Por que escrevo? (1)
Paulo Roberto de Almeida
A pergunta do título
poderia, hipoteticamente, sugerir aos leitores deste texto que eu estaria me
considerando um escritor, o que não é absolutamente verdade, nem pela suposição
implícita, nem, muito menos, pela condição efetiva. Escritor é aquele que faz
do ofício da escrita sua atividade principal e que, portanto, vive disso (a
menos que seja um milionário despreocupado, ou um proustiano que vive de ar e madeleines). Eu não ganho minha vida
escrevendo, muito pelo contrário: até devo perder algum dinheiro (às vezes
muito, pela compra de livros), e provavelmente também porque meus textos publicados
não constituem exatamente ativos em minha vida profissional (eles podem até ter
contribuído para alguns dissabores ao longo da carreira, pelo fato de não
aderir às doutrinas oficiais, e possivelmente também na vida acadêmica, onde o
desfilar de vaidades é uma constante e as lutas tribais inevitáveis).
Então, retomando a
pergunta do título, por que escrevo? Poderia dizer, muito diretamente, assim:
por necessidade interior. Ou então, simplesmente, porque me dá prazer. Com
efeito, faço da escrita uma segunda natureza (talvez a primeira, junto com a
leitura, e não imagino nenhuma outra tão absorvente quanto essas duas; sim tem
outras, mas não é o caso aqui de entrar em detalhes). Mas confesso que estou
escrevendo este pequeno ensaio por sugestão indireta, em todo caso póstuma, de
uma terceira pessoa, ela sim um escritor consumado, deliberado, definitivo, um
dos meus preferidos, desde muitos anos, desde quando, ainda na adolescência, li
Animal Farm (A Revolução dos Bichos).
Sim, Eric Blair, aliás mais conhecido pelo seu nom de plume, George Orwell.
Acabo de receber um
livrinho usado, que comprei por pouco mais de quatro dólares (frete incluído)
da Thriftbooks (via Abebooks), chamado simplesmente de A Collection of Essays (Harbrace, copyright de 1946 pelo próprio
George Orwell e, em vários outros anos, por Sonia Brownell Orwell). A despeito
de conter ensaios altamente convidativos – vários dos quais eu já conhecia por
outras edições de suas obras – como, por exemplo Shooting an Elephant, Politics and the English Language, Looking Back
on the Spanish Civil War – fui direto ao último texto, de 1946, que exibe
exatamente o título deste meu pequeno ensaio: Why I write (sem ponto de interrogação). Devo um pequeno copyright
ao estate de George Orwell, portanto,
ou se não para pagar seus legal rights, pelo menos registro aqui seu moral
right quanto ao título e a inspiração.
Volto à questão da escrita
por necessidade, pois ela é real e verdadeira, se me permitem a redundância. E
isso não tem nada a ver com as características de escritor de George Orwell,
que informa, nesse seu ensaio, que já sabia que queria ser escritor na tenra
idade de cinco ou seis anos, quando recitou um poema para que sua mãe
escrevesse, provavelmente inspirado – ou plagiado, como ele escreve – num poema
de Blake, “Tiger, Tiger”. Em todo caso, já aos onze anos, quando começou a
Grande Guerra, ele escreveu um poema patriótico publicado num jornal local. Ele
começou assim, escrevendo vers d’occasion,
ascendendo numa carreira que enveredou pelo jornalismo, pelo ensaísmo e que chegou
até o famoso romance distópico que ainda hoje é referência, tanto na literatura
dessa área, quanto para o pensamento político dirigido para a condição humana e
a organização das sociedades, naquele tom pessimista que sabemos lhe ter sido precocemente
inspirado pelo conhecimento direto do stalinismo, primeiro na Espanha, depois
ao tomar conhecimento dos processos de Moscou.
