeito, convidado em 2001 a integrar o "staff" de colaboradores regulares da revista digital "Espaço Acadêmico", não deixei, durante 10 anos, de oferecer meus artigos todos os 12 meses de cada ano transcorride desde então, sempre criticando a "alienação" – esse conceito típico do jovem Marx – de meus colegas acadêmicos, no seu esquerdismo canhestro, contraditório e, em última instância, prejudicial à boa qualidade dos cursos de humanidades em geral.
Acho que, depois de várias críticas indiretas, exagerei na dose, ao acusar diretamente meus colegas de serem pouco inteligentes. Pouco depois fui "desconvidado" do corpo editorial, embora sempre recorram a mim para dar parecer sobre determinados artigos submetidos que tenham a ver com economia ou relações internacionais.
Eis a ficha do trabalho "maldito", transcrito mais abaixo:

2292. “Pode uma pessoa inteligente pretender-se comunista, hoje em dia?; Reflexões sobre um paradoxo acadêmico brasileiro”, Brasília, 2 agosto 2011, 13 p. Crítica às crenças fundamentalistas do socialismo marxista na substituição de um modo de produção resultante de processos sociais incontrolados e impessoais, como o capitalismo, por um outro, concebido de maneira ideológica e pretendendo operar um exercício de engenharia social com base em premissas equivocadas e pressupostos equivocados sobre o funcionamento de uma economia de mercado. Revista Espaço Acadêmico (ano 11, n. 123, agosto 2011, p. 125-136; link: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/14334/7601; link em pdf: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/download/14334/7601). Relação de Publicados n. 1042.

 
Pode uma pessoa inteligente pretender-se comunista, hoje em dia?
Reflexões sobre um paradoxo acadêmico brasileiro

Paulo Roberto de Almeida

1. Introdução metodológica: uma tradição passadista que não passa
A pergunta do título não pretende contrapor-se, em geral, a toda uma categoria de pessoas, nem visa interrogar alguém, em particular. Sua intenção é a de questionar certas ideias bem delimitadas no universo das ideologias, concentrando-se, em especial numa concepção determinada: a ideologia do comunismo, que em grande medida confunde-se com a teoria marxista (Por teoria marxista entenda-se o conjunto de escritos e argumentos de Marx, Engels, Lênin e alguns outros, que são comumente utilizados para fundamentar a validade empírica, a evolução lógica e a sustentação material de sociedades comunistas.) A motivação deste artigo decorre do fato de que existem pessoas, em pleno século 21, que nunca negaram sua adesão a essa concepção vinda do século 19 e que tampouco fizeram qualquer trabalho de revisão séria sobre as consequências práticas dessas ideias, tal como aplicadas ao longo do século 20.
Vista pelo lado afirmativo, a questão do título poderia indicar que qualquer pessoa que pretenda, atualmente, afirmar-se comunista (ou socialista, na tradição marxista ou leninista) corre o risco de ser considerada como singularmente carente de inteligência mais sofisticada; ou poderia, pelo menos, ser vista como desprovida de senso crítico mais agudo. Em muitos casos, na verdade, a origem da autodesignação pode revelar apenas ignorância ingênua ou pura desinformação juvenil. Nos casos mais renitentes, pode-se, talvez, classificar os mais entusiastas da causa como fundamentalistas ilógicos, quando não se trata, no caso dos mais velhos, de pura e simples desonestidade intelectual.
Sem pretender ofender alguém em particular – muito embora eu tenha deparado com vários representantes desse credo no decorrer de minhas peregrinações acadêmicas e alguns cruzamentos político-partidários – o objetivo principal deste artigo é apenas o de examinar um conceito, o do comunismo, em seus determinantes lógicos, em sua eventual fundamentação empírica e, sobretudo, em suas consequências práticas, o que o aproxima de qualquer ensaio acadêmico que pretenda tratar de questões reais das sociedades existentes em nossa época. Não se pretende aqui tratar do sexo dos anjos, e sim de uma questão que costuma estar presente em nossas academias – com maior força nas áreas de humanidades – e também em algumas seitas políticas, e que continua a mobilizar a atenção de certo número de pessoas, ainda que, nos dias que correm, em proporção crescentemente diminuta (se me permitem o paradoxo verbal).
Por que o faço? A resposta é complexa, mas vamos ficar com uma bem simples. As faculdades brasileiras de humanidades estão povoadas, hoje em dia, de seres saídos de antigas camadas geológicas da teoria social, algo como o pré-cambriano dos estudos sobre a sociedade e suas transformações. Em lugar de focar os problemas correntes, professores que aderem ao clero de maneira totalmente acrítica, remetem os alunos a textos góticos do século 19 e os obrigam a interpretar a economia atual com categorias defasadas, que nada têm a ver com as características essenciais do capitalismo globalizado. Como estou me colocando mais do lado dos alunos do que dos professores, creio ser meu dever alertar aos primeiros que eles estão sendo enganados – torturados seria uma expressão mais adequada – por mestres preguiçosos que não fazem pesquisa e que preferem repisar e repassar velhos textos que confortam certos preconceitos pessoais, mas que nada têm a ver com a realidade vivida por alunos, ou pelas pessoas, em geral.

Pois bem, estou fazendo uma pergunta, que é quase uma acusação, e o faço de forma consciente, esperando com isso suscitar algum debate intelectual, o que pode revelar-se uma vã esperança. A sugestão do título é a de que a pessoa que se afirma comunista, nos dias que correm, renunciou a pensar de modo livre, está dominada por premissas emboloradas, por preconceitos ideológicos ultrapassados, já que uma caracterização desse tipo agride a lógica, a experiência histórica conhecida e a simples realidade dos fatos. Este é o debate, aqui colocado em termos diretos.
Tenho plena consciência, aliás uma quase certeza, de que não haverá debate, pois os “indiciados”, podem sempre alegar que os estou ofendendo, que eles não aceitam o questionamento do título, não cabendo, portanto, debate com uma pessoa tão arrogante e tão desrespeitosa das crenças alheias. Voilà, acho que encontrei o conceito correto: crença! Sim, estamos falando basicamente de uma crença, já que não existem sociedades comunistas atualmente e desafio qualquer um a provar que existem chances reais de que qualquer uma venha a existir no futuro previsível. Quem desejar pode aceitar o desafio.
Como alguns dos espaços e veículos em que escrevo é frequentado por pessoas que se intitulam comunistas, que se pretendem comunistas e que defendem causas que elas consideram ser comunistas, o desafio lhes é lançado diretamente, mas como disse acima, duvido que elas venham a enfrentá-lo. Não obstante, formulo novamente o tema deste artigo e o deixo como problema a ser debatido. Minha hipótese de trabalho, a ser exposta nos parágrafos que seguem, é que nenhuma pessoa inteligente pode, hoje em dia, razoavelmente falando, pretender-se comunista ou defender causas comunistas.
Dito isto, vamos ao que interessa, não sem antes um comentário inicial. O autor destas linhas também já se proclamou comunista, em tempos idos, e conhece razoavelmente bem a literatura marxista (e tudo o que circula em volta). Como membro da academia, já leu, percorreu, repetiu os conceitos-chaves do credo e já pretendeu transformar o Brasil num país socialista. De certa forma, é impossível ser sociólogo, em qualquer sociedade contemporânea, sem ser também um pouco marxista, uma vez que o marxismo integra a construção da moderna teoria social. Quanto a ser comunista é outra questão, que remete a um conjunto de crenças, que devem ser testadas contra a realidade.
Ao ter aderido ao comunismo em fase ainda juvenil de sua vida, este autor percorreu depois a realidade dos comunismos (ou socialismos) realmente existentes, praticamente todos, ou pelo menos os mais importantes. Dessas visitas, ele retirou preciosas reflexões que contribuíram para a revisão de algumas crenças juvenis; ele também aprofundou seu conhecimento dos capitalismos realmente existentes – e de muitos outros sistemas pré-capitalistas (como na maior parte da América Latina, por exemplo), mediante viagens extensas de trabalho e de lazer, o que contribuiu mais ainda para uma saudável revisão de suas velhas concepções. Sobre isso, caberia acrescentar leituras variadas, e não apenas dentro do universo conceitual do marxismo estabelecido, o que é sempre recomendável para quem pretende aperfeiçoar seus conhecimentos sobre o mundo realmente existente, além e acima de quaisquer crenças com base em sistemas fechados de ideias. Esta é a base, portanto, da discussão que pode agora começar.

2. Um exemplo, entre outros, da crença persistente: Antônio Cândido
Para não tornar esta discussão muito abstrata, conviria ilustrá-la com declarações atuais sobre o tema em questão partindo de um true believer, na expressão coloquial retirada do inglês, ou seja, um verdadeiro crente. O que tem a dizer sobre o assunto um intelectual respeitado na academia brasileira, Antônio Cândido, cujos argumentos são recebidos com toda a distinção que merecem as verdadeiras “vacas sagradas” da intelligentsia brasileira?
Entrevistado recentemente por um jornal desse universo intelectual, Antônio Cândido assim respondeu à pergunta de se era socialista (e, neste caso, e para todos os efeitos, o adjetivo socialista é completamente similar à caracterização de comunista, uma vez que baseado nos mesmos princípios ideológicos que sustentam esse sistema de interpretação da realidade, que é a filosofia marxista):
Brasil de Fato: O senhor é socialista?
AC: Ah, claro, inteiramente. Aliás, eu acho que o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é paradoxo. O que é o socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram juntos, na revolução industrial. É indescritível o que era a indústria no começo. Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a aparecer o socialismo. Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social, cooperativismo... tudo isso.[1]

