Confidências de um escrevinhador
Mario Vargas Llosa
Entrevista a Emilio Fraia
Revista TAM nas Nuvens, novembro 2011
Na Calle Flora, em Madri, no
terceiro andar de um antigo prédio, vivem dezenas de hipopótamos. Nas estantes,
mesas, e, emoldurando a imensa biblioteca, os bichos acompanham seu dono, o
escritor peruano Mario Vargas Llosa, de 74 anos, que os observa orgulhoso.
“Eles são feios, dão impressão de brutalidade, mas na verdade são delicados”,
diz. “Gosto deste paradoxo.” Quando Vargas Llosa estreou na Inglaterra sua peça
Kathie e o Hipopótamo, nos anos 80, os atores o presentearam com algumas
miniaturas e, desde então, os animais — de vidro, madeira, porcelana ou
coloridos — habitam a sala onde Llosa concedeu esta entrevista semanas antes de
ganhar o prêmio Nobel de Literatura de 2010.
Enquanto
uma de suas netas brincava no chão da biblioteca, o autor de "Pantaleão e
as Visitadoras", "Conversa na Catedral" e "Tia Julia e o
Escrevinhador" falou de como Paris deixou de ser a capital cultural do
mundo, exaltou sua experiência no sertão da Bahia em 1979 e contou como suas
temporadas fora de seu país natal foram decisivas para que compreendesse a
América Latina. “Conhecemos melhor nosso país quando viajamos.” No dia 14 de
outubro, Llosa marca presença como conferencista convidado do evento Fronteiras
do Pensamento, em Porto Alegre (www.fronteirasdopensamento.com.br).
Quando seu pai o colocou no
Colegio Militar Leoncio Prado, em Lima, ele esperava que você deixasse de lado
o gosto pela literatura. Mas aconteceu o contrário, não? Nunca li tanto quanto
naquela época. A solidão do internato, sobretudo nos fins de semana, teria sido
insuportável sem a leitura. Eu tinha 14 anos e ficar internado me causava
imensa claustrofobia. A leitura era uma liberação, uma maneira de escapar.
Dessa época, me lembro de ter lido Os Miseráveis, de Victor Hugo, o que foi uma
experiência muito importante. A lembrança de Victor Hugo está intimamente
ligada aos meus dois anos no colégio militar porque, sem dúvida, ele foi, com
Alexandre Dumas, o melhor amigo que tive lá dentro.
Li
toda a série de Dumas, Os Três Mosqueteiros, tudo. Li muitos romances de
aventura e romances franceses. Meu pai me colocou naquele colégio para que os
militares me curassem daquilo que ele chamava de “enfermidade literária”. Mas
acabei lendo ainda mais, e ganhei a experiência que me permitiu escrever meu
primeiro romance, A Cidade e os Cachorros. Também escrevi muito no colégio. Era
um escritor profissional, escrevia cartas de amor e historinhas pornográficas
para meus colegas. Trocava os textos por cigarro e, às vezes, por algum
dinheiro.
Dois de seus primeiros livros,
Os Filhotes e A Cidade e os Cachorros, tratam da passagem da infância para a
vida adulta, e isso é marcado por certa violência. A transição para a vida
adulta é sempre uma experiência traumática?Minha entrada no colégio
militar foi mesmo traumática. Ali se vivia uma violência até então desconhecida
por mim. Eu morava em um bairro protegido, Miraflores — os meninos dali não
conheciam a violência brutal de outros setores do país. Na escola, chegavam
meninos de todas as classes sociais, era um microcosmo da sociedade peruana.
Lá, ricos, pobres e classe média viviam juntos; brancos, cholos, índios,
negros, chineses. O clima era tenso. Havia também o machismo militar que
estimulava um certo aspecto viril. Ao mesmo tempo, a experiência me fez
conhecer melhor a realidade peruana.
No fim dos anos 50, quando você
foi a Paris, a cidade era uma espécie de capital cultural do mundo. Ela
continua sendo esta cidade? Não, isso mudou muito. Hoje, há outros centros culturais.
