Este ensaio foi
incorporado
ao livro: Paralelos com o Meridiano 47:
Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015), também disponível em Academia.edu.
Ver a postagem anterior: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/07/contra-antiglobalizacao-um-trabalho.html
Contra a anti-globalização
Contradições,
insuficiências e impasses do movimento anti-globalizador
Paulo Roberto de Almeida
Sumário:
I. Uma longa (mas necessária) introdução
metodológica e de princípios
II. Contradições da anti-globalização: carência
de fatos, de método, de análises
III. Pensando o impensado:
existem idéias concretas sobre temas concretos?
1) Protecionismo agrícola e vantagens
comparativas dos mais pobres
2) Dívida externa, movimentos de capitais e
globalização financeira
3) Competição aberta contra mercados regulados
e fechados
4) Instituições de solução de controvérsias em
face do arbítrio comercial
5) Crescimento e pobreza, ou o que a
globalização pode fazer por eles
6) Concentração da renda e desigualdades
7) Tecnologia proprietária e dependência
tecnológica
8) Meio ambiente e mercado: um instável
equilíbrio
IV. Diagnóstico de duas
enfermidades precoces: autismo e esquizofrenia
Resumo:
Ensaio, de
caráter contestador, das principais idéias e princípios ostentados pelo
movimento anti-globalizador, discutindo seus fundamentos, demonstrando suas
contradições teóricas e insuficiências intrínsecas e expondo sua falta de
racionalidade econômica e a ausência de fundamentação histórica. Conclui
afirmando que todos os marxistas, mas também os socialistas, os humanistas, os
ecologistas, as pessoas de esquerda e os progressistas em geral deveriam adotar
uma postura em favor da globalização, processo basicamente progressista de
elevação dos padrões de vida dos povos mais pobres do planeta.
Brasília, 5 de julho de 2004.
I. Uma longa (mas necessária) introdução metodológica e de
princípios
Se posicionar contra ou a favor de coisas em geral, sejam elas idéias, processos, movimentos,
pessoas ou princípios, dá um pouco mais de trabalho do que simplesmente ser
acomodado, passivo ou mesmo indiferente. Decidindo ser contra ou a favor de
algo, o dono da posição tem, em geral, de se justificar perante outros,
explicar os motivos de sua postura, defendê-la de ataques ou contestações que
possa julgar equivocados, enfim, fazer qualquer coisa que torne suas idéias não
apenas “melhores” do que outras, que são concorrentes ou alternativas, mas
também compatíveis com os princípios pelos quais ele afirma pautar sua vida,
sob risco, em não o fazendo, de ser acusado de inconseqüente ou, simplesmente,
de contraditório.
Ser contra ou a favor de
um conjunto de idéias dá, portanto, um certo trabalho, pois que em geral se é
obrigado a deixar a acomodação monótona dos slogans
rápidos ou o simplismo redutor das idées
reçues – isto é, as velhas crenças, sem fundamentação empírica ou validade
prática – para pesquisar sobre os fundamentos das posições que se está
defendendo, investigar suas causas e conseqüências, examinar a validade dos
argumentos em favor de posições opostas – do contrário como seria possível
recusá-las, tão simplesmente? –, bem como destrinchar as “fortalezas” de suas
próprias posições e tornar evidentes as “fragilidades” das idéias alternativas.
Isso parece complicado e
trabalhoso demais? Seria preferível, talvez, a placidez de algum consenso
geral? Isso não existe: concordância de opiniões não é uma realidade muito
presente nas sociedades democráticas, sobretudo em relação a fenômenos ou
processos que são inerentes à própria dinâmica social na qual se vive, como é o
caso da globalização. É assim inevitável que sobre ela persistam tantos debates
e tanta polêmica.
Não tenho, portanto, a
mínima intenção de interromper esse fluxo enriquecedor, preferindo, ao
contrário, alimentar o debate com meus próprios argumentos, que como indica o
título deste ensaio, tende a colocar-me em oposição aos partidários da
anti-globalização, cobrando-lhes consistência na idéias e racionalidade de
propósitos. Sinto muito por trazer algumas angústias aos que têm suas causas a
defender no partido da anti, mas este é o preço da coerência que deve existir
entre as idéias gerais e as ações na vida prática: é preciso ter um mínimo de
racionalidade e de consistência intrínseca, se se pretende fazer com que as
idéias próprias, ou as do movimento a que se pertence, tenham aceitação geral,
sejam triunfantes na vida social e sejam, não apenas adotadas pelos que nos
governam, como implementadas na prática. Não é isso afinal o que pretendem
todos os que têm idéias a defender?: que elas sejam disseminadas, o mais
amplamente possível, e convertidas em realidade?
Creio que sim, e é isso
também que me anima a escrever, em primeiro lugar para mim mesmo – afinal,
trata-se de excelente método para afinar as próprias idéias –, em segundo lugar
para alunos, leitores ocasionais ou os simples curiosos que freqüentam
eventualmente as páginas de meu site, ou que podem ler o que escrevo em boletins
eletrônicos. Como sabem alguns desses leitores, não sou de fazer concessões
políticas, não costumo ceder a argumentos ilógicos, nem sou levado por modismos
ideológicos. Apenas cultivo a modesta racionalidade dos argumentos que fazem
sentido, que não ofendem os dados da realidade e que se conformam a testes de
validação empírica. Meu único partido é a falta de partido, justamente.
Com o perdão dos
leitores por esta longa digressão introdutória, eu escrevi tudo isto como forma
de abrir um debate – que, sei, não terá seguimento – sobre um dos mais curiosos
e surpreendentes fenômenos destes tempos de globalização e que conforma, ao
mesmo tempo, um paradoxo: o fato de pessoas medianamente inteligentes – posto
que, todas, da classe média para cima –, ou mesmo de indivíduos tidos como de
inteligência superior – já que ostentando títulos universitários, livros
publicados, espaços na imprensa, homenagens recebidas, enfim, credenciais
reconhecidas pela mídia – se posicionarem de forma veementemente contrária ao processo
de globalização (refiro-me, obviamente a “esta” globalização, que eles costumam
chamar de “capitalista”). A curiosidade está em que, contra tantos argumentos
contrários às suas posições, eles façam sucesso, e o paradoxo (ou a ironia) é
que esse sucesso se deve inteiramente ao processo de globalização, que eles
condenam com tanta veemência.
Com efeito, não há
fenômeno mais disseminado, mediatizado e de maior sucesso público nos últimos
anos do que o chamado alter-mundialismo, também chamado de anti-globalização,
termo que prefiro e já explico por quê. O alter-mundialismo, como ele mesmo se
proclama, é um movimento que defende que um outro mundo é possível, ou seja, um
mundo diferente do atual, talvez oposto, ou em todo caso melhor do que o que
agora temos: injusto, desigual, contraditório, cheio de misérias e tragédias,
feito de exploração do homem pelo homem, de dominação política, de guerras
imperialistas, mas também de guerras civis, guerras tribais, limpezas étnicas,
degradação da natureza, esgotamento de recursos, bref, um mundo horrível, capitalista e desigual, que caberia
eliminar, ou pelo menos substituir por outro melhor. Mas é um fato, também, que
o mundo está sempre mudando: já não temos tantas guerras como antigamente,
menos pessoas morrem de fome ou doenças, hoje temos penicilina, saneamento
básico, um pouco mais de direito e, certamente, mais justiça e democracia
também. Enfim, o mundo mudou, embora talvez não no ritmo e na extensão que
seriam desejáveis, mas ele mudou, e para melhor, nos últimos dois ou três
séculos de revolução industrial e de globalização capitalista (usemos este
adjetivo que incomoda muita gente, mas que expressa a realidade que os
alter-mundialistas querem recusar).
