Já que estamos falando de crise da governança no Brasil, ou simplesmente da falta de governança, já que não temos mais direção de governo, políticas definidas, direção clara para a ação estatal, lembrei também de um trabalho que fiz em 2004, ou seja, 11 (na verdade 12) anos atrás, sobre esses temas.
Parece que não melhoramos muito desde então, aliás, só pioramos...
Paulo Roberto de Almeida
Paulo Roberto de Almeida
Nestes
tempos em que atitudes éticas e posturas responsáveis são, não apenas
necessárias mas, absolutamente indispensáveis para guiar a conduta dos homens
públicos (e mulheres idem) e para inspirar, pelo exemplo, os que estão
empregados nesse imenso setor do terciário que tem a ver com a chamada res publica, decidi retomar reflexões
antigas (mas nem por isso menos úteis) e alinhar num papel – eufemismo para a
tela do computador – algumas simples regras de boa administração dessa “coisa
pública”. As reflexões surgiram em primeiro lugar no contexto da transição
política no Brasil – área na qual outras considerações já foram consolidadas em
meu livro A Grande Mudança: consequências
econômicas da transição política no Brasil (São Paulo: Códex, 2003) – mas
elas podem ser vistas como “atemporais” e não determinadas geograficamente.
Como
só consegui chegar até uma dúzia delas, pensei que poderia identificar o
conjunto por meio de um título “apelativo”, que relembrasse o antigo herói da
mitologia grega. Não é obviamente o caso, mas o evocativo parece suscetível de
transmitir uma idéia aproximada das reais dificuldades que podem ser
encontradas na implementação dessas tarefas da governança. Com efeito, os
maiores problemas que se apresentam, nos dias de hoje, no processo de melhoria
nas condições de vida e bem-estar das populações, em países ricos ou pobres,
não são aqueles derivados da falta de recursos ou de meios técnicos para sua
solução, mas provêm, tão simplesmente, da incompetência institucional.
Estes
doze novos “trabalhos” podem ser vistos, pelo seu lado de administração da
informação, como uma estratégia para a conquista consensual, ou para o
convencimento, da maioria, não como uma forma de imposição da vontade do
dirigente político. Pelo seu lado de “conselhos” ao dirigente, eles podem ser
colocados naquela mesma cesta de recomendações “úteis” ou de observações sobre
as técnicas de comando que, desde Kautylia e Maquiavel, vêm enriquecendo a
literatura da governança política, sem que se saiba, exatamente, se elas
provocam uma melhoria real na qualidade da gestão sobre os homens (e mulheres).
Não me parece que elas tenham sido testadas ou controladas por algum órgão
gestor dos orçamentos e da moralidade públicas, mas isso não representa um
impedimento a que algum voluntário queira fazer alguma verificação empírica
sobre sua consistência e adequação intrínseca às tarefas atuais de uma boa
governança. Afinal de contas, o teste do pudim, como se diz, vem no ato de
comê-lo.
As
regras não estão concebidas em intenção de algum serviço estatal particular,
nem foram pensadas como devendo aplicar-se exclusivamente a algum país
determinado, mas o autor não tem nada contra, muito pelo contrário, a que cada
um faça a leitura geográfica que bem lhe aprouver. Em todo caso, sem pretender
a que estas regras sejam seguidas, ou sequer consideradas, por dirigentes
concretos, num certo país de índole cordial e receptivo a modas as mais
bizarras, transcrevo aqui os meus novos trabalhos para algum candidato a
Hércules da burocracia deste começo de século 21. Bom proveito aos que
pretenderem delas utilizar-se (não pretendo cobrar copyright pelo seu uso).
Apresento
primeiro um resumo “literário” desses “novos trabalhos de Hércules”, para
depois tecer considerações mais elaboradas sobre cada um deles:
1) Mais
administração para resultados, menos declarações genéricas;
2) Antes
a seleção pelo mérito do que a escolha corporativa;
3) Prefira
uma ação sobre os fins, antes que sobre os meios;
4) Melhor
proteger a manada, mesmo que tenha de sacrificar algum animal;
5) Entre
a focalização e a universalização, fique com ambas;
6) Auto-publicidade
é uma forma perversa de gastar recursos públicos,
7) Conselheiros
do príncipe costumam atuar por ensaio e erro: rejeite riscos;
8) Não
há conversa em “petit comité” que não escape para a “grande assembléia”;
9) Não
distribua favores restritos, coloque tudo em regime de competição;
10) O
grande critério de seleção é o benefício para o maior número: abra, portanto;
11) Mercados
globais sempre serão melhores do que a “preferência nacional”;
12) O
desenvolvimento é uma atitude mental: não existe mais “terceiro mundo”.
