Implementando a revolução marxista do Manifesto
(uma lista atualizada de medidas)
Paulo Roberto de
Almeida
Os
leitores (assim como os militantes de esquerda) medianamente familiarizados com
o Manifesto do Partido Comunista, o
profético panfleto escrito em colaboração por Karl Marx e Friedrich Engels em
fevereiro de 1848 para glorificar o “modo burguês de produção” e antecipar sua
futura substituição pelo modo socialista de produção, sabem que na sua seção
sobre “proletários e comunistas” há um conjunto de medidas, exatamente dez, que
deveriam ser implementadas para a melhoria das condições de vida dos
trabalhadores e cidadãos em geral.
Essa
lista de medidas, à distância de mais de 160 anos, tem um certo sabor “gótico”,
como seria inevitável, mas o problema é que a maior parte da esquerda, pelo
menos a brasileira, continua aderindo ao seu espírito centralizador,
estatizante, enfim, socialista. Pois bem, em “manifesto alternativo” que eu redigi
por ocasião dos 150 anos daquele Manifesto,
eu propunha uma atualização das medidas, para torná-las compatíveis não apenas
com nossos tempos de globalização, como também com as necessidades de uma
esquerda moderna, ágil, pronta a enfrentar os problemas reais do mundo
contemporâneo, sem vê-la praticando os mesmos mecanismos litúrgicos de um velho
culto que quase já não é mais praticado em lugar algum. Essa atualização do
velho Manifesto de Marx e Engels foi
feita em um ensaio por mim preparado para o número especial de uma revista
brasileira de ciência política e republicado, com alguns ajustes em meu livro Velhos e Novos Manifestos: o socialismo na
era da globalização (São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/29Manifestos1999.html).
Como
eu escrevia em “meu” manifesto de 1998, a próxima revolução socialista deverá
ser a mais radical ruptura com a velha cultura comunista conhecida até aqui.
Não é de surpreender que esse desenvolvimento leve a uma ruptura com as
concepções mesmas defendidas pela velha esquerda, com seu cortejo de slogans
ultrapassados e preconceitos ideológicos. O novo socialismo não mais vai usar
sua eventual supremacia política, conquistada democraticamente nas urnas, para
centralizar todos os meios de produção nas mãos do Estado, como pretendiam algo
ingenuamente Marx e Engels. Isto seria uma grande irracionalidade política,
como já tinham descoberto alguns socialistas “revisionistas” desde o começo do
século XX. Não é dessa maneira que se logrará incrementar o conjunto das forças
produtivas tão rapidamente quanto possível.
A revolução completa nas relações de produção resultará da plena
capacitação individual dos trabalhadores, de sua educação refinada e preparação
adequada para enfrentar os desafios de um mercado mundial capitalista, hoje
dominado pela burguesia, mas que não tem porque permanecer sob o seu jugo
monopólico. Para retirar à burguesia esse poder incomensurável, os
trabalhadores devem realizar, eles também, seu processo de “acumulação
primitiva”, a começar pelo mais comezinho dos direitos humanos, a educação de
base, pública, universal e gratuita.
As medidas a serem adotadas em prol do estabelecimento das novas
relações de produção serão evidentemente diferentes em cada país. Entretanto,
as seguintes medidas seriam geralmente aplicáveis num país da periferia ainda
insuficientemente desenvolvido do ponto de vista capitalista como o Brasil:
Dois manifestos em busca de um mundo melhor
Manifesto do Partido Comunista, 1848:
1. Expropriação da propriedade fundiária e emprego das rendas fundiárias
para despesas do Estado.
Paulo Roberto de Almeida, 1998:
1.
Abolição do “monopólio” da terra, como desejado no Manifesto de 1848; essa
abolição seria feita progressiva mas rapidamente, por meio de pesada imposição
fiscal; esse imposto da terra já estava aliás previsto na “Lei de Terras”
votada quase 150 anos atrás no Brasil, mas os latifundiários que então dominavam
o parlamento não deixaram passar o princípio do imposto territorial rural. Essa
medida, do mais comezinho significado econômico e tributário, teve de ser
implementada, já no final do século XX, por um governo dito social-democrata,
notoriamente inspirado nos sãos princípios liberais da atividade econômica. Um
programa amplo de “reforma agrária”, num país fundamentalmente urbano como o
Brasil de hoje, não tem obviamente o mesmo impacto econômico que teria tido se
tivesse sido realizado décadas atrás, mas ele tem um profundo significado
social em regiões onde a terra se encontra concentrada nas mãos de uns poucos
latifundiários “feudais”. O que se deve buscar é a disseminação da propriedade
rural produtiva, ao lado do minifúndio organizado em cooperativas e do
agribusiness totalmente capitalista.