Se o mundo mudou, e
continua mudando a cada dia, a caracterização usada pelos alter-mundialistas é,
no mínimo, tautológica, ou redundante, motivo pelo qual devemos recusar esse
conceito. Mas, há um motivo a mais pelo qual esse conceito é inoperante, pouco
prático e no mínimo carente de significado. É porque ele promete coisas que é
incapaz de entregar, ou seja, a própria definição prometida em sua
caracterização enquanto grupo. Se esse movimento é a favor de um outro mundo,
que já indica ser possível sem qualquer tipo de demonstração positiva, ele
deveria dizer, de imediato, qual é, como se organiza, quais são os fundamentos
materiais, espirituais, arquitetônicos e conceituais desse outro mundo que seus
proponentes proclamam de modo contínuo na internet e nos encontros ruidosos nos
quais eles martelam um pouco mais a idéia, sem desenvolvê-la de fato. Portanto,
o conceito não nos serve, até que ele venha recheado de algo mais e, por isso,
estou jogando-o na lata de lixo da história.
Fiquemos, portanto, na
anti-globalização, que ela, sim, é um movimento de sucesso, aliás, muito mais
ruidoso e organizado do que o dos alter-mundialistas (que são apenas um pequeno
bando de irredutíveis gauleses), posto que constituído, o movimento
anti-globalizador, para se opor a algo de concreto, a globalização que “está
aí, aos nossos olhos”, e contra a qual se mobilizam todos aqueles que têm
algumas idéias na cabeça (partimos da presunção de que todas são consistentes
até prova em contrário). Também partimos do pressuposto de que os
anti-globalizadores têm algumas soluções alternativas que eles gostariam de
propor aos demais, esperando, em algum momento, que elas sejam aceitas pelos
que decidem e que possam, assim, converter-se algum dia em realidade. Como
vêem, parto do pressuposto de que os anti-globalizadores têm algo a dizer, que
esse algo faz sentido, que seus argumentos merecem ser considerados e que vale
a pena, a despeito do seu caráter heteróclito, debater com esse movimento
ruidoso, ainda que ela me pareça marcado por uma certa cacofonia conceitual.
Confesso, também, que tenho tido uma certa dificuldade em identificar
precisamente as “idéias” dos anti, na medida em que eles parecem mais propensos
a fazer manifestações do que em colocar no papel, de forma ordenada, seus
argumentos anti, ou mesmo a favor de alguma coisa, qualquer coisa que permita
substituir “esta” globalização por outra.
Rendendo modesta
homenagem à minha tribo de origem, os sociólogos, considero, de minha parte,
que o movimento anti-globalizador é uma ideologia, e que, como todas as
ideologias, parte de uma certa concepção do mundo e da realidade, concepção que
recusa o mundo como ele é e que pretende mudar-lhe os fundamentos ou o seu modo
de funcionamento, de modo a torná-lo mais conforme aos princípios e idéias
defendidos por esse movimento. Chamemos a esse movimento “ideologia da
anti-globalização”, se me permitem o empréstimo de sabor levemente marxista.
Não há nenhum preconceito nesta caracterização, pois eu aceito que chamem à
minha própria concepção do mundo “ideologia da globalização”, com todas as conseqüências
que isto implica, isto é, o desejo de fazer com o que o mundo também se
conforme àquilo que eu julgo ser bom e desejável para seus habitantes, isto é,
um pouco mais, ou bem mais, na verdade doses maciças de globalização, com todos
os seus efeitos “devastadores” (no bom e no mau sentido).
Admitamos, portanto, que
somos ambos “ideólogos”, eu e os adeptos da anti-globalização, e nisto não vai
nenhum julgamento preliminar negativo; trata-se apenas de uma constatação. Há
uma diferença, porém, entre eu e os anti-globalizadores: eu não pertenço a
nenhum movimento, grupo, partido, seita, igreja, confraria, clã ou tribo; não
costumo freqüentar fóruns pró- ou anti-globalização e não admito nenhum
argumento de autoridade que se interponha entre a informação que busco e recebo
– de todas as fontes possíveis – e minhas próprias reflexões independentes. Sou
um ser livre, tanto quanto me permite a minha condição de assalariado do Estado
e atividades acadêmicas à margem da jornada na burocracia pública. Sou eu e meu
computador, apenas, no qual escrevo e no qual recolho as informações que me
chegam de todas as partes sobre a globalização e o seu contrário, isto é, o
quixotesco movimento anti-globalizador.
Faço aqui um último
parágrafo introdutório para me desculpar pelo adjetivo usado acima, isto é,
“quixotesco”, em relação aos adeptos da anti, mas é que considero, de verdade,
esse movimento como sendo quixotesco, isto é, uma figura (neste caso coletiva)
levantada de lança em riste contra alguns moinhos de vento que só existem na
cabeça dos que esgrimem argumentos anti-globalização, como agora passo a
discutir.
II. Contradições da anti-globalização: carência de fatos,
de método, de análises
Não é fácil, como disse
acima, debater com o pessoal da anti, a começar pelo fato de que não se
consegue saber direito o que pensam sobre os temas da globalização e o quê,
exatamente, pretendem colocar no “lugar” desse processo. Por mais que eu tenha
me esforçado na busca, navegando de site em site, de documento em documento, encontrei
poucas propostas concretas desse movimento, alguma sistematização que
contivesse as principais idéias, se alguma, sobre a “globalização realmente
existente” e esse “outro mundo possível”. Slogans à parte, a consistência
analítica esses “escritos” é deficiente, para dizer o mínimo, e sua adequação
aos dados da realidade é inexistente.
Para dizer a verdade,
existem inúmeros documentos, geralmente de caráter retórico, conclamando a
manifestações antes e durante as datas e locais dos encontros oficiais da assim
chamada globalização capitalista: o Fórum Econômico Mundial de Davos, em
primeiro lugar, obviamente, considerado a bête
noire do processo (mas agora que eles têm o seu próprio foro, Davos foi
relegado a uma posição secundária), mas também as reuniões do FMI e do Banco
Mundial, da OMC, da Alca, e até da UE e da UNCTAD. O tom geral é de indignação,
de revolta, mas um exame ponderado dos fatos, que é o mínimo que se requer de
qualquer trabalho universitário digno de nota (no sentido de pontuação, mesmo),
é algo raro, senão inexistente nos textos da anti. Como, nessas circunstâncias,
debater com o movimento?: seria preciso antes dispor da matéria-prima essencial
a qualquer debate: idéias sistematizadas, claramente expostas, método.
Não só não é fácil, como
na verdade não é permitido debater com esse pessoal, na medida em que, pelas
próprias regras estatutárias dos anti, só participam dos encontros do Fórum
Social Mundial – o arauto le plus en vue
da anti-globalização (junto com a ATTAC e outros foros menores) – aqueles
movimentos e entidades da sociedade civil que se declaram de acordo com sua
Carta de Princípios. Ou seja, não é permitido ser a favor da globalização,
ainda que eles o sejam, na prática, ao usarem e abusarem de todas as
facilidades permitidas pela globalização para se informar, se reunir e debater.
Qualquer outra pessoa física ou movimento, todavia, só pode participar se
declarar-se a favor de um documento extremamente vago em seu conteúdo e
definições.
