A "descoberta" desta foto na internet, totalmente por acaso, me fez lembrar de um antigo texto que fiz, sobre um novo estilo de vida, tentando imitar esses simpáticos bichinhos:
1356.
“Minha vida de koala: fábula fabulosa (à
la manière de La Fontaine)”, Brasília, 19 nov. 2004, 3 p. Digressão ligeira
sobre uma reencarnação ideal, a partir de uma ideia formulada em Washington, em
7/09/2003. Postado no blog Diplomatizzando
(20/11/2011; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/11/minha-vida-de-koala-um-texto-pra-jamais.html).
Será que ainda se aplica?
Minha vida de koala
fábula fabulosa
(à la manière de La Fontaine)
Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org)
E
se eu não fosse quem eu sou?
A
pergunta faz sentido, sobretudo se colocada no contexto da herança deixada
pelos “anos de chumbo”, nas décadas de 60 e 70, quando muitos opositores ao
regime militar então em vigor tiveram de assumir outras identidades, de maneira
a resguardar a segurança pessoal ou a dos familiares. Alguns aderiram à nova
identidade e gostaram tanto da “personalidade alternativa” que preservaram a
vida do alter ego mesmo depois de
plenamente restabelecida a democracia no Brasil.
Não
foi o meu caso, mas ainda assim a pergunta toca numa corda sensível, já que
implica que eu poderia ter nascido sob outro nome, ter tido uma outra história
de vida, ter sido uma pessoa completamente diferente daquela que se apresenta
agora sob esta identidade de funcionário público e professor universitário,
completamente desprovido desta aparência anódina de intelectual de gabinete. Eu
bem que poderia ter sido, a despeito deste ar tranqüilo de “combatente da
pluma”, um perigoso contraventor da lei e da ordem, um “subversivo” como então
se dizia, um marxista enragé (e engagé) ou então um anarquista
franco-atirador, tão ameaçador da saúde das instituições en place quanto o libertário radical que de fato eu sou atualmente.
Tampouco foi o meu caso, mas caberia considerar seriamente a hipótese levantada
acima, pelo menos teoricamente, e talvez até mesmo hipoteticamente, num terreno
situado externamente à espécie humana.
Sim,
vejamos: se eu não fosse este bípede leitor e escrevinhador, com este jeito de
eternamente distraído e sempre absorto em alguma leitura atrasada, o que eu
poderia ser? Ou melhor: o que eu gostaria de ser? Boa pergunta esta, mas a
resposta já foi dada acima, assim que o resto da fábula não apresenta mais
surpresas, apenas curiosidades.
Com
efeito, considerando todas as possibilidades disponíveis no reino animal – não,
eu não estava considerando nada nos reinos vegetal ou mineral – e as
alternativas indicadas no caso de um cidadão pacato como este que vos fala e
escreve, fiquei bastante tentado a, numa segunda (ou em qualquer outra)
encarnação de vida, formular ao todo poderoso senhor criador de todas as coisas
meu desejo de voltar ao mundo como koala. Pausa para explicar essa do
“criador”, num texto de um “materialista vulgar”, ou pelo menos um
“irreligioso” assumido. A justificativa é perfeitamente lógica: num exercício
que se pretende de “reencarnação”, o mínimo que se poderia querer, como fiat inescapável, é a existência de um
criador supremo, que fica brincando com a vida da gente, dando a um sapo a
conformação de um príncipe, a uma barata a beleza de Nefertite ou a um fracote
poderes de Napoleão (mas existem muitos concorrentes neste caso).
Pois
bem, por que, exatamente, eu gostaria de ser esse estranho animal do tão
distante continente australiano? Por algumas razões muito simples: aprendi que
o koala passa 80% do seu tempo dormindo, 10% comendo e os 10% restantes apenas
esperando a próxima refeição ou o próximo dodô (sitting-by, dizem os australianos). Para quem só passa 20% do seu
tempo dormindo, essa perspectiva é verdadeiramente fabulosa, digna de algum La
Fontaine do sono. Não sei se os koalas são todos funcionários públicos do
Serviço Zoológico Nacional da Austrália, mas esse emploi du temps me parece bom para aposentados, preguiçosos ou
hedonistas de maneira geral (o que eu ainda não sou, mas um dia chegarei lá).