Os jovens vão para Nova York, Barcelona, Madri, Berlim. Também é muito mais
difícil se instalar na Europa, há uma espécie de paranoia em relação à
imigração. Quando eu era jovem, Paris se apresentava como a capital da cultura,
das artes. Em todo o mundo, jovens que tinham vocação literária ou artística
sonhavam ir a Paris. Continua sendo uma cidade bela e importante do ponto de
vista cultural, mas não é mais o centro magnético que costumava ser.
Quando chegou a Paris, em 1959,
a primeira coisa que fez foi comprar um exemplar de Madame Bovary. Acredita que
se tivesse comprado algum outro romance, sua história como escritor teria sido
diferente? Certamente.
Essa foi uma experiência fundamental para mim. Não só porque os romances de
Flaubert me deslumbraram, mas porque me ajudaram a me tornar escritor. A
correspondência de Flaubert talvez seja a melhor iniciação que se pode ter. Ele
foi um escritor que trabalhou seu talento. Não tinha um talento natural. Ele se
impôs um sistema de rigor, de exigência, de autocrítica e de imenso trabalho, e
isso fez brotar talento onde não havia. Nesse sentido, Flaubert foi um mestre.
Ele me mostrou o tipo de escritor que eu queria ser.
Você já morou em Lima, Paris,
Londres, Barcelona. Há 15 anos, vive em Madri. O que costuma fazer? Eu tenho uma rotina
disciplinada. Acordo perto das 6 da manhã, caminho por 1 hora e faço
exercícios. Esse momento é quando preparo o trabalho do dia, crio o clima para
começar. Depois, leio os jornais — sou um grande leitor deles, gosto de saber
de tudo o que acontece. Então, começo a trabalhar. Trabalho até às 14 horas,
sempre em casa.
À
tarde, muitas vezes, vou a alguma biblioteca ou café. As horas mais criativas
são sempre as da manhã. À noite não trabalho. Vou ao cinema, ao teatro, a
concertos. De segunda a sábado, trabalho no livro que estiver escrevendo e, aos
domingos, escrevo artigos. Viajo muito também, e quando viajo não interrompo
esta rotina. Trabalho onde estiver. Há pouco estive de férias com a família em
Mallorca, aqui na Espanha. Ficamos uma semana e trabalhei da mesma forma.
Embora você sempre passe alguns
meses do ano em Lima, seu olhar sobre a América Latina se modificou, depois de
anos na Europa? Qual a importância de reelaborar um país, uma cultura, em
outro país? Para mim, isso sempre foi fundamental. Porque eu vivi mais tempo
fora do Peru do que no Peru. Isso me deu uma visão mais objetiva. Conhecemos
melhor nosso país quando viajamos ou saímos dele. Conseguimos, então, enxergar
e julgar melhor as distorções que, muitas vezes, o patriotismo produz. Posso
dizer que descobri a América Latina na Europa.
Eu não
me sentia latino-americano enquanto vivia no Peru. Aqui, descobri que era um
latino-americano, que participava de uma comunidade, que tinha uma série de
denominadores comuns, tradições, problemas, uma missão cultural. Ao mesmo
tempo, a experiência de viajar também foi imprescindível. Viajar me salvou de
uma certa visão estreita, nacionalista e provinciana.
Você esteve no Brasil muitas
vezes. Qual delas foi a mais marcante? Sem dúvida foi marcante conhecer os lugares
onde se passa Os Sertões, de Euclides da Cunha, para depois escrever A Guerra
do Fim do Mundo, sobre a Guerra de Canudos. Em 1979, estive nos 25 povoados do
interior da Bahia e do Sergipe por onde Antonio Conselheiro teria passado,
ouvindo os filhos e os netos daqueles que o haviam escutado.