Alguém que seja um anti
da anti, como eu mesmo, não apenas está sumariamente excluído, ab initio, como jamais será cogitado
para comparecer em algum foro. Registro aqui, ipsis litteris, o que figura nos procedimentos do FSM: “Poderão ser convidados a participar, em caráter pessoal,
governantes e parlamentares que assumam os compromissos da Carta de
Princípios.” Para participar, portanto, é preciso primeiro comprometer-se com
posições dos próprios organizadores, o que não apenas configura um reducionismo
absurdo, um verdadeiro cerceamento à liberdade de expressão, como também uma
manifestação brutal de “pensamento único”, que eles dizem condenar.
Essa cláusula de participação
restrita contradiz, portanto, o primeiro princípio do FSM, que afirma ser ele
“um espaço aberto de encontro para o aprofundamento da reflexão, o debate
democrático de idéias, a formulação de propostas, a troca livre de
experiências…”, já que só se pode participar sendo a favor das idéias do
movimento. E quais são essas idéias? Na verdade, muito poucas, e que já vem
consignadas no seguimento desse primeiro princípio acima transcrito: o FSM visa
“…a articulação para ações eficazes, de entidades e movimentos da sociedade
civil que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por
qualquer forma de imperialismo…”; isto pelo lado negativo. Pelo lado positivo,
continua o texto: as entidades participantes “estão empenhadas na construção de
uma sociedade planetária orientada a uma relação fecunda entre os seres humanos
e destes com a Terra”.
Se eu fosse
impaciente, eu diria: so what?, só
isso? De fato é muito pouco para definir um vasto movimento que mobiliza
centenas de milhares de pessoas, talvez milhões, em todo o planeta, e que se
propõe a grandiosa tarefa de mudar esse mesmo planeta (não esqueçamos a
“sociedade planetária”). Mas o 4º princípio – numa carta que alterna, de forma
algo anárquica, procedimentos, regras e definições – vai um pouco mais adiante:
“As alternativas propostas no Fórum Social Mundial contrapõem-se a um processo
de globalização comandado pelas grandes corporações multinacionais e pelos
governos e instituições internacionais a serviço de seus interesses, com a
cumplicidade de governos nacionais. Elas visam fazer prevalecer, como uma nova
etapa da história do mundo, uma globalização solidária que respeite os direitos
humanos universais, bem como os de tod@s @s cidadãos e cidadãs em todas as
nações e o meio ambiente, apoiada em sistemas e instituições internacionais
democráticos a serviço da justiça social, da igualdade e da soberania dos
povos.”
Aqui
chegamos um pouco mais perto do que seriam as propostas propositivas – com
perdão pela redundância – do movimento. Para minha frustração, no entanto, não
encontrei alternativas dignas desse nome, ou pelo menos não de forma
sistemática e organizada, de maneira a permitir um diálogo racional com essas
“alternativas”. Existem dezenas, provavelmente centenas, de documentos, na
“Biblioteca das Alternativas”, mas, à diferença das bibliotecas normais, a dos
anti não está classificada, não possui seções, nem “fichas catalográficas” que
nos habilitem conhecer as idéias, as propostas e as alternativas apresentadas
pelo movimento. Figuram nela tão somente os títulos e a indicação da língua em
que se encontram os documentos: percorri vários, muitos deles e, com pesar,
recolhi apenas uma sensação de déjà vu
again.
De 2001 até
os dias que correm, esses documentos são monotamente repetitivos: eles condenam
sempre, em termos ásperos, a globalização capitalista, conclamam à mobilização
ativa contra as reuniões das organizações internacionais que supostamente
pretendem facilitá-la – aquelas mesmas já mencionadas – e terminam pelas
promessas de sempre: os anti-globalizadores, por ocasião dos seus próprios
encontros, “não vêm manifestar, nem protestar, mas sugerir correções e propor
soluções para que, finalmente, de fato, um outro mundo seja possível”
(“Anti-globalização”, Ignacio Ramonet, do Le
Monde Diplomatique, da ATTAC francesa e um dos “papas” do movimento, em
texto de 4.09.2002). Busquei, em vários outros documentos, essas soluções,
essas “correções” prometidas, mas confesso minha frustração: não encontrei nada
digno desse nome.
Não que não existam
propostas ou “idéias” a respeito da globalização, ou sobre como ela poderia ser
mais humana, solidária, economicamente equitativa, socialmente justa e
ecologicamente responsável. Mas é que, em minha análise, as propostas ou
alternativas à globalização apresentadas pelos anti me parecem desumanas, muito
pouco solidárias, economicamente desastrosas, socialmente catastróficas e ecologicamente
poéticas, mas insustentáveis no plano prático. Talvez eu esteja sendo apressado
demais, ao condenar as alternativas anti-globalizadoras, mas esta é a sensação
que me deixou a leitura de praticamente todos os documentos do site
www.forumsocialmundial.org.br.
Para ser honesto, comigo
mesmo e com os representantes da anti, existe sim uma condição geral para que
essa globalização deixe de ser tudo aquilo que ela aparenta ser, aos olhos dos
anti: que ela deixe de ser capitalista. Isto, pelo menos, é o que eu deduzo do
11º princípio da Carta de Princípios, que define o fórum como sendo “um movimento de idéias que estimula a reflexão, e a
disseminação transparente dos resultados dessa reflexão, sobre os mecanismos e
instrumentos da dominação do capital, sobre os meios e ações de resistência e
superação dessa dominação, sobre as alternativas propostas para resolver os
problemas de exclusão e desigualdade social que o processo de globalização
capitalista, com suas dimensões racistas, sexistas e destruidoras do meio
ambiente está criando, internacionalmente e no interior dos países”. Em
outros termos, se a dominação do capital fosse eliminada, metade (ou pelo menos
grande parte) dos problemas da humanidade estaria resolvida.
Ou muito me engano, ou a
reflexão não vem sendo muito estimulada nesses encontros, já que não consigo
atinar como se pretende eliminar um dos mais poderosos fatores de produção
criados com o processo civilizatório, desde a revolução agrícola: o capital (ou
talvez mesmo desde o paleolítico inferior, uma vez que armas de pedra ou de
madeira são uma forma de “capital”). Seriam os anti-globalizadores astronautas?
São eles de outro planeta, ainda não tocado pelo modo de produção capitalista?
Acredito que não, o que nos deixaria uma única conclusão: eles são simplesmente
anti-capitalistas, o que tampouco é consenso entre eles. Com efeito, muitos
proclamam não ser contra o modo de produção capitalista, apenas pretendendo
melhorar o seu funcionamento.
De fato, ao
ler os documentos da “Biblioteca das Alternativas”, constatei que alguns
ostentam um anti-capitalismo visceral, ao passo que outros são apenas levemente
anti-capitalistas. Seriam os anti-globalizadores marxistas, socialistas ou de
alguma forma pessoas de esquerda? Dificilmente, pois nada existe de mais
anti-marxista e de anti-socialista do que o pensamento nacionalista,
chauvinista ou contrário ao saudável internacionalismo proclamado pelo autor do
Manifesto Comunista e d’O Capital. Marx proclamava, antes de
mais nada, as virtudes do capital enquanto redutor das diferenças entre
sociedades, em suas diversas etapas de desenvolvimento: ele pretendia que o
capital unificasse rapidamente as forças produtivas e as relações de produção
nos cantos mais recuados do planeta para que o exército dos proletários
pudesse, finalmente, não recusar o capitalismo, mas sim superá-lo a partir de
seu acabamento enquanto modo de produção, cedendo lugar a uma etapa superior de
organização social da produção. Mas isto eu não preciso relembrar, pois que
constitui o “beabá” de qualquer marxista digno desse nome.