Manifesto do Partido Comunista, 1848:
2.
Pesado imposto progressivo.
Paulo Roberto de Almeida, 1998:
2. Além de um imposto
sobre a renda, de caráter altamente progressivo e graduado, como desejado por
Marx há 150 anos, estabelecer uma reforma tributária de escopo racional e de
aplicação insonegável. De modo geral, as atividades produtivas deveriam ser
desoneradas, em favor de um imposto universal sobre o consumo final (com
dedução correspondente das etapas anteriores e das exportações),
introduzindo-se para corrigir a eventual injustiça da imposição indireta um
sistema de alocações diretas e indiretas para as camadas de menor renda. Um
imposto sobre transações financeiras poderia eventualmente se substituir à maior
parte dos demais, eliminando-se aliás os problemas de uma imensa máquina
arrecadadora, mas ele deveria estar na base de um federalismo fiscal rigoroso e
dotado de mecanismos de correção de desigualdades inerentes à capacidade fiscal
diferenciada dos estados e municípios. O direito de herança, assim como a
fortuna, seriam moderadamente taxados, apenas para fins de “justiça social”,
pois que o retorno fiscal desse tipo de imposição é inversamente proporcional
ao esforço da máquina arrecadadora. Determinados bens — álcool, tabaco — também
poderiam ser taxados pesadamente, para fins de contenção do consumo e
financiamento de programas destinados a combater seus efeitos nefastos. As
loterias e concursos seriam todos revertidos a finalidades sociais.
Manifesto do Partido Comunista, 1848:
3.
Abolição do direito de herança.
Paulo Roberto de Almeida, 1998:
3. Revisão do conjunto
de dispositivos regulatórios do trabalho, no sentido de adequar sua oferta e
demanda à flexibilidade e adaptabilidade de mercados típica de uma economia
globalizada e de liberá-lo da camisa de força de uma legislação característica
do regime das guildas medievais. O trabalho não vai conseguir contrapor-se à
preeminência do capital pela introdução de limites, condicionalidades ou
restrições à sua utilização, mas sim pelo aumento contínuo de sua qualificação
intrínseca. O desemprego, aliás, não resulta da falta de proteção contra a
“prepotência” do capital ou do aumento da concorrência estrangeira que sustenta
preços de “dumping” com base em trabalho aviltado e mal pago, mas de causas
propriamente internas, geralmente vinculadas à rigidez das economias e de sua
incapacidade de adaptação às mudanças tecnológicas em curso.
Manifesto do Partido Comunista, 1848:
4.
Confiscação da propriedade de todos os emigrados e rebeldes.
Paulo Roberto de Almeida, 1998:
4. Política deliberada
de acolhimento de imigrantes, sobretudo por meio de mecanismos de atração de
“cérebros”, abrindo-se as universidades e os laboratórios públicos a todos os
pesquisadores estrangeiros que quisessem estabelecer-se no Brasil.
Desmantelamento das exigências abusivas que se fazem à vinda de imigrantes
individuais — aprovação prévia de contrato de trabalho ou 200 mil dólares de
investimento direto — pois a maior parte da riqueza potencial que possa ser
trazida pela mão-de-obra de outros países está no cérebro — como no caso de
especialistas de software — e não em sistemas industriais pesados.
Manifesto do Partido Comunista, 1848:
5.
Centralização do crédito nas mãos do Estado, através de um banco nacional com
capital de Estado e monopólio exclusivo.
Paulo Roberto de Almeida, 1998:
5. Decentralização do
crédito e privatização dos poucos bancos que ainda restam em mãos do Estado,
com a preservação de um banco nacional para fins de desenvolvimento regional,
de crédito educativo, de pesquisa científica e tecnológica e de financiamento
de atividades de ponta, sem retorno imediato.
