Minha vida de koala
fábula fabulosa
(à la manière de La Fontaine)
Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org)
E se eu não fosse quem eu sou?
A pergunta faz sentido, sobretudo
se colocada no contexto da herança deixada pelos “anos de chumbo”, nas décadas
de 60 e 70, quando muitos opositores ao regime militar então em vigor tiveram
de assumir outras identidades, de maneira a resguardar a segurança pessoal ou a
dos familiares. Alguns aderiram à nova identidade e gostaram tanto da “personalidade
alternativa” que preservaram a vida do alter
ego mesmo depois de plenamente restabelecida a democracia no Brasil.
Não foi o meu caso, mas ainda assim
a pergunta toca numa corda sensível, já que implica que eu poderia ter nascido
sob outro nome, ter tido uma outra história de vida, ter sido uma pessoa
completamente diferente daquela que se apresenta agora sob esta identidade de
funcionário público e professor universitário, completamente desprovido desta
aparência anódina de intelectual de gabinete. Eu bem que poderia ter sido, a
despeito deste ar tranqüilo de “combatente da pluma”, um perigoso contraventor
da lei e da ordem, um “subversivo” como então se dizia, um marxista enragé (e engagé) ou então um anarquista franco-atirador, tão ameaçador da
saúde das instituições en place
quanto o libertário radical que de fato eu sou atualmente. Tampouco foi o meu
caso, mas caberia considerar seriamente a hipótese levantada acima, pelo menos
teoricamente, e talvez até mesmo hipoteticamente, num terreno situado externamente
à espécie humana.
Sim, vejamos: se eu não fosse este
bípede leitor e escrevinhador, com este jeito de eternamente distraído e sempre
absorto em alguma leitura atrasada, o que eu poderia ser? Ou melhor: o que eu
gostaria de ser? Boa pergunta esta, mas a resposta já foi dada acima, assim que
o resto da fábula não apresenta mais surpresas, apenas curiosidades.
Com efeito, considerando todas as
possibilidades disponíveis no reino animal – não, eu não estava considerando
nada nos reinos vegetal ou mineral – e as alternativas indicadas no caso de um
cidadão pacato como este que vos fala e escreve, fiquei bastante tentado a,
numa segunda (ou em qualquer outra) encarnação de vida, formular ao todo
poderoso senhor criador de todas as coisas meu desejo de voltar ao mundo como
koala. Pausa para explicar essa do “criador”, num texto de um “materialista
vulgar”, ou pelo menos um “irreligioso” assumido. A justificativa é
perfeitamente lógica: num exercício que se pretende de “reencarnação”, o mínimo
que se poderia querer, como fiat
inescapável, é a existência de um criador supremo, que fica brincando com a
vida da gente, dando a um sapo a conformação de um príncipe, a uma barata a
beleza de Nefertite ou a um fracote poderes de Napoleão (mas existem muitos
concorrentes neste caso).
Pois bem, por que, exatamente, eu
gostaria de ser esse estranho animal do tão distante continente australiano?
Por algumas razões muito simples: aprendi que o koala passa 80% do seu tempo
dormindo, 10% comendo e os 10% restantes apenas esperando a próxima refeição ou
o próximo dodô (sitting-by, dizem os
australianos). Para quem só passa 20% do seu tempo dormindo, essa perspectiva é
verdadeiramente fabulosa, digna de algum La Fontaine do sono. Não sei se os
koalas são todos funcionários públicos do Serviço Zoológico Nacional da
Austrália, mas esse emploi du temps
me parece bom para aposentados, preguiçosos ou hedonistas de maneira geral (o
que eu ainda não sou, mas um dia chegarei lá). Trata-se de uma repartição de
ocupações que melhor reflete um ideal de cultura zen, contemplativa, que não
pode fazer nenhum tipo de mal à humanidade, à condição, obviamente, que se
tenha de onde tirar o alimento.
Os ecologistas mais radicais por
certo me apoiariam nessa reencarnação, pois eles estão sempre querendo nos
fazer voltar ao equilíbrio da vida natural, distanciada da vida agitada da
civilização e seus nefastos efeitos poluidores. Como isso não parece perto de
ocorrer na minha vida terrena, vejamos como eu poderia organizar minha vida
para me aproximar daquela distribuição fabulosa de tempo, desde que invertendo,
está claro, a repartição de tarefas para melhor refletir minhas prioridades de
vida.
Atualmente, passo 60% do tempo
trabalhando (no meu emprego assalariado e em tarefas acadêmicas auto-assumidas),
20% dormindo e o quinto restante numa variedade de ocupações familiares,
locomotoras, alimentícias e duchísticas (sem esquecer a lista do supermercado).
Não está mau, mas poderia estar melhor se eu tivesse um modo koala de ser.
Vejamos como isso seria possível.
Eu acordaria às 11 horas da manhã,
não precisaria ler as últimas notícias daquele chatérrimo jornal conservador do
qual sou assinante, não correria para consultar e-mails, não teria, sobretudo,
de sair correndo de casa para o trabalho, tentando demonstrar a mim mesmo que
as muitas horas empregadas durante a noite em leituras sonolentas e em
navegações na internet são de fato “úteis” para aquele novo trabalho que
pretendo terminar ainda nesta manhã (hélàs,
ainda não foi desta vez). Não precisaria mais usar gravata nem paletó e poderia
sair de casa sem lenço e sem documento.
Ou melhor: eu não sairia, eu
ficaria. Eu simplesmente desceria lentamente do meu galho-cama para o
galho-cozinha, me serviria de algumas folhas de eucalipto e, voilà, já teria ganhado metade do meu
dia. A caminho (lentamente) do galho-biblioteca, eu daria um bom-dia à patroa e
às crianças, não teria de me ocupar do horário da escola, do dever de casa, das
compras de supermercado, da arrumação da mesa da sala, da retirada de jornais
do dia anterior e, sobretudo, de lavar a louça das refeições. Em muito menos
tempo do que se emprega para dizer saperlipopette,
eu teria alisado os pêlos, lambido os beiços do resto de suco de eucalipto e
estaria pronto para me dedicar ao esporte favorito de todo koala: dormir (não
sei quando eles arrumam tempo para a reprodução da espécie).
Mas, alto lá: eu sou um koala
diferente. Nasci e me criei no galho-biblioteca, para onde devo ter sido
arrastado por alguma lufada dos bons ventos australianos. Desde então me
acostumei a dormir no meio dos livros, a caminhar lendo livros, a sonhar com
livros e a me imaginar vivendo uma vida só de leituras e de resenhas de livros.
Ainda vou fazer isso e talvez nem precise de uma outra encarnação; esta mesma
daria conta do recado. Só preciso de um orçamento do tamanho do da Library of
Congress, de uma boa rede à sombra das palmeiras, de um estoque de água mineral
com gás, de um laptop wireless dotado de dictavoice e de uma assinatura da The New York Review of Books. O resto é supérfluo, inclusive as
palmeiras (na verdade detesto exibicionismos).
Ainda vou fazer isso, ainda que
possa demorar mais um pouco: só me falta aprender a gostar de folhas de
eucalipto (que devem ser horríveis…).
Moral da
história:
você não precisa deixar de ser quem você é, para fazer aquilo que mais lhe dá
prazer na vida: basta um pouco de imaginação e paciência
de koala…
Washington, 7 de setembro de 2003.
Brasília, 19 de novembro de 2004.