O que me
surpreende, apenas e tão somente, é que, ao constatar a presença de vários
“marmanjos” marxistas no movimento – com isso eu quero me referir aos mais
velhos, que ainda leram Marx, já que os mais novos parecem simplesmente ignorar
as obras do velho barbudo –, eles não tenham atinado para a existência dessa
“contradição insuperável” em seu seio: um marxista conseqüente deveria estar
lutando em favor de mais, não de menos, globalização, pois apenas ela é capaz
de trazer para mais perto de nós o dia da derrocada final do capitalismo e sua
superação pelo socialismo.
A posição da
anti-globalização não é, portanto, marxista ou sequer socialista. O que de fato
transparece nos muitos documentos compilados, como indicado no já citado 4º princípio, é um posicionamento dos anti contra o “processo de
globalização comandado pelas grandes corporações multinacionais e pelos
governos e instituições internacionais a serviço de seus interesses, com a
cumplicidade de governos nacionais”. Ou seja, o mal absoluto são as
grandes empresas multinacionais, e quem não se posicionar contra elas fica
proibido, portanto, de freqüentar os encontros do movimento.
No longo prazo, esse
posicionamento pode representar uma contradição nos termos, na medida em que o
movimento anti-globalizador já se transformou, de fato, em uma grande
corporação multinacional, com representação em quase todos os países e com
várias “instituições internacionais a serviço de seus
interesses”. Assim, se ele, por acaso, numa hipótese não de todo
irrealizável, conquistar governos – como parece que já conseguiu convencer
alguns e dispõe de muitos aliados em outros, inclusive perto de nós –, ele se
tornará uma força irresistível, capaz de mudar de verdade a face do planeta.
Apenas não sei se para melhor, como uma análise de algumas de suas propostas
alternativas pode demonstrar.
III. Pensando o impensado: existem idéias concretas sobre
temas concretos?
Para facilitar o debate
e a confrontação de idéias, entre as minhas próprias e as que parecem defender
os anti, resolvi organizar o restante deste texto em torno de algumas questões
práticas que costumam concentrar o interesse do movimento. Escrevi “parecem”
pois que o movimento não ostenta idéias oficiais, o que é compreensível, pois
que não pretende ser ou parecer “autoritário”, e não consolidou suas propostas
em um conjunto de alternativas que mereçam ter esse nome. O fato é que eles não
apresentam os meios e modos pelos quais suas “idéias” poderiam ser testadas na
prática, ou pelo menos ser objeto de simulações econométricas ou de elegantes
equações de equilíbrio ao estilo de Keynes (um profeta freqüentemente invocado
nesses meios).
Como os anti não
apresentam esse corpus conceitual,
fica muito difícil, o que já é pouco compreensível, considerá-los pelo que eles
pretendem ser, um movimento, e não apenas um ajuntamento heteróclito de
individualidades, ostentando um conjunto heterogêneo de idéias dispersas.
Apresento minhas desculpas antecipadas aos autores de trabalhos dotados de
idéias sensatas, mas a reunião de todos esses textos num mesmo barril de baixa
coerência intrínseca dá uma horrível impressão de sopa de letras.
Arriscando-me, portanto,
a ser injusto com os detentores de idéias menos estapafúrdias (mas, humildemente,
eu os convido a me contradizer), aqui estão algumas “idéias” defendidas pelos
anti-globalizadores e meus próprios comentários a respeito.
1) Protecionismo agrícola e vantagens
comparativas dos mais pobres
Vários documentos dos
anti insistem numa pouco definida segurança alimentar: segundo
esses textos, se deve dar prioridade à alimentação do povo a partir da própria
região ou país, e não às exportações ou importações. Para eles, a segurança
alimentar e a sustentabilidade rural só podem existir quando um país é capaz de
satisfazer uma parte significativa de suas própias necessidades alimentares.
Esta posição transparece em vários documentos franceses, por exemplo, e eu
mesmo assisti, pessoalmente, ao representante mais eloqüente desse tipo de proposta,
Bernard Cassen, da ATTAC, defender esse absurdo na Câmara dos Deputados, em
Brasília, sem que nenhum dos parlamentares brasileiros presentes ousasse
responder a tamanha sandice econômica e a tão evidente atentado aos interesses
exportadores do Brasil.
Parece
evidente, aos observadores isentos, que não há qualquer “insegurança alimentar”
no mundo como um todo. Desde os tempos de Malthus, a produção agrícola cresceu
muito mais rápido do que a “produção” de indivíduos, e ainda que possa haver,
ocasionalmente, carências produtivas numa região localizada – geralmente por
motivo de guerra civil ou desastre natural –, elas podem ser rapidamente
supridas via comércio internacional ou assistência alimentar de emergência. A
tese da “segurança alimentar” e a da “multifuncionalidade agrícola” constituem
disfarces canhestros do mais egoista protecionismo agrícola, que tanto mal faz
aos povos mais pobres da Terra. Estes não podem utilizar-se de suas vantagens
comparativas, que estão todas localizadas no setor primário, para alçar-se da
miséria mais vergonhosa, mantida em grande medida graças à concorrência desleal
de um punhado de ricos agricultores subsidiados dos países mais avançados. De
resto, a indústria e ainda mais os serviços são muito mais “multifuncionais” do
que a agricultura, já que estão presentes em todas e cada uma das nossas
atividades diárias, não se podendo argumentar sobre sua localização espacial ou
eventual isolamento do mercado externo, como se faz em relação à agricultura,
sem cometer novos atentados pueris à mais simples racionalidade econômica.
Não tenho
nada contra a existência da agricultura familiar, assim como nada tenho a opor
a que os países ricos subsidiem suas populações da forma como desejarem, mas
eles não podem fazê-lo opondo-se ao livre comércio de produtos agrícolas como
vem fazendo e sabotando a comercialização externa da produção agrícola dos
países mais pobres por meio de subvenções às suas próprias exportações não
competitivas. O protecionismo hipócrita dos países mais ricos está assim
roubando, literalmente, os mais pobres de oportunidades de desenvolvimento. A
hipocrisia nesse terreno é inaceitável e o movimento anti-globalizador não
poderia se fazer cúmplice desse vil atentado aos direitos humanos de milhões de
pobres ao redor do mundo. Espero que pelo menos os anti-globalizadores
brasileiros saibam desvencilhar-se dessa armadilha que os torna coniventes com
um dos piores atentados aos direitos econômicos dos mais pobres.
2) Dívida externa, movimentos de capitais e
globalização financeira
Um traço que unifica as
mais diversas correntes do movimento anti-globalizador é, sem dúvida alguma,
sua oposição ao pagamento da dívida externa dos países mais pobres e, de modo
geral, à livre movimentação de capitais financeiros. Outra medida, de caráter
propositivo e não simplesmente negativo como a do cancelamento das dívidas –
traduzidas na prática por “plebiscitos” tão canhestros quanto viciados em sua
indução automática ao não-pagamento, sustentado de forma piegas na “miséria do
povo” –, é a que apresenta uma taxação sobre a movimentação de capitais, dita
Tobin Tax, como sendo o remédio milagre tanto à volatilidade financeira quanto
ao problema do não desenvolvimento dos países mais pobres. Rejeitada pelo
próprio economista, James Tobin, que sugeriu um modesto controle sobre as
aplicações cambiais no momento da derrocada do sistema de Bretton Woods, essa
taxa, patrocinada especialmente pela vertente gaulesa do movimento anti – de
onde retira o acrônimo ATTAC –, não apenas não resolveria o problema da
volatilidade e da especulação, como se colocaria frontalmente contrária aos
interesses de países emergentes tomadores de recursos, como o próprioBrasil.