O que surpreende nesse tipo de manifestação, em primeiro lugar, é a total falta de consistência do pensamento desse autor, cultuado na academia brasileira como um dos maiores sociólogos da nacionalidade, quanto às necessárias distinções entre, de um lado, processos reais, desenvolvidos ao longo dos séculos como resultado de movimentos “tectônicos” no plano das forças produtivas e das relações de produção (para ficar na terminologia habitual), e, de outro, construções mentais, propostas ideológicas, projetos de engenharia social que só podem ser plataformas políticas, ou programas partidários a serem debatidos pelos movimentos sociais e agrupamentos políticos, mas que jamais poderiam ser colocados no mesmo plano dos processos reais. O socialismo jamais poderia ter sido, e nunca foi, o irmão-gêmeo do capitalismo pela simples razão de que se trata de um sistema inventado pelo homem, não uma construção social, impessoal, progressiva e absolutamente desprovida de qualquer senso de direção pré-determinado.
O que o aclamado sociólogo ignora completamente, em segundo lugar, é que todos os modos de produção social existentes, passados ou presentes, inclusive os puramente baseados num “arranjo político” (como o socialismo, portanto) se baseiam em certa coerção ao trabalho, qualquer que sejam as formas peculiares que assumem as relações de produção e as formas específicas de apropriação dos resultados do processo de produção. Não existe nenhum sistema de produção um pouco mais complexo do que a simples organização extrativista rudimentar que não se baseie em divisão do trabalho (sexual ou social), em algum sistema de trocas relativamente organizado (por forças que se destacaram do mundo do trabalho, portanto) e em mecanismos de interação e de solução de litígios que já impliquem uma autoridade qualquer baseada na dominação política e na exploração econômica (inclusive, e sobretudo, no socialismo). Ou seja, a proposta quanto à não-exploração, ou quanto à igualdade fundamental do ser humano, parte de premissas totalmente descoladas da realidade dos processos produtivos e absolutamente inaplicáveis em condições reais do mundo do trabalho e da satisfação das necessidades humanas.
A falha metodológica revelada pelo mestre é particularmente grave, uma vez que ele confunde o movimento real das sociedades com o movimento das ideias que perpassam as sociedades, que podem, ou não, oferecer algum substrato real, ou serem apenas o reflexo de elaborações mentais que, por mais “geniais” que possam ser – e as contribuições de Marx constituem, de fato, poderosos instrumentos analíticos para a compreensão das sociedades burguesas e das economias capitalistas – não representam senão o fruto de uma construção intelectual não necessariamente compatível com os dados da realidade. Igualmente decepcionante é a sua compreensão do que seja o socialismo, pois revela um conhecimento deficiente, para não dizer ingênuo, das bases intelectuais da doutrina marxista sobre o socialismo. Perguntado pelo mesmo órgão de imprensa, sobre se “é possível o socialismo existir triunfando sobre o capitalismo?”, o mestre respondeu o que segue:
AC: (...) Digo que o socialismo é uma doutrina triunfante porque suas  reivindicações estão sendo cada vez mais adotadas. Não tenho cabeça teórica, não sei como resolver essa questão: o socialismo foi extraordinário para pensar a distribuição econômica, mas não foi tão eficiente para efetivamente fazer a produção. O capitalismo foi mais eficiente, porque tem o lucro. Quando se suprime o lucro, a coisa fica mais complicada. É preciso conciliar a ambição econômica – que o homem civilizado tem, assim como tem ambição de sexo, de alimentação, tem ambição de possuir bens materiais – com a igualdade. Quem pode resolver melhor essa equação é o socialismo, disso não tenho a menor dúvida. Acho que o mundo marcha para o socialismo. Não o socialismo acadêmico típico, a gente não sabe o que vai ser... o que é o socialismo? É o máximo de igualdade econômica. Por exemplo, sou um professor aposentado da Universidade de São Paulo e ganho muito bem, ganho provavelmente 50, 100 vezes mais que um trabalhador rural. Isso não pode. No dia em que, no Brasil, o trabalhador de enxada ganhar apenas 10 ou 15 vezes menos que o banqueiro, está bom, é o socialismo.[2]

Em outros termos, o professor aposentado pensa o socialismo como a realização da igualdade, ou mais exatamente, como a diminuição das desigualdades existentes. Ora, essa compreensão está em completo desacordo com a teoria marxista e com as premissas sobre as quais foram construídos os sistemas marxistas, ou dos socialismos realmente existentes, no século XX. Para os teóricos do marxismo, o socialismo – e, na sua sequência, o comunismo – seria a abolição das relações de produção capitalistas, não a simples aproximação dos rendimentos médios do trabalhador assalariado das categorias mais bem pagas da sociedade capitalista. A premissa básica seria a abolição do conceito mesmo de propriedade privada, com a socialização completa das forças produtivas, colocadas sob controle da categoria universal alegadamente detentora da solução final para as contradições fundamentais de toda sociedade de classes, e que por isso mesmo redundaria na abolição de todas as classes sociais, especificamente na dominação política de uma classe dominante sobre as demais. Quem não partilha dessas premissas não pode, legitimamente, pretender-se comunista, ou socialista marxista. A menos, claro, que pretenda na prática afirmar-se como social democrata, que seria a versão reformista, light, ou rósea, do socialismo marxista (e, como tal, denunciada em vários escritos dos que se pretendem comunistas verdadeiros).
O mais surpreendente, ainda, é que o velho mestre se mostra singularmente desinformado sobre as realidades do socialismo real ao redor do mundo, como também especialmente confuso sobre o tipo de sociedade existente sob o modo de produção capitalista. Perguntado sobre o que “o socialismo conseguiu no mundo de avanços?”, ele argumentou:
AC: O socialismo é o cavalo de Troia dentro do capitalismo. Se você tira os rótulos e vê as realidades, vê como o socialismo humanizou o mundo. Em Cuba eu vi o socialismo mais próximo do socialismo. Cuba é uma coisa formidável, o mais próximo da justiça social. [3]

Pronunciando-se, logo em seguida, sobre como ele via a sociedade capitalista, o mestre consegue, em poucas frases desvendar sua incompreensão total do que seja uma sociedade de mercado – que pode ser, ou não, capitalista – e de como funciona, de fato, a sociedade de consumo; ele revela, ademais, uma ignorância fundamental sobre a própria natureza do processo produtivo – sob qualquer modo de produção, registre-se –, já opondo-se, de fato, a qualquer avanço tecnológico, sob qualquer pretexto. A ingenuidade, ou ignorância, é abissal, e surpreende que banalidades desse tipo sejam recebidas sem qualquer comentário crítico por marxistas e não marxistas da academia, que teriam, pelo menos, a obrigação da coerência epistemológica e da adequação dos argumentos aos fatos materiais da vida como ela é. Registre-se alguns extratos finais, portanto:
AC: A coisa mais pérfida do capitalismo –por causa da necessidade cumulativa irreversível – é a sociedade de consumo. Marx não conheceu, não sei como ele veria. A televisão faz um inculcamento sublimar [sic] de dez em dez minutos, na cabeça de todos (...) imagens de whisky, automóvel, casa, roupa, viagem à Europa – cria necessidades. E claro que não dá condições para concretizá-las. A sociedade de consumo está criando necessidades artificiais e está levando os que não têm ao desespero, à droga, miséria... Esse desejo da coisa nova é uma coisa poderosa. O capitalismo descobriu isso graças ao Henry Ford. O Ford tirou o automóvel da granfinagem e fez carro popular, vendia a 500 dólares. Estados Unidos inteiro começou a comprar automóvel, e o Ford foi ficando milionário. De repente o carro não vendia mais. Ele ficou desesperado, chamou os economistas, que estudaram e disseram: “mas é claro que não vende, o carro não acaba”. O produto industrial não pode ser eterno. O produto artesanal é feito para durar, mas o industrial não, ele tem que ser feito para acabar, essa é coisa mais diabólica do capitalismo. E o Ford entendeu isso, passou a mudar o modelo do carro a cada ano. Em um regime que fosse mais socialista seria preciso encontrar uma maneira de não falir as empresas, mas tornar os produtos duráveis, acabar com essa loucura da renovação. Hoje um automóvel é feito para acabar, a moda é feita para mudar. Essa ideia tem como miragem o lucro infinito. Enquanto a verdadeira miragem não é a do lucro infinito, é do bem-estar infinito.[4]

Os dois conjuntos de argumentos são propriamente inaceitáveis por quem quer que examine o mundo real, seja a situação efetiva na Cuba “socialista”, seja as formas pelas quais está organizada a sociedade de consumo – que pressupõe uma sociedade produtiva, em primeiro lugar – em qualquer regime imaginável de organização social da produção, inclusive o da produção “artesanal”. Tomar suas palavras como possuindo um grau mínimo de aderência à realidade – o que elas não possuem, obviamente –, seria como se em Cuba não existisse sociedade de consumo, como se os cidadãos cubanos não consumissem produtos – de quaisquer origens – e como se a ausência de uma maior variedade de produtos, ou até a existência concreta de um regime de penúrias, como aquele registrado na Cuba socialista, fosse a realização suprema da “justiça social”. O consumo existe em qualquer sociedade do mundo, de qualquer época histórica e de qualquer sistema produtivo, sendo aliás inerente à natureza do ser socialmente produtivo que é o homem – e isto é puro marxismo, estando mais explícito em textos de Engels -- o fato de se estar sempre avançando na escala produtiva, pela inovação de produtos ou de processos que permitam oferecer os bens essenciais e, depois, vários bens “supérfluos”, aos melhores preços possíveis para o consumo da maior parte da sociedade.
No decorrer de um longo processo histórico, o sistema produtivo que mais próximo se acercou desse ideal de crescimento sustentado com base em transformações produtivas incrementais – algumas delas, aliás, revolucionariamente inovadoras – e na distribuição social dos benefícios desse crescimento foi justamente o capitalismo, não o socialismo. Daí a resiliência do capitalismo aos desafios revolucionários que ele enfrentou ao longo do tempo, advindo não apenas de contradições sociais que são inerentes a toda e qualquer forma de organização social da produção, mas igualmente de alternativas ideológicas que foram sendo servidas ao longo da história para tentar conceber um sistema que fosse ou mais eficiente, ou mais justo e igualitário, ou ambos.
Não é preciso retomar aqui o resultado efetivo dessa competição entre sistemas e ideias, pois sabemos que a forma mais disseminada nos supermercados da história foi mesmo, anda que temporariamente, a do capitalismo, que nada mais é do que uma das formas da economia de mercado, aparentemente tão desprezada pelo velho mestre Antônio Cândido. Chega a ser, assim, patético, ler suas considerações sobre a sociedade de consumo ou sobre o capitalismo, pois elas nada mais revelam do que uma incompreensão fundamental quanto ao modo de funcionamento das sociedades – de qualquer sociedade – e do sistema de produção de mercado, inclusive suas formas capitalistas ou proto-capitalistas. O silêncio de marxistas, de socialistas, ou de comunistas – assumidos como tais – sobre tais tipos de argumentos pode representar concordância básica quanto às suas premissas, discordância discreta e não explicitada quanto aos fundamentos históricos de afirmações tão absurdamente equivocadas, ou simplesmente incapacidade de raciocinar com base na lógica elementar e nos princípios da coerência epistemológica. Em qualquer dos casos, parece suficientemente grave, pois materiais desse tipo do registrado neste texto elementar de crítica acadêmica circulam de modo amplo pelas salas e corredores das universidades públicas brasileiras e são comentados nos sites e blogs mais vinculados a esse universo mental.