No meu caso, não foi nada
disso, nem versos de ocasião, nem experiência traumática em alguma guerra,
embora possa reconhecer que o golpe militar de 1964 me despertou também
precocemente para a política e para o estudo sistemáticos dos problemas sociais
e econômicos do Brasil. Mas, a essa altura, eu já era um escritor não
confirmado, mas provavelmente improvisado, mas já totalmente dedicado às artes
altamente suspeitas da leitura obsessiva e da escrita compulsiva, talvez um
pouco como Orwell. Não que eu pretenda me igualar ao grande escritor, longe
disso, mas é que, como no seu caso – e suspeito que isso eu possa compartilhar
com ele – eu nunca escrevi nada, absolutamente nada, que não tivesse vontade de
escrever, e nunca escrevi qualquer coisa que violasse minha própria consciência
quanto ao conteúdo mesmo que estava sendo transposto para o papel, mais tarde
para as telas de computador. Jamais. Como Orwell, possivelmente, só escrevi
aquilo que motivava minha vontade, que atiçava meu cérebro, que correspondia a algum
impulso interior, e que brotava naturalmente da pluma, ou do teclado, segundo
alguma reflexão própria, jamais ditada por alguma força externa.
Obviamente, ao longo da
carreira profissional fui levado a escrever textos para terceiros, geralmente
chefes na hierarquia vaticana do Itamaraty, mas não me lembro de jamais ter
recorrido ao diplomatês insosso, no estilo bullshit
habitual nesse meio, àquela langue-de-bois
(ou chapa branca) que sempre me horrorizou sobremaneira. Sempre escrevi o que
queria, e se algum chefe, ou gabinete, quisesse mudar depois, isso não mais me
interessava. Nenhum desses escritos entrou na minha lista de trabalhos (só um
ou outro cuja estrutura, conteúdo e forma foram preservados, mas de toda forma
apenas para fins de registro, não como trabalhos que eu pudesse considerar como
sendo meus).
À diferença de Orwell,
comecei a escrever tarde, mas talvez não muito mais tarde do que ele mesmo. As
primeiras lembranças da fase de aprendizagem da leitura e da escrita, me remetem
ao livro de alfabetização – estilo “Ivo viu a uva” – e ao caderno de
caligrafia, com suas três linhas, a superior reservada às maiúsculas iniciais e
aos nomes próprios, mas que jamais poderia ser ultrapassada. As ferramentas
eram o lápis, o apontador, a borracha e a caneta de pluma de ferro, com o
tinteiro de marca americana, creio que Parker, que também era o nome de uma
famosa caneta tinteiro que nunca cheguei a possuir. Mais adiante, talvez no
terceiro ano do primário, já se trocou a caneta de pluma de ferro – também
cheguei a experimentar pluma de ganso, apontada – por uma caneta tinteiro,
dessas de bomba de borracha, que costumam fazer a maior sujeira, se manejadas
sem cuidado (quantos cadernos e livros estragados com uma ou outra vazão
exagerada de tinta...).
Depois do bê-á-bá, os
primeiros escritos foram apenas as respostas às perguntas da professora, copiadas
da lousa, a mesma para os quatro anos do primário, e que dava todas as aulas das
quatro ou cinco disciplinas obrigatórias (e aplicava os corretivos, quando
fosse necessário). Havia também os corretivos em casa, quando o boletim ou o
caderno vinha com notas vergonhosas, o que era raro, mas em todo caso servia
para incutir um alto senso de responsabilidade nos deveres escolares de todo
mundo (algo que aparentemente parece ter sido perdido atualmente, ainda mais
com a tal de “lei da palmada”). Os casos mais graves de comportamento eram
resolvidos no chinelo ou na cinta, mas jamais para deveres escolares, inclusive
porque a escola era disciplinadora.
Mas eu me perco no roteiro
deste ensaio: por que escrevo? Bem, comecei com trabalhos escolares, mas jamais
respondendo apenas o estritamente necessário, de forma lacônica: sempre
passeando pelo Egito antigo, pela Grécia clássica, pela Roma dos tribunos e dos
imperadores aloprados, inclusive porque era isso o que eu aprendia nos livros,
nas versões infantis das histórias de Monteiro Lobato, dos clássicos de Swift,
Cervantes, Hans Staden, Defoe, nos romances de Karl May, Emilio Salgari e
muitos outros. O gosto pela história veio muito cedo, na adaptação feita por
Lobato da História do Mundo para as
Crianças, cujo autor me escapa completamente agora.