Neste terreno das finanças internacionais, as simplificações dos anti são
tantas e tão rizíveis que resulta difícil sequer “dialogar” com representantes
desse movimento, que parecem não ter idéias mínimas sobre como funcionam os
mercados financeiros e que partes de responsabilidade compartilhada devem ser
atribuídas em momentos como os das graves turbulências financeiras dos anos
noventa do século XX.
Já escrevi o suficiente
sobre as crises financeiras – em especial em meu livro Os Primeiros Anos do Século XXI, em especial cap. 10, “O Brasil e
as crises financeiras internacionais, 1929-2001” – para voltar agora em detalhe
sobre seus determinantes, as conseqüências econômicas de curto prazo e as
possíveis lições do ponto de vista da globalização financeira (inclusive quanto
aos necessários cuidados que se há de ter em relação a esse aspecto da
globalização, necessariamente diferente da liberalização comercial, que sempre
provoca efeitos positivos). Não pretendo, em todo caso, contestar argumentos
infantis e desprovidos de qualquer fundamentação histórica ou fatual, como os
alinhados por organizações como o “Jubileu 2000”, que promove uma sistemática
campanha em prol da eliminação da dívida externa dos países mais pobres.
Registro aqui apenas um exemplo desse tipo de argumento:
“Resolver os problemas
da dívida externa implica buscar saldar uma dívida histórica que os países do
norte têm com os povos do sul como conseqüência do saque e da devastação que
neles realizaram durante mais de 500 anos”. Como se diz: contra esse tipo de
afirmação não há argumento. Sem dúvida que a dívida externa dos países mais
pobres pode e deve ser diminuída ou mesmo eliminada, em certos casos, mas uma
ação generalizada de cancelamento dessas dívidas faria mais mal do que bem ao
conjunto dos países em desenvolvimento e emergentes, já que os retiraria dos
mercados voluntários de capital por um tempo considerável, acumulando mais
prejuízos do que benefícios.
Em relação aos
movimentos de capitais puramente especulativos, vilipendiados tanto pelos
anti-globalizadores como por alguns “globalizadores” – como por exemplo o
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – pode-se simplesmente relembrar que
eles estão em todas as partes, em especial nos países mais avançados, mas são
capazes de provocar prejuízos apenas naquelas economias que já enfrentam
desequilíbrios, nas quais a volatilidade é um dado intrínseco, não extrínseco,
ao sistema. Controles podem ser utilizados, mas não são certamente a panacéia
que alguns apregoam, sobretudo na forma permanente de restrições às entradas e
saídas, de suposta paternidade keynesiana. Movimentos mais livres de capitais,
assim como maior grau de competição no sistema financeiro contribuem para o bom
funcionamento de qualquer sistema econômico, mas níveis adequados de liquidez
podem ser regulados por instrumentos tributários ao alcance de qualquer país.
Apenas a ojeriza atávica em relação aos mercados financeiros ostentada em
certos círculos esquerdistas pode justificar algumas das medidas propostas
pelos grupos anti-globalizadores: elas pertencem mais ao reino da paixão
política do que ao terreno da administração sensata das relações econômicas
internacionais.
3) Competição aberta contra mercados regulados
e fechados
Outro dos objetos mais
freqüentes da demonologia dos anti-globalizadores é o livre-comércio,
invariavelmente acusado de provocar perdas para os países mais pobres e de
concentrar ainda mais as riquezas em escala planetária. Nada poderia estar mais
distante da verdade. Se existe algum tipo de consenso entre os economistas, há
mais de dois séculos, é justamente o que defende os efeitos benéficos do
livre-comércio para todos os participantes da relação. Os argumentos são tão
convincentes a esse respeito que não caberia insistir na argumentação em favor
da liberdade de comércio, e sim aguardar provas mais evidentes, dos anti, de
que ela provoca miséria e desigualdade.
Bastaria considerar os
dados mais elementares da história e das estatísticas atuais confrontando
níveis de renda e coeficiente de abertura externa (isto é, a participação do
comércio no produto bruto) para constatar o óbvio: há uma nítida correlação
entre renda per capita e abertura ao comércio. Como ocorre nesses casos, apenas
dirigentes sindicais e agricultores dos países do norte, de um lado, e
“intelectuais” do sul, de outro, atacam o livre-comércio: os primeiros estão, é
claro, interessados nos empregos industriais ou nos mercados agrícolas
protegidos em seus países, ao passo que os segundos defendem teses abstratas,
em total contradição com os interesses de seus próprios trabalhadores.
Os argumentos em favor
do livre-comércio são tão poderosos que mesmo o PT, no Brasil, aderiu à tese,
como se deduz desta afirmação, do seu candidato presidencial em plena campanha
de 2002: “Somos a favor do livre-comércio, desde que
os países possam competir em igualdade de condições” (carta-compromisso
de 23.07.02), Na verdade, a frase deveria receber um ponto final na primeira
vírgula, já que a condicionalidade proclamada não tem nenhuma razão de ser:
competição em igualdade de condições nunca existirá. Os países exibem
assimetrias naturais ou criadas que se manifestam de forma recorrente e que
sustentam justamente o comércio, sendo ilusório acreditar que elas serão
eliminadas. Aliás, elas não podem ser eliminadas pois que constituem o que se
chama de base estrutural das vantagens comparativas relativas, que é o
fundamento do próprio ato de comerciar. O livre-comércio, de verdade, é sempre
unilateral, nunca condicional e restrito ao princípio de reciprocidade.
4) Instituições de solução de controvérsias em
face do arbítrio comercial
Não contentes em
despejar sua fúria contra o FMI e o Banco Mundial, acusando-os de serem
sustentáculos do neoliberalismo – quando as instituições de Bretton Woods são,
na verdade, instrumentos que corrigem imperfeições dos mercados –, os
anti-globalizadores ingênuos também pretendem eliminar ou paralisar a OMC,
vista como mais uma defensora das grandes multinacionais e da liberalização
selvagem, o que constitui, obviamente, outra grande bobagem. Longe de fazer
pressão em favor de uma completa liberalização comercial – o que, aliás, seria
um grande benefício para os países mais pobres – a organização de Genebra
contribui, antes de mais nada, para administrar de modo relativamente imparcial
as formas modernas de mercantilismo, que os países insistem em promover em lugar
de aderir resolutamente aos princípios de Adam Smith.
Na verdade, se a OMC não
existisse, seria preciso inventá-la, na medida em que ela constitui uma das
poucas defesas, por meio do sistema de solução de controvérsias, de que dispõem
os países menos poderosos para lutar contra o arbítrio dos mais fortes. A
oposição consistente dos anti-globalizadores contra as rodadas multilaterais de
negociação comercial da OMC – como de resto contra a Alca e outros processos em
curso de escala mais restrita – afastam as possibilidades de que países mais
pobres possam se integrar mais rapidamente à economia mundial e daí extrair
crescimento e riqueza. Desse ponto de vista, os anti-globalizadores são
altamente irresponsáveis.
5) Crescimento e pobreza, ou o que a globalização
pode fazer por eles
A acusação, sempre
freqüente nos manifestos do movimento anti, de que a globalização reduz o
crescimento nos países mais pobres e aprofunda neles a pobreza, não é apenas
rizível e desprovida de fundamentação empírica: ela é totalmente ridícula, em
face dos exemplos mais conspícuos em sentido contrário. China e Índia, dois
países pobres e dotados de instituições econômicas socialistas e dirigistas,
foram os que mais cresceram quando, justamente, se inseriram no processo de
globalização, explorando suas vantagens naturais (mão-de-obra barata) ou
adquiridas (educação de qualidade, em certas categorias de trabalhadores, e
facilidades logísticas e de comunicações). Nos dois, milhões de pessoas se
alçaram de uma miséria ancestral e puderam desfrutar de uma primeira sensação
de progresso social desde gerações imemoráveis.