3. Comunismo: apenas um sistema de crenças, sem consistência real
Retomemos, aqui, a questão central do que pretende ser um debate atinente aos cursos de ciências sociais de nossas academias: qual é o estatuto social, ou ideológico, dos argumentos em defesa do socialismo – e por extensão do comunismo – que continuam a impregnar não só a didática e a docência no universo das humanidades, como também a estruturação de movimentos políticos que pretendem oferecer um tipo qualquer de alternativa ao capitalismo realmente existente? A postura deste autor já foi colocada na seção introdutória, qual seja: o conjunto de argumentos que sustenta a defesa da doutrina – e das propostas de organização social e econômica – do comunismo (em seus fundamentos marxistas) remete a um universo mental que poderia ser chamado de crença ou assimilado às crenças. Estas constituem uma assemblagem de “explicações mágicas” sobre a realidade que não respondem a quaisquer testes provados no mundo real, ou seja, que não sustentam o teste da realidade, mas que ainda assim continuam, como todas as crenças, a suscitar adesões inquestionadas a suas premissas equivocadas por alguma necessidade psicológica de seus aderentes de não enfrentar o mundo real.
Resumindo: a pessoa que, hoje em dia, se proclama comunista – algumas até orgulhosamente – está demonstrando uma crença num conjunto de preceitos que remete a um universo especial, o do salvacionismo, um movimento vinculado ao utopismo e a todas as seitas que pretendem ter a chave mágica do universo, para a salvação da humanidade, com base num conjunto de princípios de “engenharia social” e de valores não testados nos laboratórios da realidade. O comunismo (e não apenas hoje em dia) é parente direto das concepções utópicas sobre a organização social e econômica das sociedades, não obstante a pretensão de seus proponentes e seguidores de insistir em seu “caráter científico”. A lógica elementar e confronto com os dados da história permitem esclarecer e descartar suas afirmações muito rapidamente, ainda mais facilmente no caso de frases sem sentido como as transcritas aqui de um respeitado intelectual brasileiro. Uma discussão final, atinente ao problema da apreensão do mundo real e à questão do registro histórico, tocará nestes pontos, ainda que de modo sumário.
O próprio da ciência é trabalhar com um conjunto de hipóteses que deverão, em seguida, ser testadas para que se comprove sua fiabilidade em face dos dados do real. Pode até existir uma teoria prévia à formulação das hipóteses, mas o mais comum é que a teoria apareça após testes repetidos das concepções iniciais, para que daí se extraiam regras gerais e, portanto, “leis” quase invariáveis de desenvolvimento. Nem sempre é assim, e algumas teorias sobrevivem mesmo na ausência de testes comprobatórios, mas pode-se deduzir a fiabilidade de uma teoria por meio de deduções inteligentes. Por exemplo, é muito difícil observar a “evolução”, mas é possível aderir à teoria da seleção natural darwiniana, com base nos registros geológicos e nos dados da história natural (para isso basta visitar qualquer museu de história natural). Aliás, seria impossível trabalhar de modo adequado nas ciências geológicas e nas biológicas sem a aceitação dos princípios básicos da seleção natural. O trabalho de laboratório é todo ele fundamentado nas ideias darwinianas, que sustentaram gloriosamente os testes do tempo e da realidade.
Pode-se, por acaso, dizer o mesmo do conjunto de afirmações que sustentam a crença na “teoria materialista da história”, na luta de classes como fundamento da evolução das sociedades humanas? É possível acreditar na “evolução” determinista das sociedades existentes em direção ao comunismo, como apregoado pela “teoria marxista”? Por fim: existe alguma base real para confirmar as predições de Marx e seguidores sobre o “curso inevitável” das sociedades capitalistas em direção ao comunismo?
Os “testes” do tempo e da realidade, efetuados até aqui nos “laboratórios” dos capitalismos e dos socialismos realmente existentes, desmentem – não apenas uma ou outra, mas – todas as afirmações marxistas e leninistas sobre a marcha da história e a evolução das sociedades. O registro “geológico” do longo – segundo as concepções arrighianas – ou “breve” – de acordo com Hobsbawm – século XX não permite sustentar, apoiar, comprovar, de alguma forma corroborar qualquer uma das premissas e previsões marxistas, que sustentam a fé – não existe outro conceito – no ideal socialista ou do modelo comunista de sociedade e de organização social da produção.
Pode-se, assim, desafiar os marxistas, em geral, a retomar qualquer uma das análises de Marx e de Lênin sobre o desenvolvimento do capitalismo, ou qualquer uma das suas “hipóteses de trabalho” sobre a emergência das sociedades comunistas, e, com base nelas, comprovar que estas análises e hipóteses são, não apenas logicamente dedutíveis de suas premissas (como ocorre, por exemplo, com a “teoria” da seleção natural), mas materialmente possíveis a partir de desenvolvimentos empíricos aferíveis (da mesma forma como ocorre em laboratórios de biologia com as manipulações de espécies, no caso em exame). Ou seja, pode-se esperar que o socialismo seja o resultado natural, quase automático, do desenvolvimento e das contradições internas do modo de produção capitalista e que sua eficácia produtiva seja comparável ou superior ao do modo imediatamente anterior? Com base em qual tipo de raciocínio lógico, pode-se afirmar que o “socialismo”, se efetivado, conseguiria superar contradições inerentes às economias de mercado, em sua aparente “anarquia” produtiva?
Independentemente, porém, do registro histórico que comprova o tremendo fracasso material do socialismo marxista, e do comunismo, no século XX, na tentativa de se criar um modo de produção “superior”, ou “harmônico”, existe um outro conjunto de testes que se vinculam ao modo de organização interna de qualquer regime socialista, ou seja, a seus fundamentos materiais, o que também envolve o aspecto puramente lógico sobre as formas de estruturação e de funcionamento de qualquer sistema produtivo baseado nas premissas “econômicas” marxistas. Essa questão tem a ver com o problema fundamental do cálculo econômico, e com a função dos preços – como sinalizadores da escassez relativa – num sistema de organização da produção para o mercado, ou seja, o de qualquer modo de produção concebível em uma sociedade complexa, seja ela escravocrata, feudal, capitalista ou “socialista”. Esse problema, insolúvel num sistema socialista puramente marxista – ou seja, comunista –, já tinha sido tratado desde os primórdios da revolução bolchevique por um jovem economista austríaco, Ludwig Von Mises, que, com base numa análise puramente racional dos fundamentos “lógicos” da economia socialista, concluiu que esta não conseguiria funcionar, justamente, por falharem princípios básicos da organização racional da produção e distribuição de insumos, de bens intermediários e de bens finais.[5]
E, no entanto, diriam os true believers da causa socialista e comunista, a despeito de todas essas “previsões” catastrofistas e condenatórias do socialismo enquanto doutrina e enquanto forma alternativa de organização social da produção, o fato é que o socialismo “funcionou” durante setenta anos, e nada impediria, em princípio, que ele voltasse a funcionar em novas bases, corrigidos alguns “pequenos erros” que impediram seu funcionamento mais eficiente da “primeira vez”. Como as apostas e as esperanças dos verdadeiros crentes na causa socialista não se apoiam em evidências de fato, mas justamente num sistema de crenças que demanda adesão inquestionada – sem que eles sejam chamados comprovar suas teorias, um pouco como os criacionistas – não se prevê o desaparecimento fácil ou imediato desse tipo de falácia fundamentalista.
Não seria, na verdade, a primeira, nem a última vez, que crenças equivocadas conseguem manter-se durante tanto tempo no circuito das teorias possíveis: a “teoria geocêntrica”, por exemplo, comandou durante séculos as reflexões dos homens e as explicações geográficas, até ser superada por uma melhor explicação, com base na observação direta da realidade e na experimentação empírica. O socialismo já teve sua fase de experimentação empírica – que foram as sete décadas de experimentos de engenharia social desde o advento do modelo bolchevique de organização social da produção e suas diversas variantes ao longo do tempo – mas seu rotundo fracasso não parece ainda ter conseguido alterar o conjunto de crenças mantidas pelos true believers.
Uma das razões possíveis pode ser o fato que a maior parte dos aderentes ao credo não conheceu, não visitou, não conviveu, não experimentou, de fato, o “modo socialista de produção”, cujas bases de funcionamento são desconhecidas aos true believers, que continuam a repetir algumas fórmulas “sagradas” da doutrina original. Nenhum deles, por exemplo, parece próximo de acreditar que o socialismo marxista, tal como materializado na Eurásia, constituiu o equivalente funcional de formas modernas do escravagismo antigo ou do despotismo oriental. Aparentemente, evidências não bastam, quando se decide não aceitar evidências concretas que vão contra as crenças.[6]
Em todo caso, o autor destas linhas acredita que um trabalho sério de pesquisa histórica, de constatação de evidências materiais e alguns poucos raciocínios lógicos poderia ajudar a desmontar o grau de irracionalidade conceitual e de não adequação material que caracterizam as crenças socialistas, tal como consubstanciadas em sua vertente marxista clássica. Ele não tem, entretanto, nenhuma ilusão de que “velhos socialistas” ou de que acadêmicos enviesados venham a recompor sua estrutura mental e suas posturas sociais e políticas a partir dessas constatações de fato e de raciocínio. Ele espera, pelo menos, que um número maior de alunos, talvez entediados pela repetição aborrecida das mesmas velhas fórmulas ultrapassadas, possa encontrar um novo campo teórico de explicações científicas que escape do terreno das crenças para o mais modesto das explicações possíveis em torno da modernidade capitalista.

Brasília, 2 de agosto de 2011

Resumo: Crítica às crenças fundamentalistas do socialismo marxista na substituição de um modo de produção resultante de processos sociais incontrolados e impessoais, como o capitalismo, por um outro, concebido de maneira ideológica e pretendendo operar um exercício de engenharia social com base em premissas equivocadas e pressupostos equivocados sobre o funcionamento de uma economia de mercado.

Palavras-chave: Marxismo; Socialismo; Comunismo; Fundamentalismo; Capitalismo.



[1] Ver “O socialismo é uma doutrina triunfante”; Antônio Candido, entrevistado por Joana Tavares, Brasil de Fato, edição 435, 12/07/2011 (disponível: http://www.brasildefato.com.br/node/6819; acesso em 31/07/2011).
[2] “O socialismo é uma doutrina triunfante”, entrevista com Antônio Candido, op. cit.
[3] Idem, loc. cit.
[4] Idem, loc. cit.
[5] Ver o opúsculo analítico de Ludwig von Mises, O Cálculo Econômico na Comunidade Socialista (1920), disponível em inglês no site dedicado às obras desse economista: www.vonmises.org. Para maiores elaborações em torno do mesmo tema, ver meus ensaios: “Falácias acadêmicas, 8: os mitos da utopia marxista”, Espaço Acadêmico (ano 9, n. 96, maio 2009; disponível: http://www.espacoacademico.com.br/096/96pra.pdf); “A resistível decadência do marxismo teórico e do socialismo prático: um balanço objetivo e algumas considerações subjetivas”, Espaço Acadêmico (ano 9, n. 106, março 2010; ISSN: 1519-6186; link: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/9502/5321).
[6] Ver meu trabalho “A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos que atrapalham seu desenvolvimento”, Espaço Acadêmico (ano 4, n. 47, abril 2005; link: http://www.espacoacademico.com.br/047/47pra.htm).