Manifesto do Partido Comunista, 1848:
6.
Centralização de todo o sistema de transportes nas mãos do Estado.
Paulo Roberto de Almeida, 1998:
6. Decentralização e
desmonopolização radicais de todos os meios de comunicação e de transporte,
sobretudo naquelas áreas vinculadas à transmissão de dados e de imagens, base
da nova civilização do saber e do conhecimento. Estabelecimento de completa
abertura à concorrência nessas áreas, com a finalidade de baratear custos e
democratizar o acesso.
Manifesto do Partido Comunista, 1848:
7.
Multiplicação das fábricas nacionais, dos instrumentos de produção,
desbravamento de terras e melhoramento dos terrenos agrícolas de acordo com um
plano comunitário.
Paulo Roberto de Almeida, 1998:
7. Privatização de todas
as atividades produtivas não vinculadas à ação precípua do Estado — saúde,
educação, segurança, justiça — uma vez que as empresas estatais ou
nacionalizadas no passado criaram quistos de privilégios corporativos e focos
de ineficiência administrativa, quando não de corrupção direta, numa nação
inspirada por princípios igualitários e animada pela justa e proporcionada
retribuição pelos esforços dos funcionários do Estado, sem privilégios
individuais ou de casta. Não haverá estabilidade de cargos, senão naquelas
funções temporariamente vinculadas a um tipo de desempenho que se requer
autônomo e independente das instâncias políticas e econômicas, em setores tidos
como envolvendo uma responsabilidade coletiva (juízes, membros por mandato
definido do Conselho Monetário ampliado, etc.).
Manifesto do Partido Comunista, 1848:
8.
Obrigatoriedade do trabalho para todos, instituição de exércitos industriais,
em especial para a agricultura.
Paulo Roberto de Almeida, 1998:
8. Igualdade de chances
na intervenção do Estado nos serviços públicos de saúde e de educação básica e
no sistema de seguridade social, com a unificação progressiva dos regimes
existentes. Disseminação da aposentadoria complementar por sistemas de
capitalização, poderoso indutor da poupança privada. Investimentos maciços no
ensino básico e introdução de mecanismos de compensação no ensino médio e
superior. Estabelecimento de serviço civil de utilidade pública para atuação
nos setores carentes e marginalizados.
Manifesto do Partido Comunista, 1848:
9.
Unificação da exploração da agricultura e da indústria, atuação com vista à
eliminação gradual da oposição entre cidade e campo.
Paulo Roberto de Almeida, 1998:
9. Abertura irrestrita
de todos os setores produtivos e de serviços ao regime de livre concorrência,
inclusive com a participação do capital estrangeiro, sem nenhum tipo de reserva
ou restrição que não seja justificada pela segurança nacional (estritamente
definida), defesa do meio ambiente ou ordem pública.
Manifesto do Partido Comunista, 1848:
10.
Educação pública e gratuita de todas as crianças. Eliminação do trabalho das
crianças nas fábricas na sua forma atual. Integração da educação com a produção
material etc.
Paulo Roberto de Almeida, 1998:
10. Educação livre,
pública e gratuita para todas as crianças no sistema de ensino básico, com
atribuição de sistemas de retribuição para os setores carentes, que deverão ser
objeto de atenção especial, retirando-se as crianças do exercício de atividades
econômicas até a adolescência. Padrões uniformes de ensino no nível médio, com
intervenção pontual do Estado se necessário. O ensino superior se organizará
com base em critérios de mercado, inclusive as universidades públicas, que
definirão mecanismos equivalentes aos de mercado na aferição da qualidade do
ensino, na avaliação das atividades acadêmicas e na retribuição daqueles
engajados em setores de pesquisa e desenvolvimento. Sistema de bolsa-educação
para o amplo acesso da universidade por parte de todos aqueles qualificados nos
escalões inferiores de ensino.
Ainda
parafraseando o jovem Marx, no lugar da velha sociedade burguesa, com seus
antagonismos sociais e de classe, se construirá progressivamente uma associação
de cidadãos, na qual o livre desenvolvimento de cada um será a condição para o
livre desenvolvimento de todos.
Paulo Roberto de
Almeida
Brasília, 1256: 9
de maio de 2004
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