Na outra ponta, os dois
países mais abertos ao processo de globalização, de fato os promotores
históricos desse processo desde a era da primeira revolução industrial, o Reino
Unido e os Estados Unidos, são também aqueles que apresentaram as maiores taxas
de crescimento de todos os desenvolvidos durante a terceira onda da
globalização, nos anos noventa, ostentando igualmente as menores taxas de
desemprego entre os países da OCDE. Por acaso são também os mais globalizados
financeiramente e os que mantêm o menor número de restrições aos investimentos
ou em termos regulatórios.
No que se refere aos
investimentos diretos, justamente, observa-se uma virtual contradição entre, de
um lado, a oposição retórica e o soberanismo vazio proclamado pelos anti e, de
outro, os ativos esforços de atração de capitais de risco que vêm sendo feitos
pelos países em desenvolvimento, que se mostram indiferentes ao discurso contra
as multinacionais dos primeiros. Pode parecer razoável proclamar-se a intenção
de reservar “espaços nacionais” para políticas de desenvolvimento, mas a menos
de se dispor de políticas setoriais definidas e concretas, o alerta pode
parecer inócuo ou simples manifestão de prevenção
contra o investidor estrangeiro, que ele vem em busca de objetivos muito
objetivos: liberdade de ação e o maior lucro possível, nessa ordem.
6) Concentração da renda e desigualdades
A concentração e a
desigualdade na distribuição da renda podem ocorrer mesmo na ausência do
processo de globalização, como prova o Brasil na era do protecionismo
industrial e de fechamento comercial. A globalização, ao contrário, ao provocar
uma maior taxa de crescimento da economia em países menos avançados, tende a
favorecer o crescimento e, portanto, a criação de riquezas. A distribuição da
renda adicional assim criada pode não ser a mais equitativa possível, mas isso
depende de um conjunto de fatores políticos e sociais que ultrapassam a
capacidade operacional da globalização.
Esta questão, de toda
forma, está ligada ao papel que o Estado desempenha no sistema econômico. Os
anti-globalizadores costumam afirmar que não existe nenhuma experiência
histórica que demonstre que o mercado, por si só, logre alcançar níveis
satisfatórios de repartição de benefícios e muito menos justiça social, o que é
no mínimo uma generalização indevida. Ainda que o Estado tenha sido importante
ao administrar mecanismos tributários, compensatórios e de benefícios indiretos
– escolas, hospitais e saneamento básico, por exemplo – em favor dos mais
desfavorecidos, em praticamente todos os países, as evidências mais eloquentes
em termos de crescimento da renda e de repartição equitativa das riquezas
geradas no setor privado estão justamente naqueles países onde os mercados
funcionaram de forma mais desimpedida e livre, não nos mais estatizados ou
controlados pelo setor público. Privatizações podem tanto concentrar como
desconcentrar a renda, dependendo da forma como são conduzidas, sem esquecer
que uma das formas mais iníquas de concentração da renda em países pobres é
aquela operada em favor de certas categorias de privilegiados estatais –
funcionários da ativa ou pensionistas – que logram transferir para si uma parte
substancial da riqueza social sob a forma de investimentos em empresas estatais
ou pensões abusivas.
7) Tecnologia proprietária e dependência
tecnológica
Da mesma forma como os
capitais financeiros, patentes e direitos proprietários em geral têm o dom de
despertar paixões exacerbadas nas hostes do movimento. Talvez seja porque aqui
estão concentrados alguns dos símbolos considerados nefastos para os
anti-globalizadores: grandes multinacionais lidando com segredos industriais,
extração de lucros abusivos sobre determinadas categorias de produtos, a
começar pelo remédios, enfim, monopólio tecnológico dos ricos e dependência dos
mais pobres. As demandas, em conseqüência, vão da proibição de patentes em
certas áreas (ligadas à vida e saúde), ao licenciamento compulsório de patentes
devidamente registradas de remédios de larga utilização pública, passando pelo
controle extensivo do setor pelo Estado.
De fato, o regime de
patentes consagra o monopólio do detentor dos direitos durante um certo tempo,
que vem sendo paulatinamente aumentado (atualmente de 20 anos para patentes e
bem mais para direitos do autor) e estendido a novas áreas, até aqui inéditas,
do conhecimento e da engenhosidade humanas. Pode-se, efetivamente, constatar um
certo exagero na proteção patentária, atualmente, mas como disse uma vez
Churchill em relação à democracia, trata-se do pior regime, à exceção de todos
os demais. Sem a promessa de ganhos trazidos pelo regime “monopólico” das
patentes, seria difícil assegurar os investimentos necessários à introdução de
novos remédios nos mercados. A existência de um regime abrangente de proteção
tornou-se, assim, uma condição do próprio desenvolvimento tecnológico nessas
áreas de ponta, razão pela qual países dotados de “baixa cultura patentária”
têm sido notoriamente deficientes no registro e na exploração de inovações, a
despeito mesmo de seus progressos científicos, como parece ser o caso do
Brasil.
A dependência
tecnológica é um fato, mas ela não será sequer arranhada se os países em
desenvolvimento seguirem os conselhos dos anti-globalizadores na condução de
suas políticas tecnológicas e de propriedade intelectual. Ao contrário, é
provável que a dependência se aprofunde caso suas “prescrições” sejam seguidas,
uma vez que elas não correspondem ao itinerário real dos países capitalistas
desenvolvidos, e sim são meras teses agitadas no mundo abstrato em que vivem os
anti-globalizadores.
8) Meio ambiente e mercado: um instável
equilíbrio
A degradação ambiental e
a diminuição da diversidade biológica são fatos que acompanham a civilização
humana desde tempos imemoriais: as sociedades devastaram a natureza e
substituiram-na por paisagens humanas, assim como domesticaram animais e agora
tentam interferir no próprio ato de criação de novos seres vivos, desta vez ao
nível molecular, quando já o vinham fazendo há milhares de anos ao nível da
seleção das espécies. Acreditar que tais fenômenos se reduzem a um problema de
mercado ou que está ligado exclusivamente ao modo de produção capitalista é de
um reducionismo atroz e, no entanto, é isso que vêm fazendo os
anti-globalizadores ecológicos.
O que eles pedem, em
essência, é o afastamento dos critérios de mercado das questões vinculadas ao
meio ambiente – na OMC, por exemplo –, quando os sinais de mercado são os
únicos capazes de, ao precificarem os custos relativos de utilização e de
conservação, estabelecer um justo meio termo, por certo sempre instável, entre
a preservação ambiental e o uso sensato dos recursos naturais. A experiência
das últimas décadas, em especial nos ex-países socialistas, indica que a
ausência de sinais de mercado e a presença avassaladora do Estado na regulação
do uso de recursos comuns pode andar de par com os piores atentados ao meio
ambiente de que se tem notícia. Parece claro que a livre disposição desses recursos
também pode conduzir a abusos por parte das empresas privadas – sempre tentadas
a atuarem segundo um comportamento free-rider
–, mas justamente a combinação de mecanismos regulatórios com adequados
estímulos de mercado parece mais condizente com as necessidades sociais do que
um preservacionismo radical que parece impedir, atualmente, os povos dos países
mais pobres de fazerem uso adequado de seus ainda vastos recursos naturais.
