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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 20 de novembro de 2011

Implementando a revolução marxista do Manifesto: uma lista atualizada de medidas - Paulo Roberto de Almeida (1998-2004)


Implementando a revolução marxista do Manifesto
(uma lista atualizada de medidas)

Paulo Roberto de Almeida
(9 de maio de 2004; www.pralmeida.org)

Os leitores (assim como os militantes de esquerda) medianamente familiarizados com o Manifesto do Partido Comunista, o profético panfleto escrito em colaboração por Karl Marx e Friedrich Engels em fevereiro de 1848 para glorificar o “modo burguês de produção” e antecipar sua futura substituição pelo modo socialista de produção, sabem que na sua seção sobre “proletários e comunistas” há um conjunto de medidas, exatamente dez, que deveriam ser implementadas para a melhoria das condições de vida dos trabalhadores e cidadãos em geral.
Essa lista de medidas, à distância de mais de 160 anos, tem um certo sabor “gótico”, como seria inevitável, mas o problema é que a maior parte da esquerda, pelo menos a brasileira, continua aderindo ao seu espírito centralizador, estatizante, enfim, socialista. Pois bem, em “manifesto alternativo” que eu redigi por ocasião dos 150 anos daquele Manifesto, eu propunha uma atualização das medidas, para torná-las compatíveis não apenas com nossos tempos de globalização, como também com as necessidades de uma esquerda moderna, ágil, pronta a enfrentar os problemas reais do mundo contemporâneo, sem vê-la praticando os mesmos mecanismos litúrgicos de um velho culto que quase já não é mais praticado em lugar algum. Essa atualização do velho Manifesto de Marx e Engels foi feita em um ensaio por mim preparado para o número especial de uma revista brasileira de ciência política e republicado, com alguns ajustes em meu livro Velhos e Novos Manifestos: o socialismo na era da globalização (São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/29Manifestos1999.html).
Como eu escrevia em “meu” manifesto de 1998, a próxima revolução socialista deverá ser a mais radical ruptura com a velha cultura comunista conhecida até aqui. Não é de surpreender que esse desenvolvimento leve a uma ruptura com as concepções mesmas defendidas pela velha esquerda, com seu cortejo de slogans ultrapassados e preconceitos ideológicos. O novo socialismo não mais vai usar sua eventual supremacia política, conquistada democraticamente nas urnas, para centralizar todos os meios de produção nas mãos do Estado, como pretendiam algo ingenuamente Marx e Engels. Isto seria uma grande irracionalidade política, como já tinham descoberto alguns socialistas “revisionistas” desde o começo do século XX. Não é dessa maneira que se logrará incrementar o conjunto das forças produtivas tão rapidamente quanto possível.
A revolução completa nas relações de produção resultará da plena capacitação individual dos trabalhadores, de sua educação refinada e preparação adequada para enfrentar os desafios de um mercado mundial capitalista, hoje dominado pela burguesia, mas que não tem porque permanecer sob o seu jugo monopólico. Para retirar à burguesia esse poder incomensurável, os trabalhadores devem realizar, eles também, seu processo de “acumulação primitiva”, a começar pelo mais comezinho dos direitos humanos, a educação de base, pública, universal e gratuita.
As medidas a serem adotadas em prol do estabelecimento das novas relações de produção serão evidentemente diferentes em cada país. Entretanto, as seguintes medidas seriam geralmente aplicáveis num país da periferia ainda insuficientemente desenvolvido do ponto de vista capitalista como o Brasil:
Dois manifestos em busca de um mundo melhor
Manifesto do Partido Comunista, 1848:
1. Expropriação da propriedade fundiária e emprego das rendas fundiárias para despesas do Estado.
Paulo Roberto de Almeida, 1998:
1. Abolição do “monopólio” da terra, como desejado no Manifesto de 1848; essa abolição seria feita progressiva mas rapidamente, por meio de pesada imposição fiscal; esse imposto da terra já estava aliás previsto na “Lei de Terras” votada quase 150 anos atrás no Brasil, mas os latifundiários que então dominavam o parlamento não deixaram passar o princípio do imposto territorial rural. Essa medida, do mais comezinho significado econômico e tributário, teve de ser implementada, já no final do século XX, por um governo dito social-democrata, notoriamente inspirado nos sãos princípios liberais da atividade econômica. Um programa amplo de “reforma agrária”, num país fundamentalmente urbano como o Brasil de hoje, não tem obviamente o mesmo impacto econômico que teria tido se tivesse sido realizado décadas atrás, mas ele tem um profundo significado social em regiões onde a terra se encontra concentrada nas mãos de uns poucos latifundiários “feudais”. O que se deve buscar é a disseminação da propriedade rural produtiva, ao lado do minifúndio organizado em cooperativas e do agribusiness totalmente capitalista.

