Uma brincadeira antiga, que ficou inédita, esperando um livro planejando, que acabou nunca saindo, como, aliás, um "Dicionário de Disparates Diplomáticos", que aguarda melhores condições (políticas) para ser publicado.
Paulo Roberto de Almeida
A evolução das
espécies diplomáticas: exercício de quantificação
(da série:
“Macro e microeconomia da diplomacia”)
Paulo Roberto de Almeida
(Brasília, 1230: 21/03/2004; www.pralmeida.org)
Dando continuidade à minha série
de artigos bissextos, enfeixados sob o título geral de “Macro e microeconomia
da diplomacia” – e já representados por um primeiro ensaio de levantamento das
principais “questões de economia diplomática” e um segundo texto relativo à
questão específica da “produtividade diplomática”, ambos disponíveis no link: www.pralmeida.org/07CousasDiplomaticas/01MacroMicroDiplom.html
–, permito-me tratar agora de uma das externalidades que influenciam a carreira
e o desempenho do diplomata: aquela que se ocupa de sua exata caracterização
quanto ao gênero, o que nem sempre tem a ver com a sua orientação sexual.
Faço-o apenas para responder a uma indagação de um colega de trabalho que, como
eu, é sociólogo de formação, mas que, também como eu, costuma dar palpites em
assuntos econômicos. Pois não é que ele vem repetidamente indagando, de forma
aparentemente séria, sobre o “índice de boiolagem explícita” no Itamaraty, e eu
nem sempre disponho dos dados empíricos para responder?
Questão grave, e importante, que
ainda não foi objeto, salvo engano meu, de algum estudo de sociografia
diplomática, dentre tantos outros que se ocupam de questões relevantes de
política externa e das relações internacionais do Brasil. Ainda que esta série
se ocupe, primordialmente, da macro e da microeconomia da diplomacia, ela não
poderia ignorar uma questão que afeta, talvez com intensidade insuspeita,
aqueles que se ocupam, funcionalmente, de diplomacia, isto é, os diplomatas, as
diplomatas, além de todos os “outros” que, por uma ou outra razão, também
exercem essa função nobre no Estado. Estes “outros” parecem constituir uma
proporção razoável dos funcionários da Casa, não considerando aqui, obviamente,
aqueles curiosos que estão exercendo, temporariamente, funções diplomáticas mas
que não são diplomatas de carreira (como os políticos no exílio, os amigos do
rei e outros apaniguados de qualquer tipo que, a despeito de tudo, toda corte
sempre carrega como um fardo). Na acepção aqui retida, por “outros” podem ser
classificados todos aqueles que, com a ajuda do superego freudiano, preenchem
com uma pontada no coração o item “gênero” nos formulários padronizados.
Quanto são eles, exatamente?:
mistério. Como se distribuem entre as classes de diplomatas?: ignoramos
totalmente. Qual o coeficiente de abertura externa?: igualmente não sabido.
Qual sua incidência nas diversas gerações?: outro imponderável. Foram
perseguidos em outras eras, estão mais à vontade nesta nossa época de uniões
livres e de abertura de armários?: certamente, mas muitos ainda se escondem
atrás de uma vida dupla e de um comportamento reservoso, tão desnecessário,
hoje em dia, quão nefasto ao equilíbrio mental de funcionários que, no que se
sabe, são tão ou mais dedicados à carreira do que quaisquer outros, por vezes
até mais.
Seria possível construir um índice
confiável da presença efetiva desses detentores de um charme discreto que tende
a ser confundido com o da própria diplomacia? Difícil dizer pois que, à
diferença dos conhecidos índices de Laspeyres ou de Paasche, não se pode
determinar com rigor a média aritmética ou a média harmônica (esta ainda mais
problemática) da evolução desse “produto” – com perdão pelo uso do conceito –
ao longo do tempo ou no espaço. Talvez tenhamos de nos contentar com uma
aproximação que, ignorando voluntariamente os valores no atacado, se concentre
sobre os mesmos no varejo. O coeficiente de variação desses “produtos” na cesta
da carreira será sempre algo ambíguo e indeterminado, pois que as estatísticas
não sabem como estimar o quantum de
população economicamente ativa não revelada, pelo menos não de modo explícito.
O fato é que, impossibilitado de
responder precisamente a tão importante questão do supracitado colega – ele
chegou a aventar a hipótese de 90%, o que, francamente, eu considero algo
exagerado –, decidi, se não oferecer um cálculo, ou sequer uma estimativa
grosseira, pelo menos propor um método um pouco mais científico de determinação
da incidência relativa dessa fauna peculiar no conjunto da classe (atenção
taxonomistas: não confundir a espécie e o gênero com a família e esta com a
classe, pois se trata de graus diversos de aproximação filogenética). A
investigação compreende obviamente aspectos macro e outros microeconômicos,
sendo estes provavelmente mais relevantes em vista da dimensão reconhecidamente
privada da matéria.
