O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 21 de junho de 2020

Dani Rodrik: crise global e globalização - Entrevista a El País

Não estou de acordo com tudo o que escreve ou defende Dani Rodrik, considerado um excelente economista, e que agora vai ser premiado com o galardão espanhol Princesa de Astúrias, que vai receber em 16 de outubro em Oviedo, na Galícia.
Não estou de acordo, por exemplo, com esse conceito de hiperglobalização, como se os economistas tivessem o direito de criar um conceito e achar que ele representa a realidade. Isso se chama arrogância intelectual, ou seja, achar que a sua visão da realidade é a mais perfeita, a adequada, a correta, ou a única possível.
Quais são os critérios para achar que a globalização, que é um processo praticamente natural das economias de mercado – mas que pode, sim, ser retrasada ou estimulada por medidas de governos e de entidades internacionais –, estava derivando para isso que ele chama de "hiperglobalização", que seria, supostamente, uma globalização desenfreada, sem controles, sem critério, em face da qual os países, os governos, as empresas apenas poderiam se render, se entregar, sem fazer nada.
Isso não é verdade. As rodadas multilaterais de comércio NUNCA representaram exageros da globalização, ou da liberalização do comércio, que sempre foi limitada pela vontade dos governos, que sempre atuaram por pressão dos lobbies industriais, comerciais, financeiros, de agricultores, etc.
Ele diz não se surpreender em que essa coisa que ele inventou - out of the blue, ou seja do seu cérebro –, a hiperglobalização, esteja vindo abaixo, quando o que existe é uma pandemia, um desses cisnes negros que ninguém poderia prever. Se não houvesse isso, a globalização, seja hiper, seja normal, seja mini, continuaria igual, florescendo em alguns países, sendo reprimida em outros (como o Brasil, por exemplo), que não participa de qualquer cadeia de valor significativa (por protecionismo e stalinismo industrial), por decisão de seus dirigentes e por pressão dos lobbies industriais, mesmo os estrangeiros, que já estão aqui instalados há muito tempo (o setor automotivo, por exemplo, é "industria infante" há pelo menos setenta anos). 
Vejamos o que ele diz: 
"Não voltaremos à era de hiperglobalização dos anos 2000. Haverá mais regionalização no comércio e um uso muito mais ativo de políticas públicas, como a industrialização. E mais tensões em áreas tecnológicas, onde as nações tratarão de construir muros em torno de seus sistemas de inovação. Mas não estamos falando do desmoronamento do comércio global. Não voltaremos para os anos 1930 do século passado."
Ele está descrevendo "REAÇÕES", ou refletindo a realidade, não fazendo obra de economista; essa apregoada "regionalização" do comércio pode ocorrer como pode não ocorrer, e isso não depende nem dele, nem por vezes da vontade dos países, mas das decisões das empresas. São elas que impulsionam a globalização, mas nem sempre podem fazê-lo segundo sua vontade, mas segundo disposições existentes no plano nacional e no dos acordos comerciais bilaterais, plurilaterais ou multilaterais existentes, e sabemos que esses podem ser mais ou menos propensos a maior ou menor abertura e interdependência.
Na verdade, empresas são como indivíduos: querem tudo de bom, e rejeitam o que não é bom. Elas rejeitam a concorrência e adoram monopólios, uma situação em que só elas ganham, por isso querem abertura nos outros países, mas se puderem fechar os seus mercados nacionais o fariam sem qualquer constrangimento.
Achar que "políticas industriais" decididas por burocratas, por políticos, ou induzidas por lobbies setoriais são superiores ao livre jogo do mercado é outra ilusão que não me parece digna de um economista.
Como sempre, eu sou um cético sadio. Acho que os economistas devem fazer o seu trabalho decentemente, traçar os efeitos de determinadas políticas em termos de bem estar, mas não devem achar que suas preferências pessoais, por um mundo mais "solidário", mais socialdemocrático, mais distributivistas sejam melhores do que um mundo puramente anárquico, ao sabor dos mercados. 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 21 de junho de 2020

EL PAÍS
Crise global e globalização

“A pandemia funciona como uma lupa que amplifica as tensões econômicas já existentes”, diz o economista turco Dani Rodrik, professor da Universidade de Harvard. Nesta entrevista ao El País, ele fala sobre o futuro da globalização após a pandemia, uma crise que explicitou a importância da articulação global ao mesmo tempo em que promoveu o fechamento de fronteiras e deixou clara a necessidade de uma indústria nacional saudável. Para Rodrik, os sinais de que a hiperglobalização não era sustentável já existiam há muito tempo. “A grande pergunta agora é se criaremos uma globalização mais saudável e inclusiva ou avançaremos para o unilateralismo de Trump, com políticas insensatas que não beneficiam nem ao país que as promove nem aos seus sócios.” O economista acha que a solução passa por enxergar a globalização como oportunidade de “construir em torno de bens públicos, como evitar a mudança climática ou lidar com as pandemias”, dedicando menos interesse a temas como o comércio internacional e fluxos de capital. “Vamos nos afastando dessa ideia de que cada país devia se adaptar à economia internacional. E devemos entender que é justamente o contrário: que a economia internacional deve servir aos objetivos de cada país.” >>


Pandemia do Coronavirus

Dani Rodrik, economista: “Esta crise nos ensina que nossas prioridades estavam equivocadas”

Professor em Harvard diz que a pandemia amplificou as tensões econômicas já existentes e afirma que autocratas como Bolsonaro e Trump têm respondido pior ao momento.