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Eleicoes brasileiras de 2018: declaracao de principios - Paulo Roberto de Almeida

No ano que vem teremos eleições gerais. Tudo bem.
Mas a campanha já começou, e os pré-candidatos já se movimentam, como podem.
Eu sempre segui as eleições, desde pequeno se ouso dizer, mas apenas depois de adulto o fiz de forma sistemática, seguindo mais detalhadamente as questões afetas a meus estudos e pesquisas: relações internacionais, política externa e diplomacia do Brasil.
Em 2010, estando fora do Brasil, segui as eleições à distância, por meio de um blog.
Preventivamente, fiz uma espécie de declarações de princípios e de valores, que acredito ainda válida para os nossos dias. Discordaria, no entanto, de minha aceitação da reeleição , aceita naquele momento, mas que se revelou (como eu temia) uma fonte de abusos. Sou também a favor do voto opcional, ou seja, livre, não obrigatório.
No resto, mantenho igual, no momento em que estou abrindo um novo blog para acompanhar as eleições de 2018, em especial a campanha presidencial.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 23 de outubro de 2017

Paulo Roberto de Almeida
Shanghai, 9 de maio de 2010

Como faço sempre em períodos pré-eleitorais, começo a reunir materiais sobre os candidatos, os programas (estes bem mais tardios), sobre os próprios processos eleitorais, enfim, o conjunto de elementos informativos e analíticos que me permita acompanhar o desenrolar das campanhas e as próprias eleições com pleno conhecimento de causa sobre quem são, o que representam cada um dos candidatos, quais suas idéias e intenções, quais as conseqüências para o Brasil da eleição de um ou outro, em especial quais são os impactos para a política externa do Brasil, de forma a me dar domínio completo sobre as eleições, tudo isso bem antes da votação propriamente dita.
Geralmente eu abria uma pastinha e começava a coletar os materiais pertinentes, classificando-os por tipo e data, para permitir recuperação e alguma redação de artigo ou ensaio analítico quando a necessidade se manifestar. Agora (e desde 2006) abri um blog especialmente dedicado ao tema: Eleições Presidenciais 2010 (http://eleicoespresidenciais2010.blogspot.com/). Ele está disponível para consultas, mas não para comentários, já que não pretendo entabular conversações sobre o assunto com quer que seja, uma vez que eleições sempre são controversas e se prestam a manifestações de paixões exacerbadas (como futebol e outras coisas).
Não tenho porque expressar minhas preferências eleitorais, já que isto não vem ao caso, mas também não tenho porque esconder minhas posições de princípio, que são públicas e notórias, cidadão brasileiro que sou moderadamente participante nos assuntos da nação. É com esse espírito que venho agora, antes que a campanha comece, expressar essas posições, como forma de deixar claro o que penso sobre o processo eleitoral em si, e o que penso ser melhor para o Brasil.
Vamos lá.
Não temos controle, os cidadãos comuns, sobre a escolha dos candidatos, pelo menos não diretamente. Eles são escolhidos pelas máquinas partidárias, com base numa aferição de suas chances de ganhar a competição eleitoral. Aí talvez entremos nós, os eleitores comuns, se por acaso somos escolhidos para responder a algum questionário de instituto de pesquisa. Eu nunca fui escolhido por um e não tenho idéia de como são formuladas as questões abertas e fechadas. Tampouco pertenço a qualquer partido e não tenho a intenção de me filiar a qualquer um, em qualquer tempo e lugar. Não se trata de uma posição absoluta, mas é um princípio compatível com meus outros valores, entre eles o de absoluta independência de julgamento, o livre arbítrio na escolha de minhas próprias posições: nunca aceitaria ter de acatar posições desenhadas por outros de cujo processo de elaboração eu mesmo não tenha participado. Nisso sou um anarquista radical: simplesmente não conseguiria deixar de pensar com minha própria cabeça para aceitar um menu pret-à-porter, ou seja, pré-configurado.
Por isso mesmo, eis aqui meu primeiro princípio eleitoral: eu nunca aceitaria um candidato que tenha sido imposto por outros, sem que ele mesmo tenha lutado por sua indicação, com empenho pessoal – intelectual e organizacional – na seleção, na disputa de posições, na exposição de suas qualidades, na manifestação aberta de seu pensamento. Candidato de bolso do colete, jamais seria algo aceitável do meu ponto de vista. Só quem pensa com sua própria cabeça, e encontra-se preparado para debater e defender suas próprias posições. Fica o aviso...
Com relação a posições, vou logo dizendo o que sou a favor e objetivamente contrário. Sou a favor da democracia mais aberta possível, com total liberdade dos meios de comunicação e a menor participação desejável de publicidade governamental. Sou contrário a governos gastando dinheiro público com propaganda em seu próprio favor. Sou contrário ao envolvimento do poder com as eleições, de qualquer forma e em qualquer grau. Governo é governo, e eleições são eleições: aceito o princípio de uma re-candidatura (a contragosto), mas creio que o candidato deve se separar do governante, ou vice-versa. Sempre existem abusos de poder. Acho que os juízes (sou contra juízes eleitorais, apenas juízes “normais” que julguem com base em leis claras) devem ser muito severos com as confusões eventuais, mas no plano da imprensa, sou pela total liberdade de opinião. Meu segundo princípio é, então, a maior liberdade para todos, sem controles estatais. Tenho horror daqueles que dizem que é preciso “democratizar os meios de comunicação” e que a sociedade precisa se armar para “controlar a grande mídia”. A sociedade já controla a grande mídia, deixando de assistir ou comprar aquilo de que não gosta.
Também sou a favor de quem não coloca o Estado, ou o próprio governo, acima da sociedade, como fazem tantos políticos, eventualmente equivocados de boa-vontade, ao considerarem que só o Estado pode fazer “bondades” para a população de baixa renda, no pressuposto de que o capitalismo – que nem o PCdoB pensa em abolir no Brasil – é um sistema inerentemente injusto e desigual. Sou a favor da iniciativa privada e da privatização de alguns monstros estatais que foram criados ou vem sendo alimentados a golpes de subsídios públicos – ou seja, o meu, o seu, o nosso dinheiro – de maneira tão intensa quanto irracional nos últimos tempos. Por exemplo: que sentido tem transferir bilhões de dólares a uma empresa como a Petrobras, que conseguiria facilmente se abastecer no mercado de créditos privados? Só pode ser por uma concepção equivocada do que sejam prioridades em gastos públicos. Pois bem: tenho horror de gente que se equivoca com o meu dinheiro. Este é, portanto, o meu terceiro princípio: o Estado não deve fazer aquilo que pode ser feito pela própria sociedade, pela iniciativa privada, que arrisca o dinheiro do empresário, não o meu.
Transparência e honestidade pessoal no trato da coisa pública me parecem, mas isso é o mínimo, essenciais para qualquer pessoa que pretenda cargos elevados na hierarquia política. É muito fácil perceber a sinceridade ou a hipocrisia nas falas de um político: basta olhar nos olhos. Quem não consegue olhar para os telespectadores, sem desviar os olhos para algum teleprompter, que possa lhe guiar as idéias (quando as tem) parece ter um grave problema de credibilidade e de articulação de frases simples, sinceras, diretas, falando diretamente ao eleitor. Pode ser um quarto princípio, mas prefiro colocar como requerimento básico...
Existem vários outros elementos que poderiam integrar esta lista, como posicionamentos sobre diferentes assuntos da vida econômica, política e social. Mas creio que não devo moldar os candidatos de acordo com minhas preferências pessoais. Prefiro esperar as primeiras declarações para depois então me manifestar a respeito.
Paulo Roberto de Almeida (Shanghai, 9 de maio de 2010)

Oliveiros da Silva Ferreira: um intelectual completo - Marco Aurelio Nogueira

 Oliveiros S. Ferreira (1929-2017), um intelectual completo
Marco Aurélio Nogueira
O Estado de S. Paulo, 21 Outubro 2017 | 19h40

Quando, por volta de 1974-75, comecei a me perguntar sobre o caminho a seguir na pós-graduação, eu vivia uma espécie de impasse. Não eram grandes as exigências universitárias em termos de titulação posterior ao bacharelado. Eu já havia dado aulas na PUC, no Instituto Fláquer de Santo André, sem qualquer titulo adicional. E estava seduzido pelo jornalismo. Escrevia regularmente para o semanário Opinião, fazia traduções e chegara mesmo a redigir um pequeno livro para a Editora Três sobre Yasser Arafat, líder da OLP, a Organização para a Libertação da Palestina. Não sabia bem que estrada seguir.
Mas eu intuía que precisava me tornar pós-graduado. Colegas da universidade e amigos reforçavam isso e me incentivavam. E a USP era o principal objetivo. Quando ingressei na UNESP, em 1976, isso se consolidou, ainda que eu tenha permanecido como Auxiliar de Ensino (um Bacharel) durante longos 8 anos.
Como muitos daquele período, eu me inquietava com o pensamento militar que havia impregnado o Estado brasileiro. Vivia me perguntando a respeito das bases teóricas, ideológicas e doutrinárias que haviam dado sustentação ao papel político desempenhado pelas Forças Armadas ao longo do tempo, e que a meu ver se mostravam claramente na retórica política dos militares que governavam o país.
Oliveiros Ferreira era professor de Ciência Política da USP e um grande especialista em assuntos militares e Forças Armadas. Fiz um pequeno projeto voltado para pesquisar a influência do positivismo no pensamento político do Exército, inscrevi-me no processo seletivo da FFLCH da USP e fui entrevistado por Oliveiros, que acabou concordando em me orientar.