Uma interpretação de tipo
keynesiana a esse problema, tenderia a identificar, historicamente, as grandes
tendências das curvas de oferta e procura para o fenômeno em questão, o que
revelaria, claramente, um nítida inflexão para cima da curva de oferta e uma
estabilização relativa da curva de demanda, com uma certa depreciação,
portanto, do valor do produto ao longo do tempo. Esse comportamento pode ser
explicado pela existência daquilo que os economistas do século XIX chamavam de
“abstinência”, isto é, uma abstenção voluntária ao consumo deliberado desse
produto, e que os economistas modernos passaram a denominar sob o conceito de
poupança (não confundir, porém, com o vulgar epíteto). Em virtude, todavia, do
princípio da “aceleração”, fenômeno colocado em evidência pela primeira vez
pelo economista francês Aftalion em 1913, o produto foi sendo incorporado aos
gostos da demanda. Atenção: não se trata ainda do “multiplicador keynesiano”,
mas tão simplesmente do crescimento proporcionalmente mais forte da demanda por
bens de capital – sim: existe um capital intrínseco à espécie – do que a
expansão da demanda final da qual ela deriva.
O rendimento marginal do capital
fixo investido em equipamentos próprios (que fazem parte do capital no nível
microeconômico) redunda, em última instância, naquele tipo de demanda que
Keynes, ele mesmo um representante da espécie, chamou de agregada, mas que para
todos os efeitos práticos de um serviço gozando do monopólio da reprodução da
espécie, tende a ser confundida com a demanda efetiva. Em qualquer hipótese, o
ciclo econômico conduz a uma expansão ainda mais desproporcional da oferta do
produto em questão, o que pode ter resultado, em várias épocas, naquilo que
Marx chamou de “crise de superprodução”. Esse fenômeno era visível no Brasil de
meados dos anos 1950 ao início dos 60.
Esse deslocamento para cima da
curva da oferta no Brasil – alguns estimaram um crescimento anual da ordem de
7% no período 1956-64, que por acaso se confunde com a variação do PIB na mesma
fase – foi temporariamente interrompido pela “Redentora” de 1964, que foi tudo
menos liberadora para a subespécie em questão. A forte contração da demanda
correspondeu a uma queda ainda mais brutal da oferta, reprimida a ponto de se
temer pelo seu desaparecimento.
Como naquele tempo não tinha sido
ainda negociada a convenção CITES (isto é, a das espécies ameaçadas de
extinção) temeu-se pelo desaparecimento do produto do mercado. Alguns
representantes da subespécie, já sem marca registrada, chegaram a ser
descartados de maneira vil pelo controle de qualidade dos serviços de inspeção,
o que só foi evitado graças a uma estratégia sutil de marketing, consistindo
numa gestão discreta da rede de fornecedores e clientes e num serviço quase
personalizado de entrega.
Tempos negros para a subespécie,
esses das restrições impostas pela corporação viril, levando a uma redução
forçada nos níveis de demanda e de oferta, sobretudo esta última, atingida por
um recolhimento compulsório que jamais foi igualado por qualquer banco central,
em qualquer outra época. O enxugamento de liquidez foi geral, só não chegando a
uma balança negativa porque alguns, por interesse próprio ou por espírito
humanitário, se dedicaram a manter um cash
flow mínimo. Dizem até que um secretário-geral especialmente zeloso chegou
a responder a um general mais afoito: “eles podem ser boiolas, mas são os meus
boiolas”. E não permitiu que tocasse mais na fauna da Casa. Com isso, se logrou
preservar a espécie e se manteve razoavelmente intacto o capital genético,
permitindo a reconstituição do plantel uma vez asseguradas as condições de
mercado e o adequado equilíbrio entre capital fixo e ativos convertíveis.
Observou-se, em seguida, uma
evolução moderada desse exército especial de reserva, ciclo no qual a forte
demanda reprimida foi contida por um controle igualmente severo do lado da
oferta, limitada na entrada por um chefe da Divisão do Pessoal que ficou
conhecido como “Deer Hunter”. O fato é que ele abatia todos os candidatos da
categoria que ousavam passar impunes pelos exames da primeira fase, obrigando
alguns a adotar uma estratégia de diversificação do produto, envolvendo
inclusive matrimônio exogâmico (o que contraria os hábitos endogâmicos do
grupo). Passada porém essa fase, com o deslocamento, para fora da abcissa, do
atirador contumaz, a linha da coordenada voltou a experimentar um deslocamento
para a direita e para cima.
Mas o produto bruto diplomático relativo à subespécie só voltou a conhecer
níveis exponenciais de crescimento com o fim do autoritarismo político, período
que também corresponde a uma forte injeção fiscal na Secretaria de Estado, com
novos expoentes que não mais tiveram de se restringir aos circuitos
especializados – e necessariamente discretos – nesse tipo de mão-de-obra.