Voilà:
parece um pouco desordenado e obscuro, mas tudo tem uma razão de ser, segundo
os critérios da eficácia social e das melhorias na governança que são os
privilegiados neste ensaio reflexivo.
Vamos
agora a considerações mais elaboradas sobre cada um dos “trabalhos”.
Primeiro trabalho: Esqueça Antonio Gramsci;
adote Peter Drucker.
Já
passou o tempo de acreditar na validade conceitual ou mesmo prática dessa
conversa de “hegemonia ideológica”: isso valia para uma fase em que a sociedade
era feita de poucos homens instruídos, em que a política era oligárquica, isto
é, dominada por uns poucos iluminados, na qual mesmo a ação dos partidos ditos
progressistas, ou de base operária, tinha de se apoiar sobre uma liderança
aguerrida, disciplinada, que detinha a chave do futuro e se dedicava a liderar
os demais na conquista e na manutenção do poder. Hoje em dia, graças à
disseminação da educação e aos meios de comunicação, todos são razoavelmente
bem informados sobre a maior parte das tarefas governativas.
O que vale mesmo, hoje em dia, é a boa gestão da coisa
pública: honestidade, transparência, responsabilidade e, sobretudo, eficácia
(ou eficiência, se preferirem). Por isso mesmo, creio que o velho (mais de 90
anos em 2004) Peter Drucker, economista austríaco naturalizado americano e guru
das técnicas de administração para resultados, apresenta imensas vantagens
comparativas intelectuais sobre seu quase contemporâneo (menos de uma geração)
Antonio Gramsci. Deixe a retórica de lado, e passe a valorizar a ação concreta
na busca de resultados efetivos para os fins almejados. Você prefere se
alimentar de discursos ou ver as medidas de interesse público serem
implementadas de modo razoavelmente barato, efetivo e transparente?
Segundo trabalho: Não ocupe pela conquista,
selecione pelo mérito.
Esta
é uma derivação da tarefa anterior, no sentido em que, com a complexidade atual
da administração pública, não se pode fazer uma boa gestão, com resultados pelo
menos razoáveis, se se parte da idéia de que os únicos capazes para realizar os
objetivos da mudança paradigmática são os iniciados e os membros da confraria,
quando eles nem sempre possuem o instrumental teórico e técnico para o
desempenho de funções especializadas que requerem conhecimento específico e um
certo treino funcional. Por isso, pense em primeiro lugar nos resultados e
atribua ao mérito a parte que lhe cabe nos processos de escolha do pessoal de
apoio. Quanto aos menos preparados, faça-os se habilitarem para as novas
funções, seja por esforço próprio, seja por estágios apropriados aos novos
requerimentos do ofício.
Terceiro trabalho: Não siga publicitários ou
comunicólogos: vá direto à questão.
É uma velha mania das lideranças inseguras, a de se precaver
quanto a possíveis iras do povo miúdo mediante campanhas otimistas, bem
direcionadas quanto ao foco e quanto ao objeto (apenas que contornando o
problema real). Trata-se do velho hábito de esconder os problemas concretos
fazendo apelo aos meios, antes que se ocupando dos fins. Como regra de
princípio, este tipo de procedimento não costuma sustentar-se por muito tempo,
por isso a única recomendação possível, em casos de necessidade urgente, seria
a de deixar as relações públicas de lado e se ocupar diretamente da substância
das questões públicas, pela via a mais reta possível. Supondo-se, é claro, que
você consiga fazer um diagnóstico razoável da questão e das formas mais
adequadas de encaminhá-la.
Quarto
trabalho: Rejeite demandas de grupos, ataque os problemas da maioria primeiro.