A alegria por ter sido aceito combinou-se com a insegurança e o medo. Afinal, Oliveiros já era um dos grandes, dono de um pensamento marcante, conhecido por seu rigor e malvisto por parcela das esquerdas, que o consideravam conservador demais, amigo dos militares e, portanto, suspeito. Além do mais, estava vinculado ao Estadão, jornal em que faria carreira e no qual permaneceria até 1999, quando se aposentou.
Acontece que, ao mesmo tempo em que era visto com desconfiança pela esquerda, Oliveiros não era persona grata para o regime militar. Viam-no como “trotskista”, “comunista” e “luxemburguista”, o que jamais foi. Em sua trajetória biográfica consta certa militância e alguma simpatia intelectual pela Vanguarda Socialista — jornal não partidário fundado por Mário Pedrosa em 1945, reunindo dissidentes do Partido Comunista e intelectuais socialistas opositores do stalinismo — e, depois, pela Esquerda Democrática, que mais tarde convergiu para o Partido Socialista Brasileiro (PSB).
Em suma, quando o conheci Oliveiros já era um peso-pesado como intelectual. Continuou assim até o fim.
Foi professor da USP desde 1953. Em anos mais recentes, passou a dar aulas também na PUC-SP e no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/PUC/Unicamp). Trabalhou em O Estado de S. Paulo por quase meio século, como editorialista, redator-chefe e diretor. Reunia o erudito ao analista político minucioso, os grandes quadros interpretativos aos fatos cotidianos muitas vezes apagados pela valorização unilateral das estruturas, compondo uma figura rara de intelectual público.
Em 1976, já como aluno da pós-graduação, frequentei seu curso “O conceito de hegemonia em Teoria Política”, que segui com grande interesse, sem perder uma aula sequer. Oliveiros era um professor cativante, que sabia ensinar e provocar, um “heterodoxo” que mexia com as convicções mais rígidas dos estudantes. Ainda hoje me valho de sua “teoria das posses” (das almas, dos corpos, do poder, do território, da propriedade), na qual Oliveiros baseava sua teoria política e sua concepção de Estado. Nela havia influências aparentemente díspares para mim (que me via como um “ortodoxo”), vindas de Durkheim, Weber, Ortega y Gasset, Rosa Luxemburgo, Trotsky e Gramsci. Foi impactante, e me ajudou tanto a organizar os cursos que passei a ministrar como a me aproximar de Oliveiros.
Não foi difícil me simpatizar com ele. Oliveiros era uma pessoa que seduzia. Pelo porte, pelo gestual, pela voz e pelas provocações. Dava aulas em pé, caminhando de uma ponta a outra da sala e usando intensamente o quadro negro. Não perdia uma piada, ria de si próprio e demolia as ideias com que não concordava, sem contudo entrar em atrito com os interlocutores. Fazia intervalos a cada 60 minutos, para água e café. O curso era espetacular.
Com o passar dos anos, minha pesquisa não avançava. Conversava com Oliveiros a esse respeito e em algum momento do caminho chegamos à conclusão de que meu tema de pesquisa era complexo demais para as circunstâncias políticas brasileiras. De certo modo, eu iria mexer num vespeiro, teria dificuldades para acessar algumas fontes básicas e mais dificuldades ainda para entrevistas pessoas. Concluímos que seria melhor alterar o tema, e acabei migrando para a investigação da trajetória política de Joaquim Nabuco, com o intuito de compreender a transição da Monarquia para a República e o papel que nela teve o liberalismo. Oliveiros aceitou com entusiasmo.
O problema é que o prazo para a defesa da dissertação de Mestrado, que era de 4 anos, estava chegando ao fim, e eu mal havia assentado os alicerces da pesquisa. Oliveiros sugeriu que eu passasse direto para o Doutorado, o que me daria mais 4 anos de prazo. Era preciso encaminhar uma solicitação ao Departamento e me submeter a um exame perante uma junta de professores. Fui aprovado e respirei. Em 1983 defendi a tese “As desventuras do liberalismo: Joaquim Nabuco, a Monarquia e a República”, que foi aprovada por uma banca presidida por Oliveiros e composta por Raymundo Faoro, Oracy Nogueira, Francisco Weffort e José Augusto Guilhon de Albuquerque.
Devo muito a Oliveiros pelo sucesso que obtive em meu doutorado. Especialmente na fase de redação, ele foi um verdadeiro orientador. Recebia-me regularmente em sua casa no Ibirapuera e algumas poucas vezes no Estadão. Foi intransigente na questão do prazo: a cada 15 dias eu era obrigado a entregar um capítulo da Tese, que ele lia e comentava. Foi um contrato de trabalho, que funcionou e sem o qual eu não teria concluído o texto. Faltava-me uma dose adicional de foco, pois eu continuava dividido, agora entre a universidade e a militância política no PCB, sobre a qual discuti várias vezes com Oliveiros, que sempre a respeitou. Meses antes do prazo final para a entrega da Tese, fui preso e tive de responder a um processo. Oliveiros acompanhou tudo, dando apoio e ponderando.
Jamais impôs suas preferências ou opiniões, deixou-me livre, corrigindo o que havia de imperfeição no texto e me sugerindo importantes modificações. Dos contatos e conversas que mantivemos durante os anos de orientação, um alerta de Oliveiros calou forte: “Nenhum problema em você se valer do marxismo em sua pesquisa. Mas isso desde que você seja um bom marxista, não um mero repetidor”. Carrego isso comigo até hoje, como uma medalha.
Depois da Tese, fui para a Itália em um programa de pós-doc. Na volta, em 1976, o processo militar ainda estava aberto e tive de comparecer ao Tribunal, levando comigo algumas testemunhas. Oliveiros foi uma delas e foi emocionante, para mim, vê-lo, do alto de sua importância como professor e jornalista, argumentar para os cinco juízes militares que ele sempre me conhecera como marxista, não como comunista, lembrando que na Universidade o marxismo era admitido com tranquilidade.
Mais tarde, participei de seminários sobre as concepções de Oliveiros, escrevi sobre elas e pude compreendê-las melhor. Nunca cheguei a aceitar por inteiro as posições teóricas e políticas de Oliveiros. Isso, aliás, jamais foi cogitado. O “meu” Gramsci era diferente do Gramsci de Oliveiros, por exemplo, mas tanto eu quanto ele valorizávamos o modo gramsciano de pensar a política e o Estado. Os 40 Cavaleiros Húngaros, título que Oliveiros deu à sua tese de Livre-docência, é um texto que revela um leitor cuidadoso e rigoroso dos Cadernos do Cárcere, ainda que fora dos cânones predominantes entre os gramscianos.

Um pensamento vigoroso

O pensamento de Oliveiros ramificou-se pela teoria social, pelas relações internacionais, pela história e pela política externa do Brasil – ramos estes que se mantiveram sempre em permanente articulação, como que para salientar que não pode haver teoria política sem uma poderosa sociologia na base, que o “nacional” é sempre parte intrínseca do “global” e que os fatos políticos devem ser compreendidos “à luz do Espaço e do Tempo em que se dão”, à luz da “densidade e do volume dos grupos sociais em presença” e das relações de dominação e subordinação que tais grupos mantém entre si.
Em sua concepção, cruzaram-se influências de autores tão díspares quanto Durkheim e Gramsci, Weber e Trotsky, Ortega y Gasset, Unamuno e Marx. Era uma combinação de heterodoxia com ecletismo bem compreendido: dever-se-ia aceitar aquilo que favoreça a argumentação e impulsione a compreensão dos nexos que dão sentido à ação dos homens. O resultado desse esforço, em Oliveiros, foi um texto denso, repleto de referências e metáforas eloquentes, hábil em surpreender o leitor com esclarecimentos inusitados, provocativos.
Oliveiros Ferreira não foi autor de “achados” ou preso a modas e consensos fáceis. Sua vigorosa interpretação do Brasil apoiou-se na reiteração coerente de algumas cláusulas pétreas: o Estado, a necessidade da ordem, o poder como posse de almas, mentes e recursos materiais, a dimensão psicossocial dos fatos políticos, o valor da ação organizada, o projeto nacional. Foi acima de tudo um “estatista”, um intelectual preocupado em encontrar no Estado um articulador efetivo da sociedade, um defensor de seu território e de seu patrimônio histórico, cultural. Pensou a política a partir desse registro.
Sua teorização dedicou-se a compreender as relações entre subordinados e dirigentes, os motivos que levam o “grande número” a aceitar a prevalência do “pequeno número”. Para ele, a dominação é a essência mesma do processo social. Os aparelhos coativos revestem-se de importância decisiva para a compreensão da lógica do poder, que se afirma sobre um território e sobre pessoas. Por isso, a dominação só pode se manter pela organização e depende categoricamente de uma ação com vistas à hegemonia, ou seja, à afirmação de uma concepção do mundo, de uma cultura, como Oliveiros sustentou em Os 45 cavaleiros húngaros. Uma leitura dos Cadernos de Gramsci, publicado em livro no ano de 1986.
Para ele, na história brasileira, por não terem podido se organizar com autonomia e coerência, as classes sociais não uniram o País. Transferiram ao Estado as tarefas típicas que lhes deveriam caber – a organização dos consensos, a construção da hegemonia, a modelagem da administração pública, o planejamento do desenvolvimento, a defesa da soberania, em suma, tudo o que poderia configurar um projeto nacional. Pagou-se alto preço pelas “servidões da infraestrutura”, que dificultaram a comunicação entre os grupos sociais. Abriu-se um vazio político e ideológico, causa de um pesadelo permanente: o da ditadura, das guinadas autoritárias, da democracia imperfeita, da hipertrofia dos vértices em detrimento das bases. Com isso, uma parte da estrutura estatal – os “Militares”, mais bem organizados – terminou por agir com maior desenvoltura política.
Esta a principal razão que levou Oliveiros a se dedicar sistematicamente ao estudo das intervenções militares no Brasil, de que o melhor exemplo é seu livro Os elos partidos (2007).
Com a democratização dos anos 1980, os militares voltaram à caserna, a Federação perdeu importância, graças ao avanço da crise fiscal que também corroeu a União. Houve a globalização, o capitalismo se reorganizou, a sociedade se diferenciou e aprofundou a falta de coordenação. O País enveredou por trilhas inquietantes. Na conclusão de seu livro de 2007, Oliveiros escreverá: “não havendo estruturas que impulsionem o processo social, a Política feneceu. O Mercado, novo deus fenício a cobrar sacrifícios, impôs-se como senhor de baraço e cutelo”. Na medida em que desapareceu a “Grande Política, as Ideias”, passou-se a discutir as pessoas, as personalidades.
É onde nos encontramos. Três décadas depois da redemocratização, ainda falta ao Brasil a solução de seu enigma fundacional, o da organização autônoma da sociedade e da articulação entre Estado e mundo da vida social. Continuamos sem sujeitos capazes de promover “políticas dirigidas para o futuro” e sem projetos nacionais. Poderemos vir a tê-los no capitalismo globalizado, na modernidade líquida e radicalizada em que nos encontramos? É uma questão em aberto.
Oliveiros S. Ferreira cumpriu sua função como intelectual. Ajudou-nos a melhorar nossa capacidade de explicar o mundo em que vivemos. Foi um grande personagem, uma referência para os cientistas sociais, para os que se dedicam à ciência política e às relações internacionais de modo abrangente, sem especialismos e esquemas atrofiadores.
Fará uma falta enorme nos tempos complicados que teremos pela frente.

​A new academic journal: Annals of the Fondazione Luigi Einaudi

A new academic journal is born: Annals of the Fondazione Luigi Einaudi

Annals of the Fondazione Luigi Einaudi. An Interdisciplinary Journal of Economics, History and Political Science is a new, peer-reviewed academic journal aiming to promote interdisciplinarity as a method of scientific inquiry and a highly relevant issue in social sciences. The Annals, which publish two issues per year, aim at facilitating communication and encouraging cross-fertilization of ideas among both established international scholars and younger scholars working in the field of history, economics, political science and other social disciplines. 