Manifesto do Partido Comunista, 1848:
2. Pesado imposto progressivo.
Paulo Roberto de Almeida, 1998:
2. Além de um imposto sobre a renda, de caráter altamente progressivo e graduado, como desejado por Marx há 150 anos, estabelecer uma reforma tributária de escopo racional e de aplicação insonegável. De modo geral, as atividades produtivas deveriam ser desoneradas, em favor de um imposto universal sobre o consumo final (com dedução correspondente das etapas anteriores e das exportações), introduzindo-se para corrigir a eventual injustiça da imposição indireta um sistema de alocações diretas e indiretas para as camadas de menor renda. Um imposto sobre transações financeiras poderia eventualmente se substituir à maior parte dos demais, eliminando-se aliás os problemas de uma imensa máquina arrecadadora, mas ele deveria estar na base de um federalismo fiscal rigoroso e dotado de mecanismos de correção de desigualdades inerentes à capacidade fiscal diferenciada dos estados e municípios. O direito de herança, assim como a fortuna, seriam moderadamente taxados, apenas para fins de “justiça social”, pois que o retorno fiscal desse tipo de imposição é inversamente proporcional ao esforço da máquina arrecadadora. Determinados bens — álcool, tabaco — também poderiam ser taxados pesadamente, para fins de contenção do consumo e financiamento de programas destinados a combater seus efeitos nefastos. As loterias e concursos seriam todos revertidos a finalidades sociais.

Manifesto do Partido Comunista, 1848:
3. Abolição do direito de herança.
Paulo Roberto de Almeida, 1998:
3. Revisão do conjunto de dispositivos regulatórios do trabalho, no sentido de adequar sua oferta e demanda à flexibilidade e adaptabilidade de mercados típica de uma economia globalizada e de liberá-lo da camisa de força de uma legislação característica do regime das guildas medievais. O trabalho não vai conseguir contrapor-se à preeminência do capital pela introdução de limites, condicionalidades ou restrições à sua utilização, mas sim pelo aumento contínuo de sua qualificação intrínseca. O desemprego, aliás, não resulta da falta de proteção contra a “prepotência” do capital ou do aumento da concorrência estrangeira que sustenta preços de “dumping” com base em trabalho aviltado e mal pago, mas de causas propriamente internas, geralmente vinculadas à rigidez das economias e de sua incapacidade de adaptação às mudanças tecnológicas em curso.

Manifesto do Partido Comunista, 1848:
4. Confiscação da propriedade de todos os emigrados e rebeldes.
Paulo Roberto de Almeida, 1998:
4. Política deliberada de acolhimento de imigrantes, sobretudo por meio de mecanismos de atração de “cérebros”, abrindo-se as universidades e os laboratórios públicos a todos os pesquisadores estrangeiros que quisessem estabelecer-se no Brasil. Desmantelamento das exigências abusivas que se fazem à vinda de imigrantes individuais — aprovação prévia de contrato de trabalho ou 200 mil dólares de investimento direto — pois a maior parte da riqueza potencial que possa ser trazida pela mão-de-obra de outros países está no cérebro — como no caso de especialistas de software — e não em sistemas industriais pesados.

Manifesto do Partido Comunista, 1848:
5. Centralização do crédito nas mãos do Estado, através de um banco nacional com capital de Estado e monopólio exclusivo.
Paulo Roberto de Almeida, 1998:
5. Decentralização do crédito e privatização dos poucos bancos que ainda restam em mãos do Estado, com a preservação de um banco nacional para fins de desenvolvimento regional, de crédito educativo, de pesquisa científica e tecnológica e de financiamento de atividades de ponta, sem retorno imediato.