Tudo isso eu tinha à minha
disposição na fabulosa Biblioteca Infantil Municipal Anne Frank, no bairro do Itaim-Bibi,
que eu frequentava antes mesmo de aprender a ler, o que só fiz na tardia idade
de sete anos. No ano seguinte, já me debrucei sobre coisas mais “complicadas”. Cheguei
a decorar os nomes de faraós de várias dinastias egípcias, e sabia perfeitamente
distinguir quem foram e o que fizeram os gregos mais famosos, filósofos,
dirigentes políticos ou líderes militares. Não sei se foi isso que me levou à
incontinência da pena, provavelmente não: esse foi apenas o caminho para a
loucura gentil da leitura obsessiva, embora a escrita caminhasse junto, pois
era dessa forma que eu realmente absorvia cada livro lido, pelos resumos
efetuados a cada vez, e que infelizmente se perderam na passagem da infância para
a adolescência.
Chegada essa fase, minhas
preocupações eram outras, não mais puramente históricas, e muito menos
literárias, o que nunca foi o meu forte, até hoje (o que, aliás, explica
inúmeros defeitos de escrita, inclusive porque nunca cuidei da forma, muito
menos da gramática ou do estilo). Elas se tornaram sociais e políticas,
sobretudo porque eu procurava entender porque eu e minha família éramos tão
pobres, tão desprovidos de coisas básicas (telefone, televisão, carro, ou
livros, em casa), em face de tantos colegas da escola, de roupas vistosas e hábitos
“burgueses” (sim, aprendi muito cedo o significado desse conceito
essencialmente marxista).
A percepção, real, cruel,
dolorosa, da pobreza, da desigualdade social, da carência de meios me impactou
desde cedo, e isso porque desde muito cedo fui levado a trabalhar para
suplementar o magérrimo orçamento familiar: meu pai era motorista, minha mãe
lavava roupas para fora, ambos com primário incompleto, e meu destino, desde o
primário, e provavelmente mesmo antes, foi suprir a falta de dinheiro com todos
os expedientes aceitáveis então podendo ser desempenhados por um garoto pobre:
recolhimento de sucata metálica nos fundos de uma fábrica, pegador de bolas de
tênis no clube da vizinhança e empacotador não registrado de supermercado,
ganhando apenas gorjetas, portanto. Mais adiante fui ser “office-boy”, que era
como se chamavam os contínuos antigamente. Fiz um pouco de tudo, inclusive e
principalmente refletir sobre a miséria material da nossa existência.
Daí que, salvo alguns
pequenos textos de juventude, para os jornais escolares, meus primeiros
escritos tenham sido precocemente impregnados de revolta, logo impulsionada
pela leitura de obras como Germinal,
de Émile Zola e outros livros dessa mesma feitura. Da revolta instintiva para a
“consciência social” foi um passo muito curto, que devo ter ultrapassado antes
mesmo do golpe militar de 1964, aos 14 anos, portanto. Antes disso eu já vinha
me politizando, com a leitura de jornais, de Seleções (versão brasileira do Reader’s
Digest), e de quaisquer outros materiais que viessem às mãos. Depois do
Quarto Centenário da cidade de São Paulo, em 1954, e da Copa do Mundo de 1958,
na Suécia, o que provavelmente mais marcou minha infância foi a campanha
vitoriosa de Jânio Quadros, em 1960, sua renúncia, a seis meses do exercício do
cargo (quando minha mãe foi me buscar na escola, talvez temendo uma guerra
civil, ou pelo menos distúrbios nas ruas, como quando do suicídio de Getúlio),
e a crise dos mísseis soviéticos em Cuba, no ano seguinte. Foram episódios
momentosos na vida do país e do mundo, que me levaram às páginas dos jornais,
quando eu então passei a usar do meu pouco dinheiro para comprar o grosso
Estadão de domingo, onde se podia aprender de tudo, naquela linguagem
complicada para um garoto de doze anos.