Its first, just published issue, “Keynes’s Relevance to the Contemporary World. Eighty Years since The General Theory”, summer 2017) explores John Maynard Keynes’s legacy (social philosophy and method; insights for the management of domestic economies; suggestions of global reform) at a time of profound crisis for both the global economy and economics as discipline. 
Contributors include Jörg Bibow, Anna Carabelli, Mario Cedrini, Emanuele Citera, Peter Clarke, John Davis, Sheila Dow, Luca Fantacci, Roberto Marchionatti, Paolo Paesani, Kurt von Seekamm, Robert Skidelsky, Dario Togati, and David Vines. 
The Publisher, Olschki, is pleased to grant free access to the article “J.M. Keynes, The Modernity of an Un-Modern Economist” (by A. Carabelli, M. Cedrini and R. Marchionatti). 

The second issue of the Annals (“Reconstruction in Europe, 100 Years Later”, winter 2017) aims at investigating the “reconstruction” made necessary by the current European – financial, economic, industrial and political – crisis. 
Contributors include Michael Ambrosi, Giuseppe Bertola, Marco Bresciani, Tiziana Caponio, Peter Clarke, Luca Einaudi, Maurizio Ferrera, Jan Kregel, Lucia Quaglia, Francesco Saraceno, Mario Telò, Vittorio Valli.
All interested scholars are invited to submit their original research articles (as well as book reviews and proposals for special issues) to the Annals (instructions). 

The Annals on the Publisher’s website: www.olschki.it/riviste/28

EDITORS: Francesco Cassata, Mario Cedrini, Roberto Marchionatti

Book Review Editor: Paolo Silvestri

Editorial board: Brigitte Bechtold, John Davis, Mario Del Pero, Sheila Dow, Luca Einaudi, Matthew Evangelista, Stefano Fiori, Philippe Fontaine, Alan Kirman, Jonathan Kirshner, Suzanne Konzelmann, Jan Kregel, Sara Lorenzini, Caterina Marchionni, Marguerite Mendell, Hirokazu Miyazaki, Manuela Moschella, José Antonio Ocampo, Ugo Panizza, Lucia Quaglia, Sophus Reinert, Margaret Schabas, Ilana Silber, Paolo Soddu, Joseph Straus, Adam Tooze

Editorial assistants: Amalia De Luigi, Guido Mones.

Publisher: Olschki


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Mario Cedrini

Università di Torino 

Dipartimento di Economia e Statistica "Cognetti de Martiis" 
Campus Luigi Einaudi, Lungo Dora Siena 100, 10153 - Torino (Italy) 

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+39 011 6703895 (fax)
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Italian Association for the History of Political Economy, Secretary General (STOREP)
Annals of the Fondazione Luigi Einaudi, editor (website)
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Privatizar a Petrobras? Certamente: ja devia ter sido feito - Paulo Roberto de Almeida

No final de 2005, respondendo a três questões de um grupo de debates, eu  já me pronunciava sobre a privatização da Petrobras, e essa percepão vinha de pelo menos dez anos antes.
Ou seja, a privatização da Petrobras está pelo menos 20 anos atrasada, talvez mais...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 23/10/2017

Privatizar a Petrobras?
Respostas tentativas a três perguntas

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 30 de dezembro de 2005

1. A Petrobras deveria ser privatizada? Se sim, por que?

            PRA: Vamos proceder primeiro por analogia: minério de ferro entra na merenda escolar? Mesmo que entrasse, haveria alguma justificativa racional para que a empresa produtora de minério de ferro fosse estatal? Ao meu ver, nenhuma relevante, mesmo arguindo o aspecto supostamente "estratégico" do minério para a produção siderúrgica e de aço, em vista de um suposto poder nacional.
Havendo necessidade de minério, e de produtos da siderurgia, haveria qualquer impedimento a que alguma empresa privada fornecesse tais produtos para o governo? Ao meu ver, novamente nenhum, e não há praticamente nenhum produto -- com a única exceção, talvez, de material atômico -- que não possa ser produzido e fornecido numa pura relação de mercado com o governo, este sendo um comprador como outro qualquer, e de certa forma até privilegiado, uma vez que poderia expropriar, nacionalizar, estatizar, se assim desejasse e se assim justificasse a segurança nacional.
            Com o petróleo, pode ser ligeiramente diferente, mas apenas ligeiramente, dado seu caráter verdadeiramente estratégico, do ponto de vista energético e de combustível, mas não há, a priori, nenhum impedimento para que ele não possa ser fornecido em condições de mercado ao governo e ao país. Havendo necessidade, uma lei pode regular esse mercado especial, digamos assim, garantindo reservas estratégicas e impondo certas obrigações aos produtores privados.
            Cabe lembrar que o projeto de lei, original, da exploração de petróleo no Brasil não previa uma empresa estatal, o que só foi logrado a partir de emenda da UDN ao projeto enviado por Getúlio Vargas. Desta forma, a primeira pergunta a ser feita não é a de se a Petrobrás deveria ser privatizada, e sim a de saber se uma companhia estatal se justifica. Admitindo-se positivamente, dadas as condições prevalecentes naquela conjuntura, pergunta-se se essas condições ainda são prevalecentes, a ponto de justificar a continuidade de uma estatal, semi-monopolista, ou monopolista de fato, depois de décadas de monopólio de direito.
            Da mesma forma como a Vale do Rio Doce foi privatizada, sem nenhum prejuízo para o país – ao contrário, com muitos ganhos, a despeito de muitos alegarem os atuais lucros “fabulosos”, como sendo “perdas” para o Estado, como se ela produzisse lucros fabulosos antes disso --, a Petrobrás poderia tranquilamente ser privatizada, com muitos ganhos para todos os consumidores.


2. Se uma empresa estatal pode ser eficiente, porque outra empresa estatal também não pode ser eficiente?

            PRA: A pergunta está mal formulada. Empresas estatais, quase que por definição, não são eficientes, simplesmente porque são impedidas de agir como empresas, tendo de cumprir certos objetivos políticos do governo em vigor. Esses objetivos podem não coincidir, e em alguns casos colidem diretamente, com os interesses da empresa enquanto empresa (não enquanto benemerência política, o que é outra coisa). Nos raros casos em que uma empresa é eficiente, a explicação é a pouca ingerência de critérios políticos em sua gestão, o que pode ser facilmente desmantelado por algum governo que pretenda vê-la cumprir objetivos outros que não os diretamente ligados à atividade empresarial.
            Governos, em geral, devem prover bens públicos, e externalidades para o setor privado, e não devem, por princípio, imiscuir-se no provimento de bens que tenham como critério de eficiência a raridade relativa e o cálculo pelo preço de mercado. Bens públicos não ostentam, por definição, um critério muito claro quanto à sua escassez relativa ou a sua formação de valor – preço de mercado – e por isso podem ser entregues ao Estado. Não é o caso da quase totalidade de bens de consumo em geral, e da maior parte dos bens de capital: mesmo serviços “públicos”, como eletricidade, comunicações, saneamento, água, podem tranquilamente ser deixados à iniciativa privada, e mesmo a segurança (mas não a justiça), pois são serviços ou produtos que são “consumidos” por particulares e para os quais não há nenhuma justificativa para que preços de mercado não prevaleçam.
            A busca de eficiência faz parte do “código genético” das empresas privadas, mas não das estatais, que devem buscar outros critérios para justificar sua existência. A regra básica nesse tipo de mercado – estamos falando de “bens públicos” – é o modo de provimento e a sua demanda. Se os custos podem ser repartidos por consumidores, de forma individual, eles podem estar sob responsabilidade da iniciativa privada, mas se eles não podem ser facilmente divididos segundo os usuários, então a intervenção estatal se justifica.
            Faço uma pergunta: existe alguma justificativa racional, legítima, para que o filho do padeiro e do açougueiro, que ele mesmo não tem a expectativa de acesso ao ensino de terceiro ciclo, pague para que o filho do advogado e do médico freqüentem uma universidade pública gratuita? De minha parte, acho isso uma tremenda injustiça, uma vez que a sociedade não necessita que todos tenham ensino superior para cumprir atividades úteis ao bem estar geral. Esta é uma justificativa mais do que racional para que, não só a Petrobrás, mas para que todas as universidades públicas sejam privatizadas.


3. Qual é o prejuizo que empresas estatais eficientes trariam ao Brasil?

            PRA: A pergunta, mais uma vez, está mal formulada. Uma empresa estatal eficiente não traz, supostamente, nenhum prejuízo, podendo até trazer “lucros”, mas então qual a justificativa para que ela seja estatal? Um governo não é feito para produzir “lucros”, e sim para prover serviços públicos, sob critérios que não se encaixam nas condições já explicitadas acima: raridade relativa, preços de mercado, cálculo de valor, market contestability, etc.
            Se um governo se dedica a produzir “lucros” através de uma atividade produtiva qualquer, ele está se desviando de suas funções primordiais, que são as da segurança, justiça, educação básica – para que todos tenham as mesmas chances na vida, até o fim da adolescência, apenas e tão somente – e algumas externalidades que influenciam no meio ambiente produtivo (o que pode, eventualmente incluir a “produção” de eletricidade, comunicações, infra-estrutura de modo geral).
            O mais provável, porém, é que empresas estatais produzam “prejuízos” ao país, e não necessariamente derivados de sua ineficiência absoluta na produção de algum bem, seja ele minério de ferro, petróleo ou qualquer outro. Ocorre, geralmente, uma ineficiência relativa, pois essa empresa será quase que fatalmente “ordenhada” pelos políticos do governo, servindo às mais diversas modalidades de corrupção e práticas nefandas que todos conhecemos.
            Seria por acaso uma coincidência que as fontes mais conhecidas de corrupção nos meios partidários derivem de empresas estatais? Empresas privadas também entram nesse tipo de “financiamento” espúrio, mas elas podem, em princípio, se subtrair à extorsão, o que se afigura praticamente impossível no caso das empresas públicas.
            Eu poderia continuar arguindo com muitos elementos de direito, de economia, de “psicologia social” para justificar a não existência e a conseqüente privatização de empresas estatais (há uma sútil diferença destas em relação às empresas “públicas”, que podem ter apenas uma determinada participação estatal), mas prefiro reter tão somente os argumentos acima.
            Não apenas a Petrobrás, mas o Banco do Brasil, a CEF e várias outras poderiam ser tranquilamente privatizadas, sem nenhum prejuizo para o Brasil. Aqueles que invocam o argumento da segurança nacional, podem ser confrontados com o seguinte fato: o país mais preocupado com tal aspecto, que são os EUA, não possuem nenhuma empresa petrolífera estatal, nem de minério de ferro ou de aço, nem de transportes, nem de aviões (militares inclusive), nem banco estatal, ou praticamente nada. Vão certamente retorquir que os EUA praticam “imperialismo” sobre recursos dos demais países, ou que o Pentágono faz isto e mais aquilo em matéria de compras governamentais. Tudo isso pode ser verdadeiro, mas não elimina o fato de que o governo dos EUA trabalha, na maior parte do tempo, em relações de mercado com seus fornecedores “estratégicos”.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 30 de dezembro de 2005

A grave crise da governança no Brasil (2004) - Paulo Roberto de Almeida

Esta foi mais uma tentativa de chamar a atenção do governo lulopetista – para o qual eu trabalhava, sublinhe-se – para a grave crise de governança no país. Obviamente, o chefe de governo não estava interessado nesse tipo de conselho, pois se julgava autossuficiente e capaz de resolver qualquer problema. Mal sabia eu, e toda a sociedade, que a essa altura – eu escrevia em abril de 2004 – eles já tinham resolvido o problema da governança por um método mais direto: passaram a comprar todo mundo, bancadas inteiras. Essa foi a origem do Mensalão.
Lido a esta distância, este texto revela uma boa disposição para ajudar, mas que pode ter sido considerado pelos companheiros apenas como demonstração de suprema ingenuidade...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 23/10/2017


A grave crise da governança no Brasil
Duas ou três coisas que eu sei dela e algumas maneiras de superá-la

Paulo Roberto de Almeida
Espaço Acadêmico (nº 36, maio de 2004)
Brasília (1241), 9 de abril de 2004.