Talvez
uma das maiores emoções que tive na vida foi estar no lugar onde ficava
Canudos. E guardo sempre a lembrança de grandes amigos brasileiros, como Jorge
Amado, Rubem Fonseca, Nélida Piñon. E João Guimarães Rosa, um dos grandes
autores latino-americanos, de quem sempre fui admirador. Grande Sertão: Veredas
é uma obra-prima e, infelizmente, um livro muito mal traduzido para o espanhol.
Você já escreveu que “o mundo
sem romances teria como traço principal o conformismo”. Por quê? Creio que o romance sempre foi
um testemunho rebelde, de insubmissão. Em todas as épocas, os romances
flagraram nossas carências, tudo aquilo que a realidade não nos pode dar e que,
de alguma maneira, desejamos. Começamos a inventar porque o mundo não nos
parece suficiente. O romance se situa justamente nessa compensação que o ser
humano busca quando entende que a realidade não o satisfaz completamente.
Por
esse motivo, ele sempre causou desconfiança nos governos, nas instituições que
pretendem controlar a vida. As religiões e os regimes autoritários nunca foram
simpáticos ao romance. E penso que têm razão: ele é mesmo um gênero perigoso,
porque provoca a imaginação, os desejos, e nos faz sentir que a vida não é o
bastante, que ela não consegue aplacar todos os nossos apetites e sonhos. O
romance tem a ver com esse espírito rebelde. A invenção de outro mundo, de
outra realidade, onde podemos nos refugiar e viver. Escapar por meio da
fantasia. Acredito que essa é a origem de toda ficção.
Em novembro será lançado [na Espanha
e na América hispânica, sem data ainda no Brasil] seu novo romance, El Sueño
del Celta, baseado na vida de um diplomata irlandês, Roger Casement. O que
chamou sua atenção nesse personagem?Descobri Casement ao ler uma biografia de Joseph
Conrad. Casement esteve na África e também na Amazônia brasileira e peruana.
Foi cônsul britânico no Congo belga e dedicou duas décadas da sua vida a
denunciar as atrocidades do regime de Leopoldo II naquele país. Denunciou
também as terríveis condições vividas pelos indígenas na Amazônia, o que
influenciou de maneira decisiva a opinião pública da Europa e dos EUA. Foi
também importante para a independência da Irlanda. Casement levou uma vida
muito aventureira. Ele foi grande amigo do Conrad, acompanhando-o em sua jornada
africana. Conrad escreveu Coração das Trevas em grande parte graças a ele.
Falando em África, gostei muito
da sua coleção de hipopótamos. Tenho muito carinho por esse bicho. É um animal dócil, tem
o paladar delicado e uma incrível propensão ao amor. Suas principais ocupações
são tomar banho, chafurdar na lama e fazer amor — eles podem passar mais de 12
horas copulando. Gostaria de fazer amor como os hipopótamos. Conseguiram o que
os hippies jamais conseguiram verdadeiramente: levar a cabo a máxima “paz e
amor”.
Llosa pelo estômago
“A
gastronomia peruana está na moda. A criatividade dos peruanos revelou-se de
forma extraordinária na cozinha — os guisados, molhos, condimentos,
ingredientes. Uma das razões, acho, é porque tivemos sempre uma tradição muito
repressiva. A nossa imaginação se orientou para uma atividade em que não era
perigoso ser imaginativo: a gastronomia. Gosto muito da comida do sul do Peru,
da minha terra, Arequipa.
O chupe de camarão, por exemplo. É uma sopa espessa, muito picante. Em
Madri, há um restaurante peruano muito bom, Astrid y Gastón (Paseo de la
Castellana, 13). Cozinheiras nativas preparam os pratos e os ingredientes são
trazidos de Lima. Também aprecio muito a culinária espanhola. Gosto da Casa
Lucio (Calle Cava Baja, 35) — o ovo frito com batatas é sensacional,
inimitável. Também vou ao Lhardy (Carrera de San Jeronimo, 8), um dos
restaurantes mais antigos de Madri. Para quem gosta do cozido madrilenho, este
é o lugar ideal."
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