Nessa altura eu já estava
fazendo resenhas de livros para jornais escolares, e produzindo alguns textos
“góticos” sobre o Brasil e o mundo, que se perderam todos, com uma ou outra
exceção. No ginásio (Vocacional Oswaldo Aranha, entre 1962 e 1965) eu colaborar
com “A Pequena Nação”, que tinha como dístico a seguinte frase, altamente pretensiosa:
“um jornal que diz bem porque pensa no que diz” (sic). Sobraram como
colaborações minhas um elogio pela vitoriosa conquista num torneio feminino de
handball, e um poema chamado A Jangada,
provavelmente inspirado nas leituras obrigatórias que tínhamos de fazer (nesse
caso, José de Alencar, talvez). Mas o golpe militar, logo em seguida, me levou
diretamente às leituras políticas, aos escritos na linha do marxismo e ao meu
engajamento na “luta contra a ditadura”. A partir daí nunca mais deixei de
escrever, compulsivamente, intensamente, aliás muita coisa sob algum nom-de-plume, que no caso era mais
exatamente um nom-de-guerre. Mas esta
já é outra história que pretendo contar um outro dia...
Termino respondendo à
pergunta inicial: escrevo por necessidade. Em primeiro lugar para tentar
explicar a mim mesmo as razões da desigualdade, e do nosso estatuto social
inferior, e para os outros tentando convencê-lo de que é preciso mudar o país e
mudar o mundo, para torná-lo mais justo para aqueles, como eu, que vieram de
uma condição inferior e queriam ter acesso às bondades da sociedade de consumo.
Quando comecei, a intenção era mais bem a destruir a sociedade capitalista e o
mundo burguês, como ocorria com muitos jovens em minha época, e provavelmente
de condição social bem superior: líamos Marx e Engels, obviamente, mas também
Lênin, Marcuse, e toda a literatura especializada nos problemas sociais
brasileiros, inclusive clássicos da teoria social, da história e do
desenvolvimento econômico que só seriam recomendados vários anos mais tarde, já
na Faculdade.
Depois de muitas
aventuras, viagens, leituras e um itinerário de aprendizados constantes eu
aprendi que era preciso transformar o mundo, não necessariamente no sentido
pretendido na juventude, mas de uma forma mais racional, mais ponderada, menos
radical, e certamente mais democrática e tolerante em relação às diversas
orientações doutrinárias, políticas e econômicas. Mas, tudo isso foi sendo absorvido
ao longo da vida, aos poucos, como acontece com todo mundo aliás.
O que nunca deixei de
fazer, sempre, foi ler e escrever, escrever e ler, e pensar, naturalmente. Ainda
tenho cadernos e mais cadernos de notas de leituras e de trabalhos
esquematizados. Continuo fazendo isso, agora guardando em pastas no computador.
Por que eu escrevo? Por
isso mesmo, por absoluta necessidade. Não creio que venha a mudar significativamente
esse meu estilo de vida daqui para a frente, mas seria bom um pouco mais de
organização: tenho dezenas de trabalhos e muitos livros para terminar. Paro por
aqui, pois tenho outras coisas para escrever, no meu caos habitual...
Hartford, 6 de Junho de 2014
Paulo Roberto de Almeida
Retomo a discussão
suscitada pela questão do título, confessadamente inspirada em ensaio de título
análogo (mas sem o sinal de interrogação) de George Orwell, em um texto elaborado
em 1946, quando ele já tinha se tornado um escritor profissional, mas ainda
enfrentando condições de vida bastante modestas, pois Animal Farm não havia conseguido encontrar, até aquele momento, algum
editor disposto a desafiar o Big Brother soviético, e o próprio escritor ainda
ruminava a possibilidade de escrever sobre o verdadeiro grande irmão, no
romance que lhe trouxe fama universal: 1984.