Beneficiando-se então de vantagens comparativas ricardianas – que tendiam
a promover, nos trópicos, um produto mais sensual –, os fluxos de capital
diplomático customized se expandem a
uma velocidade nunca vista, chegando a ameaçar as redes já estabelecidas de
serviços tradicionais e ortodoxos. Depois de uma certa confusão inicial no
plano regulatório, ocorreu uma acomodação natural segundo as especializações
comportamentais, o que confirmou linhas e setores específicos na divisão
funcional de trabalho entre os membros das várias castas existentes.
Alguns intercâmbios continuaram a ocorrer, tanto mais
importantes quanto o nível observado de demanda reprimida no ciclo anterior de
negócios, mas registrou-se em geral uma segmentação de mercados, que
progressivamente beneficiou as minorias mais ativas e engajadas na
transformação produtiva dessa empresa verdadeiramente multinacional. Com a
prática de subsídios cruzados, por parte daqueles situados estrategicamente na
administração em favor de outros posicionados na ponta dos determinados
serviços de consumo especializado – cerimonial ou mesmo intendência geral –,
ocorreu valorização de alguns ativos e desvalorização de outros, mas sempre com
uma ascensão gradativa da nova classe a funções cada vez mais bem localizados
na escala de comando.
Fatores de produção anteriormente dotados de
externalidades negativas – como as colunas sociais e as recepções seletivas
– passaram a ser mobilizados pelas novas teorias sobre o comércio
estratégico de iniciados, que logicamente se beneficiaram enquanto puderam de
importantes transferências fiscais, até a prática ser regulada e fortemente
restringida pela Rodada Uruguai do GATT. Mas, os serviços continuaram ser
oferecidos segundo listas positivas, o que permitia isolar os simples curiosos
ou os pouco dotados de talentos para essas lides alternativas de intercâmbio
diplomático.
O fato é que, sem a intervenção moralista dos governos,
as relações de mercado entre as novas espécies se expandiram de modo
exponencial, a ponto de elas dominarem alguns serviços colocados em regime de
concorrência imperfeita (e alguns diriam até mesmo desleal). Nem todos as
esferas de administração foram objetos de oligopolização pela subespécie em questão,
mas operando num serviço que já ostenta uma situação de monopólio “natural”, a
combinação da preferência pelo similar e circuitos fechados de distribuição –
onde vale não necessariamente a eficiência alocativa, mas o compadrio e o
nepotismo – redundou numa curva de regressão altamente desfavorável para as
demais categorias. O tratamento preferencial e mais favorável para os
diplomatas do grupo em causa se fez em detrimento do antigo grupo majoritário,
que não dispunha do mesmo poder de fogo concentrado e de estratégias de mercado
adaptadas a seu status de maioria
silenciosa.
Não se dispõe, ainda, de modelos econométricos que
permitam medir com precisão, e avaliar a partir de dados empíricos
verificáveis, a base instalada e a extensão da população aqui referenciada no
conjunto do serviço diplomático, que agora também passou a fornecer mão-de-obra
especializada, e relativamente competitiva, para outros serviços da burocracia
federal. Não se sabe se um survey discretamente
conduzido seria capaz de medir a extensão do fenômeno, já que persistem setores
reprimidos nas duas pontas e que os novos tipos de uniões legais não estão
ainda plenamente consagrados, ou sequer legalizados.
Alguns tiques comportamentais e verbais são, entretanto,
facilmente detectáveis, o que permitira construir um modelo formal de análise,
pronto a ser testado num survey dotado
de variáveis conhecidas e identificadas ao longo do tempo. Pesquisas de campo
conduzidas com técnicas ainda rudimentares de medição permitiram, em todo caso,
quantificar o exército especial já referido – que não é mais “de reserva”, nota bene – em pelo menos 50% da
população economicamente ativa do serviço exterior, tomado em seu conjunto
(isto é, os da ativa e os desativados). Talvez uma enquête provista de todos os requisitos científicos da sociografia
contemporânea resultasse numa elevação desse percentual a pelo menos um quarto
mais da amostra total. Como se vê, ainda não se chegou ao total estimado, com
forte dose de arbitrariedade, por aquele colega de trabalho visivelmente mal
intencionado. Em todo caso, o assunto permanece em aberto até que estudos mais
abalizados venham revelar todo o potencial de mercado suscetível de ser
encontrado em novas fórmulas de um velho produto.
Paulo
Roberto de Almeida
Brasília,
1230: 21/03/2004
1230. “A evolução das espécies diplomáticas: exercício de
quantificação (da série Macro e microeconomia da
diplomacia)”, Brasília, 21 março 2004, 6 pp. Continuidade do exercício anterior
(trabalhos nºs 1061 e 839, sobre questões gerais e de produtividade
diplomática), enfocando o problema dos gêneros do diplomata. Para o livro Cousas Diplomáticas.
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