O
poder tem isso de incômodo que ele atrai um bando de arrivistas, oportunistas e
aproveitadores de todos os matizes, cores e orientações políticas. A maior
parte das moscas reais estão em busca de vantagens pessoais, mas numa sociedade
organizada como a que vivemos, com incontáveis grupos de interesse e de associações
de classe, o mais frequente de ocorrer é a mobilização dessas corporações
organizadas que tentam convencê-lo de que seu interesse específico se confunde
com o interessa da Nação como um todo. Não acredite nesse tipo de argumento:
geralmente, os interesses da Nação não têm, salvo engano, representantes
desinteressados que deles se podem fazer porta-vozes. Eles são difusos e,
quando concretos, costumam interessar prioritariamente aos mais humildes, que
não têm o hábito de se fazer ouvir nos corredores do poder.
Se
você não consegue definir quais são os problemas da maioria, existe um modo
muito prático e simples de encaminhar esse tipo de diagnóstico: consulte um
desses anuários de desenvolvimento social – do PNUD ou do Banco Mundial, por
exemplo – e veja as tabelas comparativas de serviços básicos (saneamento,
serviços públicos etc.), os indicadores de saúde (sobretudo os fatores de
morbidade) e de educação, bem como os resultados de testes de qualidade
setorial. Eles darão um retrato imediato de como o seu país se situa na escala
da (in)felicidade humana, o que se traduz imediatamente num programa de
prioridades governamentais.
Quinto
trabalho: Se tiver de definir setores, faça as políticas mais horizontais
possíveis.
Nem
sempre é fácil escapar de demandas setoriais: elas são o próprio de sociedades
complexas que definem métodos próprios de encaminhamento de problemas técnicos,
o que necessariamente envolve temas de natureza restrita a determinados grupos
da sociedade. Dessa forma, algumas políticas serão dirigidas a alguns setores
apenas da sociedade, ainda que com propósitos generalizantes.
Mas,
não se deixe arrastar pelo falso debate entre, de um lado, a universalização
dos serviços públicos e, de outro, a focalização das medidas de apoio governamental
em favor de uma determinada categoria de cidadãos. Sendo os recursos escassos,
e as pessoas desigualmente dotadas por motivos de berço ou de formação, nem
sempre é possível atender a todos ao mesmo tempo, daí uma inevitável seleção
dos beneficiários desses recursos a partir de alguns simples critérios de
escolha por prioridades visíveis. As políticas públicas sempre serão, ao mesmo
tempo, universais e focalizadas, mas o ideal é que a definição dos setores não
seja excludente.
Esse
debate sempre surge a propósito das políticas setoriais, das quais a industrial
está sempre na linha de frente para receber algum tratamento favorecido por
parte do governo. De fato, a experiência histórica indica que é na indústria
que os ganhos derivados da inovação técnica e tecnológica, e portanto os
aumentos de produtividade, costumam ter efeitos em cadeia e impactos
redistributivos sobre o conjunto da sociedade, cabendo portanto aos governos
estimular o progresso industrial. Este é um fato: mas cabe portanto aos governos
estimular o progresso técnico da indústria como um todo, não necessariamente
uma determinada indústria em particular, ainda que ela possa parecer
estratégica ou “fundamental” para a competitividade internacional do país.
A
experiência histórica é ainda mais conclusiva a respeito dos ganhos gerais para
a economia, em todos os setores, derivados da capacitação em recursos humanos.
Como regra de princípio, portanto, prefira as políticas industriais que atuam
sobre as condições de inovação tecnológica do conjunto da sociedade, e deixe
que ela mesma introduza os aperfeiçoamentos industriais que se revelarem úteis
para o bem-estar social.
Sexto trabalho: Não acredite em propaganda
governamental, deixe que os meios de comunicação informem sobre suas realizações.
Cada
macaco no seu galho: o governo é pago para trazer segurança ao conjunto dos
cidadãos, empreender obras públicas de mais longa maturação, criar as condições
ideais para que todos possam exercer seus talentos com um mínimo de igualdade
de chances na partida competitiva, o que implica em investimentos de educação e
saúde, com alguma proteção seletiva aos menos favorecidos. Fazendo isso bem, os
próprios governados se encarregarão de divulgar e “propagandear” o que o
governo faz de bom.