Em “Why I write”, Orwell dizia que existem quatro grandes motivos para escrever
e estipulava que eles diferem em graus variados de escritor a escritor, sendo
que, em cada um deles, os motivos assumem proporções variáveis ao longo do
tempo, segundo a atmosfera na qual os escritores vivem. Vejamos quais são eles,
e meus comentários sobre cada um.
(1) Egoísmo puro. O escritor, segundo Orwell, quer parecer inteligente,
ser reconhecido como tal, objeto de comentários dos contemporâneos e ser
relembrado após a morte. “Seria desonestidade não reconhecer que esse é um
forte motivo”, disse ele, terminando esse tópico por um comentário vinculado às
duas condições: “Escritores sérios... são, no conjunto, mais vãos e
autocentrados do que os jornalistas, ainda que menos interessados em dinheiro”
(p. 312, de A Collection of Essays,
edição Harbrace, impressa nos EUA, em 1953). Não tenho certeza de que
escritores estejam menos interessados em dinheiro do que os jornalistas;
provavelmente o contrário, pois estes, supostamente, trabalham geralmente para
algum veículo de comunicações, e dispõem de um rendimento regular, enquanto
assalariados, ao passo que os primeiros são talvez um pouco como os artistas:
só ganham dinheiro quando obtêm sucesso de mercado e quando conseguem vender
suas obras em grande número, ou a preços altos.
De minha parte, ainda que
os motivos de orgulho e de reconhecimento pessoais possam ter contado em
algumas fases de minha atividade de escrevinhador – jamais de escritor – não
foi isso que essencialmente me levou a me dedicar à palavra escrita, tanto
porque quase nunca pensei em publicar o que escrevo, até quando já não dependia
em nada desses parcos rendimentos de uma atividade irregular. Obviamente, fama
e glória só existem quando se é publicado – contra ganhos ou não, e no meu caso
raramente a primeira hipótese esteve em jogo – e, do total de meus escritos,
apenas uma ínfima parte encontrou o caminho da divulgação pública. A proporção
cresceu, está claro, na era digital, quando o custo associado à divulgação eletrônica
se tornou ínfimo, comparado às edições comerciais para o mercado de massa, mas
ainda assim não posso dizer que escrevo com o objetivo de ser lido para obter
reconhecimento público, ou em nome do egoísmo (ou vaidade) de que falava George
Orwell.
(2) Entusiasmo estético, ou seja, percepção da beleza das palavras, de
seu impacto no mundo circundante, ou desejo de expressar e partilhar uma
experiência que é considerada relevante para si próprio e eventualmente para os
demais. “O motivo estético”, reconhece Orwell, “é bastante fraco em muitos
escritores, mas mesmo um panfletário, ou um autor de livros-texto, terá
palavras ou frases que lhe são preferidas por razões não utilitárias; (...)
Além do nível de um guia de trens, nenhum livro está desprovido verdadeiramente
de considerações estéticas” (idem, p. 312)
Acho que, sob esse critério,
eu devo ser um desastre, pois meu estilo é pesado, prolixo, no mais das vezes
descuidado na forma e desengonçado na composição das palavras, com uma redação
tortuosa e torturada, que apenas reflete minha rebeldia inicial e constante em
me dedicar às boas regras da gramática e à redação bem cuidada. Sou tão atento
às palavras, pelo seu significado e conteúdo substantivo, quanto sou desatento
à forma pela qual elas devem ser ordenadas no texto, sua correção formal: as
frases se sucedem, longuíssimas. Trata-se de um defeito grave, eu sei, mas é um
pecado original do qual nunca soube me desfazer quando realmente comecei a me
dedicar de modo mais sistemático à palavra escrita, um refúgio ao qual
recorremos quando estamos longe do ambiente natural em que nos movimentamos desde
as primeiras letras.