A despeito do que se crê e do que se afirma frequentemente, o Brasil não enfrenta nenhuma crise econômica, ou mesmo política. Ele tem, sim, uma séria e grave crise de governança, que: (a) paralisa a máquina pública; (b) aumenta a volatilidade do ciclo econômico; (c) diminui a confiabilidade do e no sistema de solução de controvérsias (judiciário) e (d) influencia de modo negativo o quadro político-institucional. Esse quadro termina por: (e) acirrar artificialmente alguns conflitos menores e (f) diminuir, de modo dramático, as perspectivas de melhoria da mesma governança. Desejo, desde já, sublinhar o adjetivo “grave”, pois o quadro compromete a possibilidade de quaisquer políticas.
Não há crise econômica no País. Esta afirmação pode soar irônica ou irrealista, em vista do crescimento negativo do PIB, do aumento do desemprego, da fragilidade continuada das contas públicas e da incapacidade de enfrentar novas demandas por recursos públicos por parte dos agentes públicos e da própria sociedade. Tudo isso pode ser verdade e, no entanto, o País não está e nem corre o risco de enfrentar uma crise econômica. Os indicadores negativos atualmente exibidos decorrem de um pequeno ciclo de falta de confiança despertado pela conjuntura eleitoral de 2002, que veio agregar-se aos problemas gerados anteriormente em escala regional a partir da crise argentina desde antes da derrocada, no final de 2001. O Brasil tem problemas de fragilidade interna e externa desde muitos anos, praticamente desde a fase da redemocratização – que jamais produziu anos de crescimento sólido e sustentável – e vinha penosamente, ao longo dos anos 1990, tentando colocar em ordem esses desequilíbrios, com base em políticas consistentes e adeptas do rigor fiscal, com maior ênfase a partir da mudança no regime cambial em 1999. O comando econômico precisaria continuar virtuoso, sem hesitações.
A retomada de um processo de crescimento sustentado, compatível com as taxas historicamente registradas no passado (com exceção do interregno 1962-1965), depende, ao meu ver, da manutenção daquelas políticas, o que entretanto foi colocado em dúvida na conjuntura eleitoral de 2002. Pagamos o preço por uma transição política extremamente saudável do ponto de vista democrático e bem vinda do ponto de vista político e social. Devemos reconhecer que a democracia tem um certo preço em termos de aumento da cacofonia no processo decisório, mas ela é, em qualquer hipótese, infinitamente mais saudável, inclusive no plano econômico, do que qualquer sistema autoritário de debates (restritos) e de tomada (arbitrária) de decisões.
O aparelho político precisaria estar “aparelhado” para acomodar esse aumento na dispersão de opiniões, mas qualquer melhoria na institucionalidade do Estado depende dramaticamente da qualidade dos homens públicos, fator notoriamente carente na nossa tradição social e cultural. Não se pode sempre dispor de condições ideais para o processo de desenvolvimento, mas as improvisações podem por vezes custar caro. Ora, temos hoje, no comando da máquina econômica, uma equipe realista, preparada e inimiga declarada de qualquer improvisação ou magia econômica. Esta equipe é um poderoso fator para a superação das dificuldades econômicas conjunturais, mas ela não pode, obviamente, ocupar as demais vertentes da governabilidade, que dependem do governo como um todo e não apenas dos limitados poderes da equipe econômica.

Não há, tampouco, o menor sinal de crise política no País. Oposição e situação vêm cumprindo, com graus razoáveis de ativismo e de engajamento, suas funções respectivas: criticar e apontar caminhos alternativos a primeira, processar e votar leis a segunda. Ruídos e “golpes baixos” correspondem ao que se poderia esperar de um sistema político baseado em “jogo de soma zero”, como o brasileiro, e a um certo estilo de fazer política, marcado mais pelo apelo a uma retórica de teatro do que apoiado em argumentos racionais de governança responsável. A grande imprensa parece moderada, e não tem insuflado os ânimos ou paixões políticas, nem acuado o governo com demandas excessivas de explicações para os impasses atuais da governança.
O sistema político-partidário e, reconhecidamente, mesmo o regime democrático-representativo apresentam, no Brasil, baixa qualidade intrínseca e baixíssimos níveis de eficiência e não há qualquer expectativa de progresso no futuro previsível. Não obstante, o funcionamento do Legislativo não se deteriorou nos últimos quinze meses, mas tampouco experimentou melhora sensível, como corresponderia à “nova era” da política. Mas não se pode esperar, no curto prazo, correção de fatores estruturais como estes.

Não hesito portanto em dizer que o atual quadro brasileiro não se caracteriza por qualquer crise econômica ou política, ainda que possam existir indicadores preocupantes na primeira vertente e “ruídos” agora mais “ruidosos” na segunda, aliás derivados quase que inteiramente do dramático quadro de governança que passo agora a registrar.

É um dos truísmos da vida prática, e até da teoria política, o fato de que o poder especificamente político não se divide, nem deve ser dispersado, devendo existir de forma concentrada numa única fonte de autoridade. Esta tem de deter, legítima e incontestavelmente, por delegação dos eleitores, o comando do processo decisório, que deve então funcionar de maneira eficiente a partir dessa fonte unitária de decisões.
Não é uma revelação inédita o fato de que, no Brasil atual, as fontes de poder estavam e estão relativamente dispersas, ainda que de maneira informal, passando a estar um pouco mais diluídas a partir de conhecido episódio no comando central do governo, que fragilizou uma dessas fontes legítimas e reconhecidas de poder. Sem qualquer avaliação sobre o caráter mais ou menos ético, ou eficiente, da “solução” que se deu ao episódio em questão, deve-se reconhecer que ambos, o evento e seu “encaminhamento”, impactaram tremendamente a natureza e o exercício da governança no Brasil. (Não me manifesto aqui sobre o impacto público, e suas consequências em termos de imagem, desses elementos ligados à simbologia e ao próprio exercício do poder, mas refiro-me, tão simplesmente, aos seus efeitos sobre a qualidade e a “quantidade” da governança. Mas pode-se também notar que esse processo, assim como o episódio ainda em aberto da compra do novo avião presidencial representam um enorme custo político e moral para a autoridade do poder central, difíceis de serem revertidos no curto ou no médio prazo.)
A recomposição de uma única autoridade central e a existência de um comando político reconhecido constituem, ao meu ver, condições indispensáveis para a superação da atual crise de governança no Brasil. Sem isso, todo o mais, em termos de políticas públicas e setoriais, está e ficará comprometido pelo resto do período de governo. Não é preciso dizer que autoridade não se proclama, mas sim se exerce, de modo claro e direto, com consequências imediatas – demissão ou afastamento – para os mais recalcitrantes e eventuais candidatos a rebeldes. Tergiversações e hesitações costumam ser mortais.

Mas o quadro é ainda mais grave quando se passa da autoridade “para dentro” para a autoridade “para fora”, isto é, em direção de fontes concorrentes de poder ou no âmbito do exercício real da autoridade legítima, delegada pela sociedade e pelo sistema constitucional, para o cumprimento das leis. Ora, não é preciso muito esforço visual, ou apelo a registros impressos, para se constatar que diminuiu enormemente o respeito à lei e aos contratos nos últimos quinze meses. Sem considerar questões partidárias ou mesmo de cunho ideológico (e persiste uma certa confusão aqui), deve-se reconhecer que essa situação faz aumentar, tremendamente, a volatilidade do cenário econômico, além de agregar custos reais ao funcionamento do sistema como um todo e de contribuir para agravar o quadro de anomia social e de desrespeito generalizado ao quadro legal no País.
A justiça, em si, já constitui um ônus terrível, direto e indireto, para o sistema econômico, diminuindo o PIB potencial. Mas o desrespeito à lei, endossado inclusive por ministros de Estado, constitui um imenso desincentivo aos investimentos (estrangeiros e nacionais) e à iniciativa privada, únicos capazes de criar empregos e disseminar renda no País. É dramático saber, por exemplo, que juízes de província podem criar obrigações para o Executivo sem qualquer amparo na legislação em vigor, que governadores podem promulgar leis anticonstitucionais ou que os mandatários, em geral, se eximem de fazer cumprir a lei em casos claríssimos de violação de direitos dos cidadãos (como as muitas invasões de propriedades). O desrespeito à legalidade chegou a níveis preocupantes no Brasil, mas isso não parece preocupar nem o sistema judiciário nem o próprio Executivo.

A desgovernança existente aparece em primeiro lugar na própria máquina pública, hoje ineficiente e descoordenada ao ponto da paralisia. Algo pode ser debitado aos custos da transição, na qual uma parte da tecnocracia foi substituída pela militância, dedicada e entusiasmada com a causa da mudança, mas nem sempre habilitada a lidar com as reais complexidades da administração pública. Se o ministro da área não possui competências executivas, ou não dispõe de prévia experiência anterior no seu setor, o quadro pode ficar ainda mais dramático, dando a impressão de que os ministérios atuam em ordem dispersa, cada um com suas próprias prioridades políticas e um escasso comprometimento com as diretrizes gerais do governo (quando elas existem naquele setor).
Não há uma solução simples a esse problema, pois qualquer estrutura ministerial, grande, média ou pequena – e a atual é desmesurada –, só pode funcionar bem se a qualidade da gestão, em suas diferentes vertentes, for razoavelmente satisfatória, com metas claras e cobranças regulares. A continuidade da atual lógica político-partidária na montagem ministerial significa a continuidade da inoperância administrativa na mesma proporção. Ainda que eu recomende uma completa reestruturação ministerial, reconheço que isso traria problemas na frente congressual. Cabe ao supremo mandatário julgar o que seria possível fazer para aumentar a eficiência da “sua” máquina executiva.