Trata-se de uma repartição de ocupações que melhor reflete um ideal de cultura
zen, contemplativa, que não pode fazer nenhum tipo de mal à humanidade, à
condição, obviamente, que se tenha de onde tirar o alimento.
Os
ecologistas mais radicais por certo me apoiariam nessa reencarnação, pois eles
estão sempre querendo nos fazer voltar ao equilíbrio da vida natural,
distanciada da vida agitada da civilização e seus nefastos efeitos poluidores.
Como isso não parece perto de ocorrer na minha vida terrena, vejamos como eu
poderia organizar minha vida para me aproximar daquela distribuição fabulosa de
tempo, desde que invertendo, está claro, a repartição de tarefas para melhor
refletir minhas prioridades de vida.
Atualmente,
passo 60% do tempo trabalhando (no meu emprego assalariado e em tarefas
acadêmicas auto-assumidas), 20% dormindo e o quinto restante numa variedade de
ocupações familiares, locomotoras, alimentícias e duchísticas (sem esquecer a
lista do supermercado). Não está mal, mas poderia estar melhor se eu tivesse um
modo koala de ser. Vejamos como isso seria possível.
Eu
acordaria às 11 horas da manhã, não precisaria ler as últimas notícias daquele
chatérrimo jornal conservador do qual sou assinante, não correria para
consultar e-mails, não teria, sobretudo, de sair correndo de casa para o
trabalho, tentando demonstrar a mim mesmo que as muitas horas empregadas
durante a noite em leituras sonolentas e em navegações na internet são de fato
“úteis” para aquele novo trabalho que pretendo terminar ainda nesta manhã (hélàs, ainda não foi desta vez). Não
precisaria mais usar gravata nem paletó e poderia sair de casa sem lenço e sem
documento.
Ou
melhor: eu não sairia, eu ficaria. Eu simplesmente desceria lentamente do meu
galho-cama para o galho-cozinha, me serviria de algumas folhas de eucalipto e, voilà, já teria ganhado metade do meu
dia. A caminho (lentamente) do galho-biblioteca, eu daria um bom-dia à patroa e
às crianças, não teria de me ocupar do horário da escola, do dever de casa, das
compras de supermercado, da arrumação da mesa da sala, da retirada de jornais
do dia anterior e, sobretudo, de lavar a louça das refeições. Em muito menos
tempo do que se emprega para dizer saperlipopette,
eu teria alisado os pêlos, lambido os beiços do resto de suco de eucalipto e
estaria pronto para me dedicar ao esporte favorito de todo koala: dormir (não
sei quando eles arrumam tempo para a reprodução da espécie).
Mas,
alto lá: eu sou um koala diferente. Nasci e me criei no galho-biblioteca, para
onde devo ter sido arrastado por alguma lufada dos bons ventos australianos. Desde
então me acostumei a dormir no meio dos livros, a caminhar lendo livros, a
sonhar com livros e a me imaginar vivendo uma vida só de leituras e de resenhas
de livros. Ainda vou fazer isso e talvez nem precise de uma outra encarnação;
esta mesma daria conta do recado. Só preciso de um orçamento do tamanho do da
Library of Congress, de uma boa rede à sombra das palmeiras, de um estoque de
água mineral com gás, de um laptop wireless dotado de dictavoice e de uma assinatura da The New York Review of Books. O resto é supérfluo, inclusive as
palmeiras (na verdade detesto exibicionismos).
Ainda
vou fazer isso, ainda que possa demorar mais um pouco: só me falta aprender a
gostar de folhas de eucalipto (que devem ser horríveis…).
Moral da história: você não precisa deixar de
ser quem você é, para fazer aquilo que mais lhe dá prazer na vida: basta um
pouco de imaginação e paciência de koala…
Washington, 7 de setembro de 2003.
Brasília, 19 de novembro de 2004.
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