Manifesto do Partido Comunista, 1848:
6. Centralização de todo o sistema de transportes nas mãos do Estado.
Paulo Roberto de Almeida, 1998:
6. Decentralização e desmonopolização radicais de todos os meios de comunicação e de transporte, sobretudo naquelas áreas vinculadas à transmissão de dados e de imagens, base da nova civilização do saber e do conhecimento. Estabelecimento de completa abertura à concorrência nessas áreas, com a finalidade de baratear custos e democratizar o acesso.

Manifesto do Partido Comunista, 1848:
7. Multiplicação das fábricas nacionais, dos instrumentos de produção, desbravamento de terras e melhoramento dos terrenos agrícolas de acordo com um plano comunitário.
Paulo Roberto de Almeida, 1998:
7. Privatização de todas as atividades produtivas não vinculadas à ação precípua do Estado — saúde, educação, segurança, justiça — uma vez que as empresas estatais ou nacionalizadas no passado criaram quistos de privilégios corporativos e focos de ineficiência administrativa, quando não de corrupção direta, numa nação inspirada por princípios igualitários e animada pela justa e proporcionada retribuição pelos esforços dos funcionários do Estado, sem privilégios individuais ou de casta. Não haverá estabilidade de cargos, senão naquelas funções temporariamente vinculadas a um tipo de desempenho que se requer autônomo e independente das instâncias políticas e econômicas, em setores tidos como envolvendo uma responsabilidade coletiva (juízes, membros por mandato definido do Conselho Monetário ampliado, etc.).

Manifesto do Partido Comunista, 1848:
8. Obrigatoriedade do trabalho para todos, instituição de exércitos industriais, em especial para a agricultura.
Paulo Roberto de Almeida, 1998:
8. Igualdade de chances na intervenção do Estado nos serviços públicos de saúde e de educação básica e no sistema de seguridade social, com a unificação progressiva dos regimes existentes. Disseminação da aposentadoria complementar por sistemas de capitalização, poderoso indutor da poupança privada. Investimentos maciços no ensino básico e introdução de mecanismos de compensação no ensino médio e superior. Estabelecimento de serviço civil de utilidade pública para atuação nos setores carentes e marginalizados.

Manifesto do Partido Comunista, 1848:
9. Unificação da exploração da agricultura e da indústria, atuação com vista à eliminação gradual da oposição entre cidade e campo.
Paulo Roberto de Almeida, 1998:
9. Abertura irrestrita de todos os setores produtivos e de serviços ao regime de livre concorrência, inclusive com a participação do capital estrangeiro, sem nenhum tipo de reserva ou restrição que não seja justificada pela segurança nacional (estritamente definida), defesa do meio ambiente ou ordem pública.

Manifesto do Partido Comunista, 1848:
10. Educação pública e gratuita de todas as crianças. Eliminação do trabalho das crianças nas fábricas na sua forma atual. Integração da educação com a produção material etc.
Paulo Roberto de Almeida, 1998:
10. Educação livre, pública e gratuita para todas as crianças no sistema de ensino básico, com atribuição de sistemas de retribuição para os setores carentes, que deverão ser objeto de atenção especial, retirando-se as crianças do exercício de atividades econômicas até a adolescência. Padrões uniformes de ensino no nível médio, com intervenção pontual do Estado se necessário. O ensino superior se organizará com base em critérios de mercado, inclusive as universidades públicas, que definirão mecanismos equivalentes aos de mercado na aferição da qualidade do ensino, na avaliação das atividades acadêmicas e na retribuição daqueles engajados em setores de pesquisa e desenvolvimento. Sistema de bolsa-educação para o amplo acesso da universidade por parte de todos aqueles qualificados nos escalões inferiores de ensino.

Ainda parafraseando o jovem Marx, no lugar da velha sociedade burguesa, com seus antagonismos sociais e de classe, se construirá progressivamente uma associação de cidadãos, na qual o livre desenvolvimento de cada um será a condição para o livre desenvolvimento de todos.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1256: 9 de maio de 2004

Algumas idéias simples sobre o Brasil e o seu povo - Paulo Roberto de Almeida (2004)


Algumas idéias simples sobre o Brasil e o seu povo
Paulo Roberto de Almeida
(4 de abril de 2004; www.pralmeida.org)