Como também indicado pela experiência histórica, as piores degradações ambientais
tendem a ocorrer nas regiões mais pobres dos países em desenvolvimento. Desse
ponto de vista, as posições assumidas pelos anti-globalizadores tendem, na
prática, a perpetuar miséria e degradação ambiental nesses países.
IV. Diagnóstico de duas enfermidades precoces: autismo e
esquizofrenia
Ao percorrer os inúmeros
escritos – caóticos, desiguais, geralmente carentes de método e ainda menos
apoiados em estudos empíricos – dos anti-globalizadores, a sensação que se
retira é a de uma estéril e inócua anarquia mental. Aliás, uma única conclusão
parece possível a partir da leitura (penosa) dos textos dos anti: o que os
anima, na verdade, não é a criação de um “novo mundo”, ou a indicação de
alternativas reais e credíveis aos problemas deste velho mundo em que vivemos,
por certo desigual e iníquo, sob muitos aspectos, mas ainda assim infinitamente
melhor do que aquele no qual viveram nossos avós e bisavós, e assim
sucessivamente até tempos recuados, e bem mais sombrios, da história da
humanidade. O que os mobiliza, de fato, são duas tomadas de posição que cabe
aqui considerar: um anti-capitalismo visceral e, o que é mais grave, sua
derivação sociológica, um anti-mercadismo filosófico.
Não tenho nenhum tipo de
mandato para colocar-me na defesa do capitalismo, um sistema que me parece
dispensar defensores pagos ou voluntários, já que vem, ao longo dos séculos,
resistindo razoavalmente bem aos assaltos continuados de uma horda de bárbaros
anti-capitalistas, desde os mercantilistas adeptos das reservas de mercado, aos
monopolistas das companhias reais de comércio, a socialistas utópicos e soi-disant “científicos”, a coletivistas
fascistas e planejadores comunistas, a estatistas disfarçados e outros
dispensadores do “bem-estar social”. Pesa em seu favor o fato de não ter sido
inventado por nenhum cérebro genial, à diferença de certas soluções
“inovadoras” para minorar as misérias e sofrimentos humanos, emergindo de forma
imperfeita e sempre incompleta de um processo impessoal, não administrado
centralmente, não controlado e não controlável por nenhuma força social
particular, mas resultando da combinação de milhares de ações e reações ao
longo de uma cadeia de interações sociais que deita raízes em várias correntes
constitutivas da civlização ocidental (pois é um fato histórico, não absoluto
ou excludente, que o capitalismo emergiu primeiro nas formações sociais criadas
a partir do substrato civilizatório comum do Ocidente medieval). Tal como ele
existe, o capitalismo é certamente imperfeito e desigual, concentrador e
indiferente às especificidades humanas, mas é também o sistema mais dinâmico de
criação de riqueza e de disseminação de progresso técnico que já existiu na
face da Terra. Não é eterno, certamente, mas vai evoluir gradualmente para
formas diferentes – talvez não “superiores”, num sentido moral – de organização
social da produção, sem que se possa predizer com alguma certeza como e em que
condições ele vai continuar a moldar as sociedades modernas como o fez nos
últimos cinco ou oito séculos.
É a esse sistema de
remuneração pelo mérito, de prêmio pela astúcia individual, de retorno pela
dedicação ao trabalho honesto, mas também de acumulação crua (e não raro
violenta) de capitais, de genial inventividade e de brutal concentração de
riquezas, que os anti-globalizadores pretendem substituir por algum sistema de
organização social da produção e de distribuição de renda ainda indefinido, mas
idealmente mais justo e menos desigual, feito de solidariedade e de respeito
aos direitos humanos, assim como ao meio ambiente e à diversidade natural dos
povos. Nada mais singelo e mais irrealista, pois que eles não conseguem sequer
entender a lógica de funcionamento do capitalismo, quanto mais fazê-lo ser
deslocado por um outro sistema inerentemente mais justo e mais eficiente (por fiat natural?).
A principal dificuldade
para esse tipo de empreendimento benemérito – e aqui passo à segunda
característica dos anti-globalizadores – é que no meio do caminho tinha um
mercado. Ainda que eles não queiram ou não possam admitir tal realidade, o fato
é que o mercado é muito maior do que o capitalismo, pois que perpassa todas as
sociedades, em todas as épocas e lugares. Não há sociedade sem mercados, salvo
talvez em povos muito primitivos, mas estes também conhecem formas de divisão social
(e sexual) do trabalho, que já são, pelo simples fato de existirem, um embrião
dos mercados potenciais. A economia de mercado sobreviverá ao capitalismo,
quando este já não mais fizer parte do estoque de modos de produção à
disposição dos “engenheiros sociais”, pela simples razão que ela funciona como
uma espécie de sistema circulatório, sustentando o conjunto de funções numa
sociedade complexa.
Que o mercado seja
contraditório, incerto, caótico e inerentemente injusto, como parecia
interpretar um espírito idealista como Marx, não implica em que possamos nos
desvencilhar dele facilmente (ou impunemente). Todas as tentativas realizadas
até aqui, a mais notória durante setenta anos, entre as planicies européias e
as estepes asiáticas, redundaram em notórios fracassos, quando não em tragédias
humanas incomensuráveis. A recusa filosófica, digamos idealista, do principio
do mercado pela maior parte dos anti-globalizadores, sempre prontos a acusar a
“mercantilização da vida” em qualquer relação envolvendo intercâmbio de renda
ou ativos patrimoniais, é algo preocupante e, eu diria, sintomático de uma
doença bem mais grave, que em psiquiatria recebe o nome de “esquizofrenia”.
A esquizofrenia, segundo
os dicionários médicos, é uma psicose caracterizada pela desagregação da
personalidade e por uma perda de contato vital com a realidade. Antigamente
conhecida por “demência precoce”, ela afeta mais particularmente os
adolescentes ou adultos até os 40 anos. Segundo o psiquiatra suíço que a
estudou, Eugen Bleuler (1857-1939), essa doença apresenta-se como uma
dissociação mental, ou “discordância”, acompanhada por uma invasão caótica do
imaginário, podendo se traduzir por disturbios afetivos, intelectuais e
psico-motores, sentimentos contraditórios em relação ao mesmo objeto (amor e
ódio, por exemplo), ou então por incapacidade de agir, por autismo, delírio e
até recusa de falar. O autismo, por sua vez, é uma ruptura entre a atividade
mental e o mundo exterior e uma introversão mais ou menos total no mundo do
imaginário e dos fantasmas (Larousse
Médical, 1995).
Eu estaria sendo muito
cruel e exagerado se acusasse os anti-globalizadores dessas duas enfermidades:
esquizofrenia e autismo? Os sintomas e as reações, em todo caso, são muito
parecidos. Como os esquizofrênicos, eles recusam ver o mundo como ele é,
preferindo descrevê-lo em tintas sombrias e catastróficas, cujos componentes
têm um único problema: o de não corresponderem à realidade dos fatos. Como os
autistas, eles se reunem entre eles e recusam dialogar com o exterior, ou com
quem não aceitar sua Carta de “Princípios”, tão confusa formalmente quanto
desconexa substantivamente.
