O
koala e a coruja
Paulo
Roberto de Almeida
( 23 de dezembro de 2005)
Os chineses têm o
curioso costume de batizar, segundo um ciclo que se repete após um determinado
período, cada ano do calendário com o nome de um animal, existente na natureza ou
pertencente à mitologia: ano do macaco, do cachorro, da cobra, da lebre, do
dragão, e por aí vai.
Não sei se existe
algum ano do koala e outro da coruja, mas agora me deu vontade de batizar, não
o ano que começa, mas o ano que acaba de passar, como o ano do koala
e da coruja,
assim mesmo, com dois animais ao mesmo tempo. Explico porque e dou logo as
minhas razões, para ninguém pensar que eu fiquei louco ou que estou, de
repente, adquirindo manias chinesas. Se isso virar um hábito, assim seja: no
ano que vem, invento dois outros animais (ou mantenho esses mesmos).
É que eu tenho a
maior simpatia por esses dois animais, que deveriam ser erigidos à categoria de
ícones da paciência e da sabedoria, respectivamente (ou vice-versa). Já tive a
oportunidade de escrever sobre “minha vida de koala”, e não vou repetir o
prazer que senti em me imaginar um koala, desses bem normais, comendo suas
folhas de eucalipto e descendo vagarosamente de galho em galho para ir se
acomodando a uma vida tranqüila e modorrenta (na verdade, eu estava imaginando
usar dois terços do meu tempo útil para ler, não para dormir, como faz o koala,
mas isso não vem ao caso agora). Também admiro as virtudes “hegelianas” da
coruja que, segundo aquele filósofo dialético, sempre acompanhava Minerva –
Palas Atena para os gregos –, a deusa da sabedoria.
Pois bem, o que me faz introduzir esse novo hábito
estranho de pretender batizar, duplamente e retrospectivamente, o ano que se
passou com o nome desses dois animais? Acho que este ano de 2005 foi
particularmente rico para mim, em dois sentidos: primeiro adquiri uma tranqüilidade
e uma satisfação com a vida que não tinha conhecido em muitos anos; depois
porque adquiri mais alguns grãos de sabedoria, que acho que têm a ver mais com
a sensibilidade do que propriamente com o conhecimento.
Por um lado, parei de ter aquele frenesi de sempre
escrever e publicar (talvez um livro por ano), essa terrível mania de estar
sempre sentado na minha mesa de trabalho, lendo algum livro ou escrevendo algum
texto. Passei a contemplar mais a vida, a ver as coisas com outros olhos, a
caminhar pensando no muito que já fiz e no muito que ainda tenho por fazer. Nem
tudo é uma questão de produtividade: aliás, se formos aplicar esse conceito ao
koala, ele entra no Guinness dos
recordes da improdutividade, vagabundagem e preguiça. A sua produtividade deve
ser marginal ou próxima do zero: ele é a própria “teoria da classe ociosa” – a
famosa leisure class, copyright do
Thorsten Veblen –, a imagem mesmo do dolce
far niente, um monumento ao droit à
la paresse, como diria o Paul Lafargue, uma completa oisiveté, ou como diria o douto Bertrand Russell, in praise of idleness. Agora, me dou ao
luxo de não fazer nada, ou melhor, contemplar a natureza e as coisas belas da
vida, de preferência algo que combine beleza interna e externa, forma e
conteúdo, caráter e substância.
Por outro lado, adoro a coruja, pelo que ela tem de
simbolicamente profundo, de sensível, de olhos inteligentes e argutos, sempre
atentos e prontos para entrar em ação no melhor momento de fazê-lo. Ela é, ao
mesmo tempo, contemplativa e ativa, silenciosa e altaneira, expansiva e
retraída, triste e alegre, aberta e fechada, enfim, “filósofa” e “normal”,
digamos assim. Ter uma coruja como companhia é uma garantia de reflexão
ponderada, mas também de raciocínio rápido, impecável na lógica, mas dotado de
rara sensibilidade, como se ela nos transmitisse, de uma só vez, certezas e
dúvidas, segurança e inquietação. Acho que todas essas características
contraditórias são próprias do pensamento curioso, animado de um ceticismo
sadio, das almas sensíveis aos desígnios da criação inovadora, mas também da
preservação da boa tradição. É a coruja quem fica por cima do ombro do
filósofo, provavelmente assoprando-lhe ao ouvido o que ele poderia cogitar
sobre uma dada situação na vida, ou sugerindo-lhe alguma solução genial a um
problema inesperado.
Por tudo isso, e também pelo prazer que essas figuras
mais do que simbólicas me deram ao introduzir um novo significado em minha vida
neste ano de 2005, não hesito um só instante em batizar, retrospectivamente,
este ano que se encerra como o ano do koala e da coruja. Espero que esses
simpáticos animais venham me visitar novamente em 2006, e que esta situação possa
durar até onde a vista alcança...
Paulo
Roberto de Almeida
Brasília,
Sexta-feira, 23 de dezembro de 2005
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