O Brasil já empreendeu, em sua história contemporânea, várias “revoluções”, algumas voluntárias, outras involuntárias. Um sistema oligárquico foi jogado na lata do lixo da história e o País começou, em 1930, um processo de modernização social e econômica, infelizmente pela via autoritária, o que foi “corrigido” por um golpe militar quinze anos depois.
Ele tentou então criar, a partir de 1946, uma democracia restrita, quase censitária, à base de voluntarismo econômico, o que acabou resultando em alto crescimento e em grandes desequilíbrios, inclusive monetários, uma maldição que se prolongou durante quarenta anos. Mas, foi uma experiência de democracia.
Os militares tentaram corrigir esses desequilíbrios mediante sua “revolução” e adotaram uma concepção “nazista” de economia, recheada de muita autosuficiência material e pouca participação social: foi o tal de modelo excludente e concentrador, que no entanto completou o processo de industrialização iniciado duas décadas antes. Eles tentaram criar uma sólida infra-estrutura econômica e uma boa superestrutura científica, mas falharam em criar uma simples infra-estrutura da educação de base e a bem mais complexa superestrutura institucional. Os militares aumentaram o PIB, mas diminuiram a coesão social e tiveram de sair (algo desajeitadamente) de cena.
A “revolução” da redemocratização política expandiu a participação social, consolidou um regime democrático algo pletórico na afirmação dos direitos cidadãos e criou vários impasses na execução orçamentária, o que comprometeu a estabilização econômica. O que foi ganho no terreno das liberdades foi perdido na voragem inflacionária.
O povo apostou então na miragem do caçador de marajás e aniquilador da inflação: foi a maior fraude política da história do Brasil, em qualquer época. Seguiu-se uma fase de ensaio e erro que desembocou na primeira grande revolução econômica do Brasil moderno. O ajuste orçamentário, a moeda estável, a abertura econômica, a responsabilidade fiscal são conquistas que não podem ser jogadas na lata do lixo e no entanto tudo isso passou por “estelionato eleitoral”. Em todo caso, a euforia da estabilização não suportou o choque das crises financeiras externas e o acúmulo de desequilíbrios internos, aliás criados em grande medida pelo acúmulo anterior de planos frustrados de estabilização. O balanço ainda está sendo feito.
A próxima revolução foi a “revolução pelo voto”, já que já tinha passado de moda assaltar o palácio de Inverno e criar o homem novo. Porém, é difícil fazer inclusão social a partir de um Estado disfuncional, um ogre devorador de dois quintos do PIB e incapaz de criar chances iguais para cidadãos desiguais, pois que ele mesmo gera desigualdades. O duplo preconceito contra o mercado e a extração de mais-valia alimenta uma anti-revolução microeconômica que torna extremamente difícil dar a partida a um processo sustentado de investimentos produtivos e de crescimento apoiado no conceito de interdependência econômica, que é também recusado em sua plenitude (só sendo aceitável nos casos restritos situados nas mesmas latitudes).
O que o Brasil necessitaria, agora, seria uma “revolução das reformas”, um pacto pela correção dos desajustes mais gritantes de sua estrutura social e da sua arquitetura institucional. O fim da fome, o crescimento e mais igualdade virão em consequência dessa revolução, bem mais difícil de conceber do que de aplicar, é verdade, pois que ela vai contra o senso comum e as verdades reveladas.
As reformas não passam por políticas setoriais nem pela luta contra a vulnerabilidade externa, mas por políticas universais de inclusão via educação e de diminuição da fragilidade profissional do trabalhador brasileiro. Esta é a “revolução” da produtividade social.
O Brasil já fez a sua “revolução pelo voto” e lhe resta agora fazer a revolução da inclusão social, o que passa pelas “reformas de base”: educação, educação, educação e mais educação, mas não qualquer uma. A reforma passa pela formação de professores primários e pela sua qualificação social via salários. Ela vai ao ensino médio pela mesma via e termina na formação técnico-profissional da população economicamente ativa. A universidade talvez possa ser parte da solução, mas isso teria de passar por mais mercado e um pouco menos de retórica.
O povo brasileiro tem idéias muito simples sobre as condições de sua felicidade bruta: emprego (renda), segurança, saúde, filhos criados com educação e novas oportunidades de emprego, apenas isso. Todo o resto da agenda a burguesia, as elites universitárias e as elites “populares” sabem fazer: competitividade industrial, progresso científico, presença do Brasil no mundo, afirmação da identidade cultural e dos valores nacionais, defesa da soberania etc. Não há qualquer perigo de perdermos essas batalhas mais simples. O difícil mesmo é fazer a revolução das reformas em prol do bem estar da maioria da população. Mas isso é uma questão de visão!