Acredito, pessoalmente,
que – à parte um “núcleo duro” de anti-capitalistas profissionais, isto é,
aqueles sobreviventes do grande desastre do movimento comunista do século XX e
que ainda continuam a se perpetuar como uma seita religiosa, através de velhos
ritos litúrgicos que só desaparecerão com o passamento do último representante
da espécie – a maior parte dos integrantes do movimento anti-globalizador é
composta de jovens idealistas que desejam sinceramente a correção da piores
desigualdades que ainda dividem a humanidade em um punhado de países ricos e
uma imensa periferia de pobres e miseráveis. Eles são devotados à causa e
acreditam, por indução daqueles profissionais acima referidos ou por leituras
apressadas ou enviesadas, que o velho capitalismo, o neoliberalismo (que muitos
confundem com o chamado “Consenso de Washington”) e o sistema de mercado são
efetivamente responsáveis pelas misérias do mundo, tal como o vemos de nossas
janelas, nas ruas do Terceiro Mundo ou que aprendemos a conhecer em informações
disseminadas pela internet. Esse mundo real é realmente inaceitável e algo deve
ser feito para paliar suas carências mais gritantes e suas iniquidades mais
brutais.
Apenas considero que
essas misérias, injustiças e iniquidades não se devem, em absoluto, à
globalização: elas preexistem, inclusive, ao capitalismo e podem talvez
continuar a existir se, por acaso, em uma bela manhã de sol, o mundo decidisse
deixar de ser “capitalista” para ser qualquer outra coisa, proposta ou não
pelos anti-globalizadores. Os anti se enganam singularmente de inimigo,
provavelmente por falta de leituras honestas, de um estudo mais atento da
realidade histórica, de um conhecimento mínimo sobre como funcionam os sistemas
econômicos e, também, porque se deixam levar por um discurso simplista e
simplificador, por parte daqueles já mencionados acima.
Não tenho nenhuma
restrição mental em acusar os “defensores do culto”, tanto porque eu também já
fui um deles, embora de uma vertente não religiosa, muito dada a leituras de
todo tipo, onde Marx era combinado a Raymond Aron, Engels a Fernand Braudel e
Lênin a Tocqueville. Derivei minha reavaliação dos capitalismos realmente
existentes por meio de um conhecimento não apenas teórico, mas sobretudo
prático de todos os socialismos realmente existentes (e suas pequenas e grandes
tragédias sociais). Aprendi, em especial, a reconsiderar minha análise do
sistema de mercado – tal como absorvida precocemente n’O Capital, de Marx – pelo
estudo das tribos mais primitivas do planeta, numa antropologia comparada das
sociedades que em muito contribuiu para relativizar as críticas mais candentes
que os modernos socialistas faziam às iniquidades percebidas e reais desse
sistema na moderna economia capitalista.
Quero crer, com base
nesses estudos e na reavaliação pessoal conduzida ao longo dos anos, que os
assim chamados “marxistas” contemporâneos – e que ainda continuam a perpetuar ritos
e instrumentos de um culto tão ultrapassado quanto inócuo, do ponto de vista da
moderna sociedade globalizada – não merecem na verdade esse epíteto, e sim o de
reacionários, pois querem fazer girar para trás a roda da história, segundo a
fórmula consagrada de Marx. Aliás, eu me considero marxista e nem por isso
deixo de ser “globalizador”, como aliás Marx o seria, se por acaso vivesse
atualmente. Por isso acredito, com base em todas as considerações que efetuei
neste ensaio, que não só os marxistas, mas também os socialistas de todas as
espécies, os humanistas, os ecologistas, as pessoas de esquerda e os
progressistas em geral deveriam adotar, sincera e devotamente, uma postura em
favor da globalização – atualmente inseparável, mas não para sempre, do capitalismo
–, da qual um balanço honesto saberia nela reconhecer o único sistema
progressista realmente existente. Por progressista eu entendo, está claro, um
sistema capaz de incorporar, progressivamente, contingentes sempre crescentes
de pessoas em patamares mais elevados de produtividade, de renda e de bem estar
social, não um sistema que atenda a todas as necessidades culturais,
educacionais ou de justiça social de todas as sociedades por ele tocadas. Isto
a globalização é capaz de fazer, mas ela não poderá, obviamente, dispensar o
igualitarismo social com que sonham alguns de seus arautos ou de que a acusam
vários, ou maior parte, de seus críticos.
Quero crer, também, que a maior
parte dos participantes do movimento anti-globalizador seja composta de indivíduos
idealistas, que se esforçam sinceramente por encontrar respostas aos problemas
do mundo atual, por definirm como proclamado no seu 4º princípio, as chamadas
propostas alternativas para uma “nova etapa da história do mundo, uma
globalização solidária que respeite os direitos humanos universais, bem como os
de tod@s @s cidadãos e cidadãs em todas as nações e o meio ambiente, apoiada em
sistemas e instituições internacionais democráticos a serviço da justiça
social, da igualdade e da soberania dos povos.”
Concordo
basicamente com esse objetivo geral, idealista, contentando-me talvez, tão
simplesmente, em retirar o adjetivo “solidária” do conceito de globalização,
não por discordar da intenção, mas por considerá-la inócua e absolutamente
irrelevante do ponto de vista do processo histórico. A globalização seguirá sua
marcha impessoal, indiferente às vontades e intenções daqueles que pretenderiam
atribuir-lhe qualquer caracterização particular ou específica.
Atores
sociais e líderes políticos intentarão, obviamente, moldar o processo de
globalização, tentando adaptá-lo às suas necessidades nacionais, às suas
concepções filosóficas ou a seus projetos políticos. Todas essas ações poderão,
ou não, desviar, ainda que de forma moderada, o traçado impessoal e aparentemente
indomável do processo de globalização, mas não conseguirão determinar seu curso
básico, que é o da unificação progressiva do planeta numa sociedade singular,
não totalmente integrada ou dotada de padrões uniformes (como pretendem os
defensores do nacionalismo cultural), mas tampouco fechada em arquipélagos
nacionais como ocorreu até os nossos dias. As ameaças de eliminação das
diferenças culturais entre os povos, devido à importação de bens e serviços de
“cultura de massas” do atual centro imperial, são carentes de maior substância
efetiva e não deveriam ser consideradas por todos aqueles que trabalham com a
identidade nacional desses povos, como a própria experiência brasileira já o
demonstrou amplamente.
Uma leitura
realista das possibilidades e limites da globalização nos permitiria
visualizar, sem paixões ou esperanças irrazoáveis, o potencial de realizações
que esse processo contraditório e indomável contém no sentido de uma
transformação positiva, e progressista, da maior parte das formações sociais
integradas, de uma ou outra forma, ao grande caudal da economia mundial. Sempre
haverá aqueles que preferirão combater moinhos de vento, em lugar de se lançar,
modesta e pragmaticamente, nas pequenas e grandes tarefas vinculadas
necessariamente ao processo de globalização: a educação das massas, a
qualificação técnica e profissional dos trabalhadores, a melhoria contínua dos
padrões culturais e científicos da população, de maneira a prepará-la para
usufruir plenamente dos benefícios desse processo irreversível, bem como para
fazê-la participar com seus próprios instrumentos dessa grande dinâmica
multiforme.
Os
anti-globalizadores da atualidade me parecem ter adotado, por enquanto, a
atitude do avestruz, o que é próprio daqueles que se sentem fragilizados frente
a uma realidade que não dominam e que parece dominá-los por sua vez. As
manifestações ruidosas que conduzem nos locais e eventos típicos da atual
globalização constituem um típico combate de retaguarda, e suas teses estão
condenadas a se esvair na vacuidade das idéias mal pensadas, mal conduzidas e
mal direcionadas. É de toda forma reconfortante saber, de acordo com Marx, que
a humanidade nunca deixa de oferecer soluções aos problemas que ela mesma se
coloca. Daí a razão de meu otimismo.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1297: 5 de julho de 2004.