A ausência de prioridades claras de governo e sobretudo a dispersão do comando central, com a persistência de dúvidas relativamente ao apoio às orientações econômicas até aqui seguidas – e que certamente permitiram reverter o quadro dramático existente no final de 2002 –, tem atuado para aumentar a volatilidade do ciclo econômico, pois os agentes são levados a adotar um compasso de espera (seja para precaver-se contra uma possível mudança de regras, seja no aguardo de medidas que possam representar uma melhoria relativa das condições da atividade econômica). O problema aqui é tanto a falta de uma clara manifestação em favor da política econômica atual, com o engajamento do conjunto do governo, quanto o próprio fato de que agentes do Estado ainda determinam, por vezes de modo arbitrário, o comportamento de vários setores da economia, o que obviamente dá margem à manutenção do já referido quadro de incertezas.
Um exemplo, entre outros, da contradição entre as orientações gerais do governo e a implementação concreta de medidas setoriais revelou-se no caso da discriminação entre companhias nacionais e de capital estrangeiro nos financiamentos concedidos pelo mais importante órgão do setor. Independentemente da legalidade ou da oportunidade de tal tipo de medida discriminatória, o fato a ser destacado é, justamente, a possibilidade de que órgãos subordinados possam atuar contraditoriamente às orientações do governo. Isto se chama ausência de autoridade e repercute na crise geral da governança pública.

A situação da justiça e do ordenamento legal é provavelmente um dos fatores mais negativos que afetam a governabilidade do e no País, aumentando dramaticamente os custos da atividade econômica. Não me refiro apenas à possível e provável existência de disfuncionalidades no aparato judicial, com manifestações de corrupção e nepotismos que podem e devem ser coibidos por alguma forma de controle externo (como aliás deve ser o caso com qualquer poder: não é possível, por exemplo, que o Legislativo e o Judiciário possam criar fontes de despesas sem qualquer tipo de disciplina orçamentária). O que desejo destacar é a própria anomia dos processos jurídicos, nas três esferas da federação e em vários setores de atividade (nas relações de trabalho, por exemplo). Mais: controles internos e externos devem ser implementados para coibir a extraordinária profusão de medidas liminares, várias dotadas de escasso ou nenhum embasamento legal.
Um exemplo pode ser citado na determinação ilegal de fichamento de turistas americanos ingressando no Brasil, ainda mais dramatizada pelo endosso oficial (isto é, do Executivo) a essa medida que claramente carece de amparo na legislação existente. Outro é o fato de estados federados introduzirem, também ilegalmente, restrições à circulação de mercadorias em seus territórios (soja supostamente transgênica), sem que qualquer autoridade federal coibisse imediatamente tal usurpação inconstitucional de autoridade. A falta de iniciativa do Executivo ou do Judiciário redunda em imensos custos econômicos para os agentes privados: produtores, transportadores, compradores ou simples cidadãos.
Podem ser multiplicados várias vezes os casos de ausência de controle – o que não é, senão, uma manifestação a mais de falta de autoridade – de medidas “legais” que afetam gravemente a confiabilidade do sistema judicial em nosso País e aumentam, de modo exponencial, a volatilidade com que tem de se haver o sistema econômico. Uma possível recomendação seria a constituição de um grupo de trabalho para examinar esse tipo de controle, que não está sendo cogitado no atual processo de reforma do Judiciário.

Um governo, qualquer governo, não é feito para provar teses acadêmicas ou testar programas partidários. Ele tampouco atua com base em “grandes teorias” (aliás mais proclamadas do que reais). Ele é eleito, e constituído, para produzir o máximo de bem estar para os cidadãos, pelos meios os mais pragmáticos e racionais possíveis. Parece estar havendo hoje, no Brasil, uma luta contra o passado e uma dispersão de esforços no presente. A luta contra o passado se exerce tanto contra antigos “adversários” (o que é revelado pela tese da “herança maldita”), como em relação às teses anteriores, que não podem (e não devem) ser o centro do debate das alternativas de políticas econômicas.
Essa obsessão com um passado mítico, seja para condenar (o dos outros), seja para se justificar (o seu próprio), tem ocupado uma parte substancial da atividade retórica do governo, o que constitui obviamente um grande perda de energia e um desvio do foco próprio da governança atual. Mas também existe, hoje, uma grave dispersão de esforços em diferentes áreas de atividade, mesmo quando elas não são prioritárias para o aumento do bem estar do povo, em setores concretos sob responsabilidade governamental.
O exemplo mais conspícuo é, obviamente, o da chamada política industrial, não porque ela esteja absolutamente errada, mas porque ela é claramente não prioritária no rol imenso de problemas graves que deve enfrentar o governo para melhorar a qualidade de vida da maioria da população. Corretamente apresentada como sendo “tecnológica” e de “comércio exterior”, essa política não vai conseguir, concretamente: (a) aumentar a oferta de empregos, (b) distribuir renda e (c) capacitar profissionalmente a mão-de-obra, três objetivos que estariam, supostamente, no coração da política social do governo (cujo foco não é, ou pelo menos não poderia ser, a assistência a necessitados, assim preservados).
Infelizmente, pode-se antecipar que essa política industrial vai: (a) criar poucos empregos, (b) pode concentrar ainda mais ou, no máximo, ser neutra em relação à iníqua distribuição de renda e (c) vai formar poucos trabalhadores nas habilidades mínimas que se espera de um país voltado para o incremento das oportunidades sociais via aumento da produtividade dos recursos humanos (num sentido amplo, e não apenas como foco setorial). A criação de mais uma agência pública pode representar, por outro lado, mais um cartório de espera para alguns esperançosos em dádivas públicas, o que continuará influenciando negativamente o quadro de expectativas microeconômicas em nosso País (em lugar do livre empreendedorismo, o possível leilão de favores governamentais).
Ainda que a política industrial possa oferecer, um dia, todas as virtudes que se esperam dela, não me parece que ela venha a alterar, dramaticamente, as condições sob as quais o Brasil já participa da economia internacional, ou sequer arranhar as condições sob as quais labuta a maioria dos trabalhadores, em grande medida à margem do mercado formal de relações contratuais. Esse tipo de dispersão e de perda de foco me parece grave, num governo que foi eleito para cuidar dos trabalhadores e não dos patrões, que deveriam ser deixados à sua própria sorte, e sobretudo com menos interferência estatal.

A tentativa de mudar um pouco de tudo, no Brasil e no mundo, e que parece estar no centro do ativismo governamental, aliás mais pelo lado das intenções do que pelo das realizações, pode constituir um entrave concreto ao exercício de uma boa governança em favor dos mais pobres e dos absolutamente carentes. Como as expectativas eram, de modo legítimo, muito grandes, o governo tem se esforçado para corresponder a todas elas, dando a impressão de que vai conseguir mudar tudo no curto espaço de quatro anos.
Entretanto, mais de um quarto do tempo alocado a este governo já se passou e um balanço (talvez impressionista) do quadro da governança poderia ser assim apresentado:
1) Um notável desempenho macroeconômico, que conseguiu reverter um quadro dramático de deterioração dos indicadores internos e externos com base no bom senso e também na certeza de que o único caminho disponível é o que foi efetivamente seguido. A construção da confiança só não foi total porque, no interior do próprio governo e nas bases “naturais” de sustentação, a demanda por magia continua alta e não coibida. Minha única recomendação concreta, aqui, seria a persistência na via adotada e um enquadramento de todo o governo com a política determinada pela autoridade máxima, que neste caso é também a política de maior racionalidade intrínseca.
2) Um pífio desempenho administrativo, em talvez na metade dos ministérios, o que é amplamente reconhecido até dentro das hostes governamentais. O inchaço da máquina e a seleção dos titulares por critérios alheios a preocupações com o desempenho são os responsáveis por esse quadro lamentável. A recomendação geral seria por um total remanejamento da máquina e dos titulares, mas não é possível oferecer neste espaço sugestões concretas sobre quais áreas devem e precisam mudar. Já ofereci a hipótese de que o governo tem muito Antonio Gramsci e carência de Peter Drucker. Talvez uma boa consultoria externa, dessas voltadas para organização e métodos para resultados, pudesse ajudar um pouco na reorganização da máquina do governo. Recomendo, sem pudores.
3) Um desempenho externo extremamente ativo e variado do Brasil-Estado, com impacto notável nos meios de comunicação, internos e externos, mas com resultados até aqui pelo menos duvidosos do ponto de vista da solução dos problemas concretos, e graves, do outro Brasil, o Brasil-Nação. Pode-se certamente assegurar, por essa via, uma maior presença do Brasil no cenário internacional, mas ela pode ser igualmente alcançada por uma melhoria da nossa situação econômica e social, pela maior solidez dos grandes equilíbrios macroeconômicos, pela confiança gerada nos investidores internos e externos ou ainda por um diálogo aberto com todo tipo de parceiro, sobretudo os mais relevantes. A segunda via é certamente mais lenta, mas não se deve descurar o fato de que um precoce engajamento em novas responsabilidades internacionais gerará uma demanda por recursos escassos, em meios militares e/ou cooperação técnica e financeira, que ainda fazem dramaticamente falta no plano interno. Minha recomendação, até por um questão de respeito aos eleitores deste governo, seria a de que uma atenção prioritária fosse agora dedicada ao plano interno, em especial em direção dos setores carentes.
4) Uma deterioração dramática do quadro político-institucional, sobretudo no que se refere ao cumprimento da lei, ao respeito da legalidade e à administração de conflitos sociais. O Estado, aos olhos de muitos, não faz cumprir a lei, ou por falta de vontade ou por falta de capacidade, ou por ambas, o que é, reconheçamos, extremamente grave. Uma caracterização desse tipo, se suficientemente embasada em fatos claramente delimitados, pode prestar-se a uma acusação de crime de responsabilidade, contra qualquer um dos agentes públicos, inclusive o mais alto. Minha singela recomendação seria em favor de uma revisão séria e ponderada da situação do quadro jurídico-legal no País e sobretudo no sentido de uma decisão superior em prol do seu estrito cumprimento pelo Estado. A experiência histórica nos ensina que o mais rápido e seguro caminho para a desgovernança prática começa pelo desrespeito à lei.

Não tenho a pretensão de oferecer soluções adequadas a todos os problemas de que padece atualmente (e estruturalmente) o País, em especial na vertente governamental. Tenho consciência, porém, de que um dos requisitos para encontrar respostas apropriadas está na correta formulação das perguntas pertinentes e no oferecimento de um diagnóstico ajustado aos problemas. Creio ter indicado os problemas que me parecem mais graves no Brasil atual, a começar pela crise de governança, que resulta ser uma crise da autoridade legal. Espero ter assim contribuído, com total ânimo cooperativo, para diminuir o quadro nebuloso que dificulta até mesmo visualizar a falta de governança no Brasil atual.

Paulo Roberto de Almeid
Brasília (1241), 9 de abril de 2004.