Isso
de publicidade institucional serve apenas para dar dinheiro fácil àqueles
mesmos que devem viver de sua capacidade de “vender” algo de útil do ponto de
vista da demanda do consumidor: entre duas opções, pode-se escolher ficar com a
mais bem vendida do ponto de vista da publicidade, não necessariamente a de
melhor qualidade ou menor preço, mas isso é um problema de microeconomia do
bem-estar que será resolvido pela liberdade de escolha do consumidor. O governo
disponibiliza “bens públicos”, que normalmente não necessitam de campanhas
publicitárias, pois seus critérios de escolha ou de preço não são os mesmos da
economia privada. Quanto ele tiver de fazer alguma campanha de informação, não
faltarão meios adequados para isso. Deixe que os meios de comunicação se ocupem
dos demais “produtos” governamentais: é mais barato e mais honesto.
Sétimo
trabalho: Pratique a arte de escalpelar acadêmicos, ou melhor ignore-os.
Conselheiros
do príncipe costumam ser idealistas, sonhadores, ingênuos e, no geral, pouco
eficientes, na medida em que eles pretendem se ocupar de todas as esferas do
conhecimento humano e acabam tendo uma visão superficial sobre cada uma delas,
numa era manifestamente complexa e diversificada. Melhor, assim, confiar em
tecnocratas especialmente treinados para elaborarem diagnósticos e propostas de
ação em seus campos de ação respectivos. Eles costumam ser mais práticos e são
bem mais baratos, na medida em que qualquer proposta de acadêmicos bem
intencionados custa rios de dinheiro: estes estão sempre querendo revolucionar
o mundo ou provar alguma teoria, o que necessariamente provoca despesas
desproporcionais do ponto de vista dos minguados orçamentos públicos.
Oitavo
trabalho: Não aceite pequenos conluios, acabará aceitando os grandes também.
Os
grandes princípios éticos são geralmente agitados em período eleitoral e depois
esquecidos na fase prática da governança. Aí é que começa o perigo, pois sempre
haverá alguém disposto a “provar” que “este” problema é mais “urgente” do que
outro ou que ele requer “medidas especiais” de implementação. Os problemas do
diálogo para a busca de soluções tópicas a questões concretas também surgem
nesse momento, pois que se deve passar da fase das declarações gerais
destinadas ao grande público para a de soluções técnicas a problemas
localizados.
As
“pequenas” soluções de facilidade, como aquele mecanismo simples destinado a
financiar, de modo “indolor”, determinada atividade pública, podem
transformar-se, quando menos se espera, em grandes problemas, que só trazem
dificuldades aos governantes. Por isso mesmo, pense duas vezes quando for
confrontado, ou apresentado, a algum expediente “inovador” no campo da
governança: geralmente vai se descobrir que ele já foi apresentado antes (e
rejeitado por “heterodoxo”, digamos assim) e que pode provocar, numa análise
mais acurada de custo-benefício, grandes despesas depois.
Nono
trabalho: Regule pela concorrência, não pelo monopólio.
O
princípio da concorrência é uma dessas coisas mais bem aceitas, no plano da
teoria, e mais denegadas no terreno da prática. A competição entre muitos
ofertantes costuma redundar em uma certa anarquia de situações, nos mercados de
bens e serviços, o que pode obviamente perturbar a paz de espírito de algum dos
competidores. Ela reduz os ganhos de todos os ofertantes, obriga todos eles a
buscar cada vez mais inovações incrementais que diferenciem o seu produto do do
concorrente e, pasmem, traz maior volume de opções e menores preços aos
consumidores. Ideal no papel, não é mesmo?
Na
prática, os concorrentes estão sempre procurando eliminar rivais, buscam com
eles formar cartéis ou, no limite, procuram a situação “ótima” da reserva de
mercado com pouco ou nenhum risco de concorrência. Governos costumam ser muito
mais sensíveis a pleitos de produtores organizados do que aos desejos de
consumidores desorganizados, daí o possível surgimento de normas e regulamentos
que limitam, de fato, a competição. Os exemplos são muitos e não é preciso
delongar-se neles aqui, bastando com citar, por exemplo, o caso da telefonia. Nesta
área quanto mais “anarquia” concorrencial, melhor para os usuários, desde que
observadas certas regras de fiabilidade no serviço.