 Paulo Roberto de Almeida, Brasília, 1240: 4 de abril de 2004.

A evolução das espécies diplomáticas: exercício de quantificação - Paulo Roberto de Almeida

Uma brincadeira antiga, que ficou inédita, esperando um livro planejando, que acabou nunca saindo, como, aliás, um "Dicionário de Disparates Diplomáticos", que aguarda melhores condições (políticas) para ser publicado.
Paulo Roberto de Almeida 



A evolução das espécies diplomáticas: exercício de quantificação
(da série: “Macro e microeconomia da diplomacia”)

Paulo Roberto de Almeida
(Brasília, 1230: 21/03/2004; www.pralmeida.org)

Dando continuidade à minha série de artigos bissextos, enfeixados sob o título geral de “Macro e microeconomia da diplomacia” – e já representados por um primeiro ensaio de levantamento das principais “questões de economia diplomática” e um segundo texto relativo à questão específica da “produtividade diplomática”, ambos disponíveis no link: www.pralmeida.org/07CousasDiplomaticas/01MacroMicroDiplom.html –, permito-me tratar agora de uma das externalidades que influenciam a carreira e o desempenho do diplomata: aquela que se ocupa de sua exata caracterização quanto ao gênero, o que nem sempre tem a ver com a sua orientação sexual. Faço-o apenas para responder a uma indagação de um colega de trabalho que, como eu, é sociólogo de formação, mas que, também como eu, costuma dar palpites em assuntos econômicos. Pois não é que ele vem repetidamente indagando, de forma aparentemente séria, sobre o “índice de boiolagem explícita” no Itamaraty, e eu nem sempre disponho dos dados empíricos para responder?
Questão grave, e importante, que ainda não foi objeto, salvo engano meu, de algum estudo de sociografia diplomática, dentre tantos outros que se ocupam de questões relevantes de política externa e das relações internacionais do Brasil. Ainda que esta série se ocupe, primordialmente, da macro e da microeconomia da diplomacia, ela não poderia ignorar uma questão que afeta, talvez com intensidade insuspeita, aqueles que se ocupam, funcionalmente, de diplomacia, isto é, os diplomatas, as diplomatas, além de todos os “outros” que, por uma ou outra razão, também exercem essa função nobre no Estado. Estes “outros” parecem constituir uma proporção razoável dos funcionários da Casa, não considerando aqui, obviamente, aqueles curiosos que estão exercendo, temporariamente, funções diplomáticas mas que não são diplomatas de carreira (como os políticos no exílio, os amigos do rei e outros apaniguados de qualquer tipo que, a despeito de tudo, toda corte sempre carrega como um fardo). Na acepção aqui retida, por “outros” podem ser classificados todos aqueles que, com a ajuda do superego freudiano, preenchem com uma pontada no coração o item “gênero” nos formulários padronizados.
Quanto são eles, exatamente?: mistério. Como se distribuem entre as classes de diplomatas?: ignoramos totalmente. Qual o coeficiente de abertura externa?: igualmente não sabido. Qual sua incidência nas diversas gerações?: outro imponderável. Foram perseguidos em outras eras, estão mais à vontade nesta nossa época de uniões livres e de abertura de armários?: certamente, mas muitos ainda se escondem atrás de uma vida dupla e de um comportamento reservoso, tão desnecessário, hoje em dia, quão nefasto ao equilíbrio mental de funcionários que, no que se sabe, são tão ou mais dedicados à carreira do que quaisquer outros, por vezes até mais.
Seria possível construir um índice confiável da presença efetiva desses detentores de um charme discreto que tende a ser confundido com o da própria diplomacia? Difícil dizer pois que, à diferença dos conhecidos índices de Laspeyres ou de Paasche, não se pode determinar com rigor a média aritmética ou a média harmônica (esta ainda mais problemática) da evolução desse “produto” – com perdão pelo uso do conceito – ao longo do tempo ou no espaço. Talvez tenhamos de nos contentar com uma aproximação que, ignorando voluntariamente os valores no atacado, se concentre sobre os mesmos no varejo. O coeficiente de variação desses “produtos” na cesta da carreira será sempre algo ambíguo e indeterminado, pois que as estatísticas não sabem como estimar o quantum de população economicamente ativa não revelada, pelo menos não de modo explícito.
O fato é que, impossibilitado de responder precisamente a tão importante questão do supracitado colega – ele chegou a aventar a hipótese de 90%, o que, francamente, eu considero algo exagerado –, decidi, se não oferecer um cálculo, ou sequer uma estimativa grosseira, pelo menos propor um método um pouco mais científico de determinação da incidência relativa dessa fauna peculiar no conjunto da classe (atenção taxonomistas: não confundir a espécie e o gênero com a família e esta com a classe, pois se trata de graus diversos de aproximação filogenética). A investigação compreende obviamente aspectos macro e outros microeconômicos, sendo estes provavelmente mais relevantes em vista da dimensão reconhecidamente privada da matéria.