Essa fase correspondeu ao
meu autoexílio voluntário, a partir dos 21 anos (e durante mais de sete anos),
quando passei a ler, a estudar e a escrever em outras línguas, numa notável confusão
de regras e de estilos. Minha língua de trabalho passou a ser preferencialmente
o francês – que não difere muito, no estilo ou na gramática, do português, mas
é altamente mais exigente no plano formal – mas também me exerci bastante em
espanhol, com intensas leituras paralelas em inglês e em italiano, e breves
incursões pelo alemão. Por outro lado, não creio que textos de natureza
política, sejam especialmente favoráveis a um domínio erudito da palavra
escrita, perdendo de longe, por exemplo, para a boa literatura, da qual estive
infelizmente afastado, justamente em função de uma dedicação doentia às
questões políticas. Tenho plena consciência de que minha estética das palavras
é horrível, e não cultivo nenhum entusiasmo por isso.
(3) Impulso histórico, que é o mais curto dos motivos elencados por
Orwell. Ele escreve apenas isto: “Desejo de ver as coisas como elas são, de
descobrir os fatos verdadeiros e de guardá-los para uso da posteridade” (p.
312). Parece, dito assim, a mais desprendida das motivações, uma escrita
voltada unicamente para a preservação dos eventos, vistos, ouvidos ou lidos,
algo como uma vocação à la Ranke:
contar os fatos como eles efetivamente aconteceram (wie es eigentlich Gewesen). Ainda que eu tenha sempre cultivado a
história como a mais saborosa das literaturas, e a considere como a “mãe de
todas as ciências”, como reza o famoso dístico – não sei se desde Heródoto ou
Tucídides – não me dedico especialmente à escrita da história, tanto porque não
possuo a necessária preparação metodológica para fazê-lo. Mas todos os meus
trabalhos possuem forte inclinação histórica, no sentido em que procuro
contextualizar os fatos ou eventos analisados em suas causas originais, em seu
ambiente de formação e ulterior desenvolvimento, pois tudo se torna mais
compreensível quando recolocamos quaisquer fatos ou processos históricos no
ambiente que os viu nascer, levando em conta os vetores que os moldaram e as
forças que continuaram influenciando seu itinerário.
Espíritos simplórios, e
burocracias sem memória, tendem a considerar tais fatos ou processos apenas
como eventos ad hoc, como se eles surgissem de repente, e fossem originais ou
inéditos. Não se poupam, assim, de cometer os mesmos erros ou equívocos a que
estão condenados, segundo Santayanna (ou algum outro filósofo antes dele), todos
aqueles que ignoram a história. É certo que a história nunca se repete, mas os
espíritos despreparados tendem a cometer os mesmos erros que já ocorreram anos,
décadas ou séculos antes, ainda que em circunstâncias diferentes. Não existe
nenhuma novidade nas bolhas financeiras, nas valorizações exageradas das
bolsas, na especulação com metais ou imóveis, mas aparentemente as gerações
sucessivas acabam incorrendo nos mesmos desvios de comportamento que vitimaram
os holandeses das tulipas, os franceses de John Law ou, modernamente, os
deslumbrados das “ponto.com”.
Mas eu também me desvio do
principal nesta questão: escrever com finalidades ou propósitos históricos ou
simplesmente pelo prazer da escrita. Creio ter esse impulso da escrita, e
também o espírito histórico, o que torna essa escrita mais empiricamente
fundamentada, mesmo sem pretender ser um fiel cronista dos eventos correntes.
Deixo a história para os profissionais, mas não hesito em penetrar em seu
território e roubar algumas de suas técnicas de investigação, questionando
documentos de arquivos e consultando relatos de contemporâneos, tanto quanto lendo
os historiadores que vieram depois, e que podem iluminar novos aspectos de
eventos e processos passados.
Minha escrita é histórica:
não tenho nenhuma dúvida quanto a isso, e tal característica só se aprofunda
com o tempo. Uma das vantagens de envelhecer – se é que se trata de uma
“vantagem” – é a de poder escrever sobre fatos que nos foram contemporâneos, por
assim dizer, eventos que depois se tornaram “históricos” e aos quais assistimos
com os nossos olhos, ou que estiveram nas páginas de jornais que líamos todos
os dias, hoje bem mais a televisão e a internet do que o papel impresso. Atualmente,
posso falar com total domínio sobre o último meio século, e talvez até um pouco
mais, dado que os livros “contemporâneos” do último meio século falam com
grande domínio sobre o meio século precedente.