Em
muitas outras áreas, inclusive e também em determinados serviços públicos, a
melhor forma de corrigir distorções de mercado derivadas da baixa qualidade da
oferta seria ampliar as franquias para a exploração dos mercados de bens e
serviços. Por que, por exemplo, só se pode ter uma única grande estatal
explorando pétroleo, refinando o produto e distribuindo seus derivados? (Sei
que já não mais ocorre esse monopólio, mas ele foi durante muito tempo
defendido não se sabe bem em nome de quais princípios de economia pública.) Por
que um presídio tem necessariamente de ser operado diretamente pela autoridade
pública, em lugar de passar por uma espécie de “leilões de presos”, regime no
qual ofertantes passam a “comprar” condenados do setor judicial ao melhor preço
de mercado, para uma prestação determinada de serviços – guarda, reeducação,
eventual reinserção no mercado de trabalho – como aliás já ocorre hoje no setor
de saúde? São provavelmente idéias ousadas, mas que podem despertar algum
desejo de se ter mais concorrência em serviços que se considera como
“exclusivos do Estado”.
Décimo trabalho: Analise os efeitos distributivos
de cada medida proposta.
Não
há nenhuma novidade no que vai dito aqui, mas geralmente se tende a esquecer
que a regulação de determinadas atividades públicas tem por objetivo ampliar a
disponibilidade de bens e serviços aos cidadãos, não arrecadar mais recursos
para o próprio Estado. Os governos constituídos – em todos os níveis – se
tornaram as mais poderosas máquinas de arrecadação de recursos que já se
conheceram em toda a história, deixando aos contribuintes (empresas e cidadãos)
apenas as opções de pagar ou evadir. Muitos recorrem a diferentes mecanismos de
evasão ou elisão fiscais, o que justifica uma ampliação ainda maior dos
investimentos públicos nos meios (controle da arrecadação, processos, punição
etc.), antes que nos fins, eternizando assim o circulo vicioso que consiste em
ver o governo trabalhando para o próprio governo.
Quando
se fala em analisar os efeitos distributivos de uma determinada medida, não se
está obviamente recomendando o distributivismo compulsivo: ele geralmente é
demagógico e economicamente desarticulador das atividades produtivas, já que
costuma atuar sobre os estoques de riquezas existentes, antes que sobre os
fluxos que poderiam ser criados a partir do estímulo contínuo a novas
atividades econômicas potenciais. Efeitos distributivos são justamente aqueles
que derivam de uma maior capilaridade social dos investimentos públicos, que
devem atingir os setores mais carentes relativamente, com vistas a integrá-los
num mercado mais amplo de bens e serviços de amplo consumo. Por exemplo: o
contrário ocorre com determinadas políticas governamentais – como a PAC da
União Européia – de subsídios públicos na área agrícola, já que não se tem, de
fato, insegurança alimentar e o dinheiro canalizado é subtraído de utilizações
alternativas que poderiam ter maior impacto sobre o emprego e a renda de um
maior número de cidadãos.
Décimo-primeiro
trabalho: Entre um sistema aberto ao mundo e outro estritamente nacional,
prefira o primeiro.
Não
há mais nenhuma diferença, hoje, entre mercados nacionais e mercados
internacionais, pelo menos na vasta gama de produtos e serviços uniformes (ou
indiferenciados) que são consumidos pelos cidadãos, inclusive em áreas
aparentemente exclusivas da “cultura” nacional como podem ser os serviços
educacionais ou de lazer. Ao contrário, quanto maior a escala de mercado, maior
a chance que o seu “produto nacional” possa ser também consumido em outros
países, aumentando, portanto, suas vantagens de escala e a produtividade dos
fatores de produção. Reservas de mercado, leis do “similar nacional” são
cerceadoras da preferência dos consumidores e só servem para consagrar pequenos
monopólios ou grandes cartéis que não ajudam em nada a elevação dos padrões de
competitividade da economia nacional nos mercados globais, que hoje constituem
a característica essencial do mundo interdependente em que vivemos.