Uma interpretação de tipo keynesiana a esse problema, tenderia a identificar, historicamente, as grandes tendências das curvas de oferta e procura para o fenômeno em questão, o que revelaria, claramente, um nítida inflexão para cima da curva de oferta e uma estabilização relativa da curva de demanda, com uma certa depreciação, portanto, do valor do produto ao longo do tempo. Esse comportamento pode ser explicado pela existência daquilo que os economistas do século XIX chamavam de “abstinência”, isto é, uma abstenção voluntária ao consumo deliberado desse produto, e que os economistas modernos passaram a denominar sob o conceito de poupança (não confundir, porém, com o vulgar epíteto). Em virtude, todavia, do princípio da “aceleração”, fenômeno colocado em evidência pela primeira vez pelo economista francês Aftalion em 1913, o produto foi sendo incorporado aos gostos da demanda. Atenção: não se trata ainda do “multiplicador keynesiano”, mas tão simplesmente do crescimento proporcionalmente mais forte da demanda por bens de capital – sim: existe um capital intrínseco à espécie – do que a expansão da demanda final da qual ela deriva.
O rendimento marginal do capital fixo investido em equipamentos próprios (que fazem parte do capital no nível microeconômico) redunda, em última instância, naquele tipo de demanda que Keynes, ele mesmo um representante da espécie, chamou de agregada, mas que para todos os efeitos práticos de um serviço gozando do monopólio da reprodução da espécie, tende a ser confundida com a demanda efetiva. Em qualquer hipótese, o ciclo econômico conduz a uma expansão ainda mais desproporcional da oferta do produto em questão, o que pode ter resultado, em várias épocas, naquilo que Marx chamou de “crise de superprodução”. Esse fenômeno era visível no Brasil de meados dos anos 1950 ao início dos 60.
Esse deslocamento para cima da curva da oferta no Brasil – alguns estimaram um crescimento anual da ordem de 7% no período 1956-64, que por acaso se confunde com a variação do PIB na mesma fase – foi temporariamente interrompido pela “Redentora” de 1964, que foi tudo menos liberadora para a subespécie em questão. A forte contração da demanda correspondeu a uma queda ainda mais brutal da oferta, reprimida a ponto de se temer pelo seu desaparecimento.
Como naquele tempo não tinha sido ainda negociada a convenção CITES (isto é, a das espécies ameaçadas de extinção) temeu-se pelo desaparecimento do produto do mercado. Alguns representantes da subespécie, já sem marca registrada, chegaram a ser descartados de maneira vil pelo controle de qualidade dos serviços de inspeção, o que só foi evitado graças a uma estratégia sutil de marketing, consistindo numa gestão discreta da rede de fornecedores e clientes e num serviço quase personalizado de entrega.
Tempos negros para a subespécie, esses das restrições impostas pela corporação viril, levando a uma redução forçada nos níveis de demanda e de oferta, sobretudo esta última, atingida por um recolhimento compulsório que jamais foi igualado por qualquer banco central, em qualquer outra época. O enxugamento de liquidez foi geral, só não chegando a uma balança negativa porque alguns, por interesse próprio ou por espírito humanitário, se dedicaram a manter um cash flow mínimo. Dizem até que um secretário-geral especialmente zeloso chegou a responder a um general mais afoito: “eles podem ser boiolas, mas são os meus boiolas”. E não permitiu que tocasse mais na fauna da Casa. Com isso, se logrou preservar a espécie e se manteve razoavelmente intacto o capital genético, permitindo a reconstituição do plantel uma vez asseguradas as condições de mercado e o adequado equilíbrio entre capital fixo e ativos convertíveis.
Observou-se, em seguida, uma evolução moderada desse exército especial de reserva, ciclo no qual a forte demanda reprimida foi contida por um controle igualmente severo do lado da oferta, limitada na entrada por um chefe da Divisão do Pessoal que ficou conhecido como “Deer Hunter”. O fato é que ele abatia todos os candidatos da categoria que ousavam passar impunes pelos exames da primeira fase, obrigando alguns a adotar uma estratégia de diversificação do produto, envolvendo inclusive matrimônio exogâmico (o que contraria os hábitos endogâmicos do grupo). Passada porém essa fase, com o deslocamento, para fora da abcissa, do atirador contumaz, a linha da coordenada voltou a experimentar um deslocamento para a direita e para cima.