Assim, o “breve” impulso
histórico de Orwell pode ser lido de várias maneiras, ele que foi um homem
profundamente marcado pelas tragédias dos anos 1930 e pela Segunda Guerra
Mundial. Um de seus textos começa exatamente assim: “Enquanto eu escrevo, seres
humanos altamente civilizados estão voando sobre minha cabeça, tentando
matar-me” (p. 252 de A Collection of
Essays). Se tratava do ensaio “England Your England”, escrito em 1941,
quando o pico dos ataques aéreos nazistas contra a Inglaterra já tinha passado,
mas a Luftwaffe ainda continuava a fazer incursões ocasionais sobre Londres,
tentando quebrar a moral dos ingleses (bem antes que os americanos fossem
obrigados a finalmente se envolver na guerra).
O que mais marcou Orwell,
entretanto, foi o totalitarismo dos regimes soviético e nazista, o que está
muito evidente tanto em Animal Farm
quanto em 1984. No mesmo ensaio que
serviu de inspiração a este aqui, ele escreveu: “Cada linha de trabalho sério
que eu escrevi desde 1936 [quando ele esteve na Espanha da guerra civil, do
lado republicano, experiência relatada em Hommage
to Catalonia] foi escrita, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo e a
favor do socialismo democrático, tal como eu o entendo” (p. 314, ênfases no
original). É bastante provável que, se não tivesse morrido precocemente, Orwell
continuasse um socialista democrático, na Grã-Bretanha dos anos 1950 e 1960,
mas é altamente improvável que ele assistisse indiferente à decadência
britânica que esse mesmo socialismo ajudou a aprofundar logo em seguida, até
culminar nos imensos retrocessos sociais e industrial da fase imediatamente
anterior à eleição de Margaret Thatcher. Mesmo continuando um socialista, e
inimigo dos conservadores, Orwell provavelmente não discordaria das orientações
libertárias dos novos tories, já que,
entre sindicalistas estatizantes e defensores das liberdades individuais, ele
sempre ficaria com estes últimos, contra o controle das vontades pelos novos
totalitários. A história sempre tem algo a ensinar aos espíritos abertos como
ele (eu também).
(4) Objetivo político: Orwell usa o termo político no seu sentido mais
amplo, como ele mesmo explica, complementando ao início de sua longa explicação
sobre a motivação especificamente política dos escritores: “nenhum livro é
genuinamente destituído de algum viés político. A opinião de que a arte não
deve ter nada com a política é, ela mesma, uma atitude política” (p. 313). Concordo
inteiramente, mas a dificuldade, aqui, está justamente em aceitar que nossas
opiniões políticas constituem o reflexo de nossas leituras e experiência de
vida anteriores, que refletimos o estado do debate político na sociedade e que
podemos, e devemos aprofundar esse debate, e assumir novas posturas, à medida
que aprendemos com o tempo, com as leituras, com pessoas mais experientes, com
a observação honesta e objetiva da realidade.
Por observação objetiva da
realidade, como condição inseparável da honestidade intelectual, eu quero me
referir à minha própria trajetória política, iniciada sob o domínio do marxismo
teórico e do leninismo prático, continuada sob o signo do socialismo
democrático nos anos 1970 e 1980 – como Orwell, ao contemplar as misérias do
nazismo e do stalinismo nos anos 1930 e 1940 –, e chegando a uma espécie de
contrarianismo libertário nos tempos presentes, certamente mais liberal no seu
conteúdo econômico, do que nos tempos socialistas, e mais anarquista nos
domínios cultural e político. A migração não foi instantânea, nem desprovida de
racionalizações justificativas, mas a recusa do totalitarismo bolchevique foi,
sim, imediata, uma vez feito o confronto com a realidade.