Por
isso mesmo não acredite quando lhe disserem que “vantagens comparativas” são
uma invenção do século 18, que não se aplicam mais ao mundo do conhecimento em
que se transformou a economia moderna. O princípio continua mais válido do que
nunca, inclusive e principalmente nas novas áreas de atividade produtiva, como
na já referida economia do conhecimento. Aliás, quem primeiro falou em
“inteligência” como fator de produção, foi um contemporâneo brasileiro de David
Ricardo, José da Silva Lisboa, num tempo em que todos eram “filósofos morais” e
não economistas. Mercados amplos apresentam possibilidades muito maiores do que
mercados cativos ou nacionais, daí uma preocupação constante em trabalhar em
regimes abertos aos talentos individuais, antes do que fechados aos interesses
de pequenos grupos.
Décimo-segundo
trabalho: Acabe com dogmas e restrições mentais: o Brasil não é periferia.
Proposição
ousada essa, pois não? Claro que existem economias “centrais”, que “extraem”
recursos e mais valia de regiões ditas “periféricas”, mas isto se dá em
qualquer sistema ou sociedade, inclusive num âmbito estritamente familiar, por
exemplo. Quem organiza uma determinada atividade, distribui custos e concentra
benefícios, mas para isso é preciso competência ou autoridade. Antigamente
valia a autoridade paterna ou a da conquista; hoje em dia, elas têm cada vez
menos capacidade de domínio ou prevalência, passando a ser substituídas pela
capacitação própria em organizar sistemas complexos de produção e distribuição
de bens e serviços. Por outro lado, aquela coisa de “primeiro mundo” ou
“terceiro mundo” simplesmente acabou com o desaparecimento do segundo.
Com
efeito, poucos se dão conta que a geopolítica mudou e com ela a relação que os
diferentes atores de um mesmo mundo mantêm entre si: já não se está mais
levando em consideração a atitude política que esses atores possam ter em
relação a algum grande projeto organizador da humanidade – capitalismo,
socialismo, essas coisas velhas –, mas apenas e tão simplesmente a atitude que
se vai adotar em relação aos desafios do mundo global. Nesse sentido, o
problema do desenvolvimento é de fato uma questão de atitude mental, pois
tornaram-se peremptas aquelas teorias “conspiratórias” que faziam da exploração
de alguns (ou de muitos, contavam algumas histórias) a condição da riqueza e do
progresso de outros (os poucos).
Hoje
em dia, provavelmente 90% do estoque acumulado de todo o conhecimento humano
está livremente disponível para consulta, absorção, cópia e transformação em
caráter irrestrito, inclusive de forma cada vez mais acessível nos sistemas
abertos e online. Ou seja, não há mais limitação técnica – salvo no sentido
estritamente material – ao aproveitamento dessas oportunidades de
enriquecimento pessoal e coletivo, o que deveria, normalmente, diminuir as
barreiras à entrada de mais sociedades em patamares mais avançados de bem-estar
e conforto material.
O
fato de que essa “convergência” de padrões de vida tenha alcançado, até aqui,
uma fração restrita da humanidade, não se deve a nenhum complô desses países
“ricos” no sentido de impedir que sociedades mais pobres conheçam padrões mais
avançados de bem-estar, mas se explica pela incapacidade gerencial, ou de
governança, das sociedades do chamado “terceiro mundo”. Terminando com nosso
próprio exemplo nacional: todos os problemas brasileiros se devem à nossa
própria incapacidade em solucioná-los dentro dos limites do sistema nacional,
eventualmente com aproveitamento das experiências e conhecimentos já
disponíveis a partir da trajetória das sociedades mais avançadas. Nenhum deles
tem origem no exterior e eles não terão solução sem uma concentração de
esforços no próprio país. Não acredita?: tente identificar uma “tragédia”
nacional que se deve exlcusivamente a causas externas. Se encontrar, gostaria
de ser avisado…
Paulo Roberto de Almeida (pralmeida@mac.com)
[1º versão: Washington, 1º de setembro de 2003]
[Revisão: Brasília, 23 de fevereiro de 2004]
Brasília, 23 fev. 2004, 10 p. Retomada das notas efetuadas em
Washington em 01/09/2003, sobre os elementos para “convencimento da maioria”,
mas que evoluíram para cadernos da boa governança. Publicado na revista Espaço Acadêmico (n. 34, mar. 2004,
ISSN: 1519.6186; http://www.espacoacademico.com.br/034/34pra.htm). Reproduzido no boletim Análi$e da economia regional para homens de
negócio (Porto Alegre: n. 377 a 379, 26 abr. 2004, p. 5-8).
Relação de
Publicados n. 448.