Mas o produto bruto diplomático relativo à subespécie só voltou a conhecer níveis exponenciais de crescimento com o fim do autoritarismo político, período que também corresponde a uma forte injeção fiscal na Secretaria de Estado, com novos expoentes que não mais tiveram de se restringir aos circuitos especializados – e necessariamente discretos – nesse tipo de mão-de-obra. Beneficiando-se então de vantagens comparativas ricardianas – que tendiam a promover, nos trópicos, um produto mais sensual –, os fluxos de capital diplomático customized se expandem a uma velocidade nunca vista, chegando a ameaçar as redes já estabelecidas de serviços tradicionais e ortodoxos. Depois de uma certa confusão inicial no plano regulatório, ocorreu uma acomodação natural segundo as especializações comportamentais, o que confirmou linhas e setores específicos na divisão funcional de trabalho entre os membros das várias castas existentes.
Alguns intercâmbios continuaram a ocorrer, tanto mais importantes quanto o nível observado de demanda reprimida no ciclo anterior de negócios, mas registrou-se em geral uma segmentação de mercados, que progressivamente beneficiou as minorias mais ativas e engajadas na transformação produtiva dessa empresa verdadeiramente multinacional. Com a prática de subsídios cruzados, por parte daqueles situados estrategicamente na administração em favor de outros posicionados na ponta dos determinados serviços de consumo especializado – cerimonial ou mesmo intendência geral –, ocorreu valorização de alguns ativos e desvalorização de outros, mas sempre com uma ascensão gradativa da nova classe a funções cada vez mais bem localizados na escala de comando.
Fatores de produção anteriormente dotados de externalidades negativas – como as colunas sociais e as recepções seletivas – passaram a ser mobilizados pelas novas teorias sobre o comércio estratégico de iniciados, que logicamente se beneficiaram enquanto puderam de importantes transferências fiscais, até a prática ser regulada e fortemente restringida pela Rodada Uruguai do GATT. Mas, os serviços continuaram ser oferecidos segundo listas positivas, o que permitia isolar os simples curiosos ou os pouco dotados de talentos para essas lides alternativas de intercâmbio diplomático.
O fato é que, sem a intervenção moralista dos governos, as relações de mercado entre as novas espécies se expandiram de modo exponencial, a ponto de elas dominarem alguns serviços colocados em regime de concorrência imperfeita (e alguns diriam até mesmo desleal). Nem todos as esferas de administração foram objetos de oligopolização pela subespécie em questão, mas operando num serviço que já ostenta uma situação de monopólio “natural”, a combinação da preferência pelo similar e circuitos fechados de distribuição – onde vale não necessariamente a eficiência alocativa, mas o compadrio e o nepotismo – redundou numa curva de regressão altamente desfavorável para as demais categorias. O tratamento preferencial e mais favorável para os diplomatas do grupo em causa se fez em detrimento do antigo grupo majoritário, que não dispunha do mesmo poder de fogo concentrado e de estratégias de mercado adaptadas a seu status de maioria silenciosa.
Não se dispõe, ainda, de modelos econométricos que permitam medir com precisão, e avaliar a partir de dados empíricos verificáveis, a base instalada e a extensão da população aqui referenciada no conjunto do serviço diplomático, que agora também passou a fornecer mão-de-obra especializada, e relativamente competitiva, para outros serviços da burocracia federal. Não se sabe se um survey discretamente conduzido seria capaz de medir a extensão do fenômeno, já que persistem setores reprimidos nas duas pontas e que os novos tipos de uniões legais não estão ainda plenamente consagrados, ou sequer legalizados.
Alguns tiques comportamentais e verbais são, entretanto, facilmente detectáveis, o que permitira construir um modelo formal de análise, pronto a ser testado num survey dotado de variáveis conhecidas e identificadas ao longo do tempo. Pesquisas de campo conduzidas com técnicas ainda rudimentares de medição permitiram, em todo caso, quantificar o exército especial já referido – que não é mais “de reserva”, nota bene – em pelo menos 50% da população economicamente ativa do serviço exterior, tomado em seu conjunto (isto é, os da ativa e os desativados). Talvez uma enquête provista de todos os requisitos científicos da sociografia contemporânea resultasse numa elevação desse percentual a pelo menos um quarto mais da amostra total. Como se vê, ainda não se chegou ao total estimado, com forte dose de arbitrariedade, por aquele colega de trabalho visivelmente mal intencionado. Em todo caso, o assunto permanece em aberto até que estudos mais abalizados venham revelar todo o potencial de mercado suscetível de ser encontrado em novas fórmulas de um velho produto.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1230: 21/03/2004