Ao sair do Brasil, nos
tempos mais obscuros dos chamados anos de chumbo da repressão política (e
violenta) do regime militar contra os grupos de luta armada, eu fui direto para
o coração do socialismo real, na Tchecoslováquia pós-invasão soviética, quando
o socialismo à face humana de Dubcek estava sendo definitivamente enterrado
pelas forças brejnevistas do sovietismo esclerosado. Mais do que a miséria
material, imediatamente perceptível pelas estantes e prateleiras vazias das
lojas e armazéns, o que mais me chocou foi constatar a miséria humana, moral e
espiritual do socialismo, que também era perceptível pelo ambiente de
vigilância policial, de autocensura mental, de contenção nas palavras e nas
atitudes. O totalitarismo não era uma invenção da CIA, da revista Seleções (Reader’s Digest), nem da ciência política ocidental; ele era uma
realidade perceptível nos olhares e nos gestos, nas pequenas misérias cotidianas
que iam muito além da falta de carne ou de frutas nos mercados, de jornais nos
quiosques, e se manifestava diretamente no vocabulário, que Orwell chamou de
novilingua em 1984.
Obviamente eu não dominava
o tcheco para conversar com a população, mas podia conversar em francês com as
senhoras idosas que frequentavam a biblioteca da Alliance Française, onde eu ia
para ler o Le Monde – a única fonte de informação que eu tinha no socialismo
real – e onde elas iam para se aquecer no inverno, já que o carvão custava caro
e talvez fosse extremamente difícil subir tantos sacos em muitos lances de
escada, em suas antigas casas patrícias transformadas em residências coletivas para
seis ou sete famílias operárias. Aquelas senhoras vinham do capitalismo liberal
e da Tchecoslováquia independente dos anos de entre-guerras, e ressentiam
intensamente o descenso social que experimentaram a partir de 1948, mas
sobretudo estavam profundamente deprimidas pelo clima de repressão policial e
de controles do partido sobre a vida dos cidadãos, situação temporariamente
flexibilizada durante os anos de Alexander Dubcek à frente do comité central do
Partido Comunista. Foi apenas uma primavera, logo interrompida pelos tanques
soviéticos e do Pacto de Varsóvia.
Essa foi a miséria do
socialismo que me foi dada contemplar nos curtos três meses que passei do outro
lado da “cortina de ferro”. Logo em seguida fui trabalhar e estudar no
capitalismo explorador, e me senti inteiramente à vontade com livrarias,
bibliotecas, olhares desprovidos de medo, bem mais do que com as estantes
cheias e a abundância dos supermercados. A partir desse momento, eu reforcei
minha vocação de escritor político, profundamente político, sem qualquer
resquício do fundamentalismo ideológico que me tinha aprisionado no pensamento
único dos neobolcheviques nos anos anteriores. Orwell tinha razão: nenhum
escritor, nenhum livro é desprovido de um viés político determinado.
Como ele escreveu, mais
para o final de “Why I Write”: “Animal
Farm foi o primeiro livro no qual eu tentei, com plena consciência do que
estava fazendo, fundir o objetivo político e o objetivo artístico em um único
conjunto. (...) Todos os escritores são vãos, egoístas e preguiçosos e, bem no
fundo de suas motivações, reside um mistério. (...) Eu não posso dizer com
certeza quais das motivações são as mais fortes, mas eu sei quais delas merecem
ser seguidas. E olhando retrospectivamente minha obra, eu vejo que foi
invariavelmente quando eu não tinha uma motivação política que eu escrevi livros sem vida e fui traído por passagens obscuras,
sentenças sem significado, adjetivos decorativos e, em geral, desonestidade”
(p. 316).
Cabe aos que cultivam um mínimo de honestidade
intelectual ter consciência desse tipo de viés, inevitável na literatura
política, passando então a imprimir o máximo de objetividade observadora, de
fidelidade à realidade que nos cerca, e tratar de traduzir uma clara percepção dessa
realidade nos escritos que produzimos. É o que eu tento fazer cada vez e sempre
que busco um livro na estante, que seleciono minhas leituras de pesquisa, de
estudo ou de lazer, e que tomo da pluma, ou que me sento em face do computador,
para escrever alguma coisa, qualquer coisa, como esta agora, por exemplo. Sempre...
Hartford, 7 de Junho de 2014