1230. “A evolução das espécies diplomáticas: exercício de quantificação (da série Macro e microeconomia da diplomacia)”, Brasília, 21 março 2004, 6 pp. Continuidade do exercício anterior (trabalhos nºs 1061 e 839, sobre questões gerais e de produtividade diplomática), enfocando o problema dos gêneros do diplomata. Para o livro Cousas Diplomáticas.

Desafios para um Brasil desenvolvido em 2010 - um texto PRA de 2004

Curiosa visita que faço a textos meus de seis ou sete anos atrás, alguns até prevendo um conjunto de tarefas para tornar o Brasil um país desenvolvido no médio prazo, ou seja, em cinco ou seis anos.
Abaixo um texto que elaborei no começo de 2004, propondo um programa completo de enfrentamento dos principais desafios do Brasil, para torná-lo desenvolvido em 2010, ou seja, quase dois anos atrás.
O que fizemos, o que o governo fez?
Vale recordar o que eu propunha, genericamente, podendo ser desdobrado em políticas setoriais.



Desafios para um Brasil desenvolvido em 2010
Paulo Roberto de Almeida
Miami, 6 março 2004

O Brasil tem imensas carências sociais e algumas deficiências materiais em seu processo de desenvolvimento. As carências sociais são provavelmente mais importantes do que os obstáculos materiais, e elas talvez expliquem a maior parte destes.
O Brasil também tem um Estado hipertrofiado, que parece consumir uma parte substancial dos recursos que seriam necessários para superar aquelas dificuldades materiais e sobretudo para paliar as terríveis carências sociais de que ainda padece e que o impedem de se qualificar plenamente para apresentar-se ao mundo como sociedade desenvolvida. Esse Estado não possui recursos suficientes e por vezes sequer organização condizente para cumprir com os objetivos e requerimentos essenciais para a superação de suas carências sociais e das lacunas materiais.
Por isso, um esforço de estabelecimento de prioridades parece necessário para que a sociedade e suas lideranças políticas possam oferecer algumas diretrizes de políticas setoriais e macrosocietais para o atingimento daquele objetivo de fazer do Brasil um país menos desigual e menos carente, social e materialmente, em prazo médio, digamos até 2010. O presente texto apresenta algumas dessas prioridades:

1) Melhoria da governança nos três níveis e combate à corrução;
2) Capacitação educacional e científica da população, formação de recursos humanos;
3) Eliminação das doenças infecto-contagiosas e universalização da saúde;
4) Correção dos problemas fiscais e racionalização redutora da tributação;
5) Inserção plena nos circuitos da globalização mediante interdependência responsável;
6) Integração social (com ativo planejamento familiar) e regional (em bases sustentáveis);
7) Aumento da produtividade geral da economia, com melhoria na microeconomia.

Estas podem ser as bases de um Brasil do futuro, cuja construção tem de ser iniciada desde já para que alguns resultados possam frutificar no horizonte 2010. Em documento ulterior serão definidas as bases das escolhas de políticas públicas aqui efetuadas e detalhadas as condições de sua realização.

Paulo Roberto de Almeida
Miami, 6 de março de 2004