Luiz Doncel
El País, 17 junho 2020


Dani Rodrik passeava com seu cachorro na manhã de quinta-feira passada quando deu uma olhada na sua conta do Twitter. Foi então que soube que havia ganhado o Prêmio Princesa de Astúrias de Ciências Sociais de 2020, um dos mais importantes da Espanha. A esse economista turco-norte-americano, um dos mais influentes da atualidade, não lhe escapa a ironia de ser premiado por seus estudos sobre a globalização justamente quando este fenômeno recebeu o golpe mais duro de sua história. A pandemia do coronavírus, afirma ele no seu gabinete da Escola de Governo John F. Kennedy, da Universidade Harvard, funciona como uma espécie de lupa que amplifica todas as tensões latentes na economia durante décadas.
“Não me surpreende que a hiperglobalização esteja vindo abaixo. Faz anos que digo que não é sustentável. A grande pergunta agora é se criaremos uma globalização mais saudável e inclusiva ou avançaremos para o unilateralismo de Trump, com políticas insensatas que não beneficiam nem ao país que as promove nem aos seus sócios”, diz ao EL PAÍS, por videoconferência, esse professor que é presença habitual nos bolões de aposta do Nobel. Para ele, tanto Trump quanto Jair Bolsonaro são líderes populistas que se gabam de ter todas as respostas, algo que esta crise contribuiu para desmentir. “Não me surpreende que autocratas como Bolsonaro, Trump ou até certo ponto Boris Johnson estejam respondendo pior à crise do coronavírus” , diz (leia mais no quadro abaixo).
Foi sua primeira entrevista desde que foi anunciado como ganhador do prêmio que —se a pandemia não impedir— receberá em 16 de outubro em Oviedo, no norte da Espanha.
Pergunta. As tensões entre a China e os EUA e os problemas na OMC já deixavam antever o declínio da globalização. Mas a pandemia foi o terremoto definitivo. Trata-se de uma sacudida temporária ou deixará rastros mais profundos?
Resposta. Os sinais de que a globalização se desfazia eram evidentes antes de Trump. Mas sua chegada à Casa Branca exacerbou essas tensões. Não voltaremos à era de hiperglobalização dos anos 2000. Haverá mais regionalização no comércio e um uso muito mais ativo de políticas públicas, como a industrialização. E mais tensões em áreas tecnológicas, onde as nações tratarão de construir muros em torno de seus sistemas de inovação. Mas não estamos falando do desmoronamento do comércio global. Não voltaremos para os anos 1930 do século passado.
P. Não estamos então perante o ocaso da globalização.
R. A hiperglobalização era um estado mental. Vamos nos afastando dessa ideia de que cada país devia se adaptar à economia internacional. E devemos entender que é justamente o contrário: que a economia internacional deve servir aos objetivos de cada país.
P. Que parte desta mudança pode ser atribuída a esta crise?
R. Nos EUA, esta crise tornou ainda mais evidente o nível de desigualdade e a falta de um seguro de saúde para muitas pessoas. No mundo, mostra as incompatibilidades do sistema chinês com os da Europa e EUA. Mostra que devemos criar um novo modus vivendi. A pandemia funciona como uma lupa que amplifica as tensões econômicas já existentes.
P. Que lições devemos extrair desta crise?
R. Ela nos ensina como nossas prioridades estiveram equivocadas nas últimas quatro décadas. Quanto trabalhamos para ter mais globalização econômica, como investimos pouco em assegurar os bens necessários para a saúde pública. Se tivéssemos dado a mesma importância à Organização Mundial da Saúde que à OCDE ou ao FMI, teríamos nos saído melhor. A crise é um aviso de que a melhor globalização seria a que se construísse em torno de bens públicos, como evitar a mudança climática ou lidar com as pandemias no âmbito da saúde pública. E não ter dedicado tanto interesse a assuntos como liberalizar o comércio ou os fluxos internacionais de capital.
P. É também um chamado de atenção a seus colegas, aos quais você critica pela obsessão com os modelos matemáticos?
R. Não acredito que o problema seja usar a matemática, que é apenas uma forma de garantir que não nos enganamos. Mas ela é um problema se fizer que deixemos de nos fazer as perguntas fundamentais. Um bom efeito da crise é que empurra os economistas a nos fazermos essas perguntas importantes. Vemos isso na quantidade de pesquisa acadêmica que está sendo publicada. Acredito que os economistas estejam respondendo ao desafio.
P. Você falou da boa saúde do Estado-nação. Ele sairá fortalecido desta crise? Está de volta? Ou será que na realidade, apesar do declínio tantas vezes prognosticado, nunca foi embora?
R. Sim, a decadência do Estado-nação ocorreu mais em nossa imaginação que na realidade. Quando havia uma crise, quem estava lá? Os Governos nacionais. Mas agora é muito mais evidente. Chama a atenção o papel da política industrial, que parecia ter desaparecido. Os países na verdade se ocupavam dela, mas era algo do que não se falava. E agora tanto nos EUA como na UE estas políticas voltam com muita força. Porque é preciso competir com a China, mas também porque é preciso assegurar a produção para cobrir, por exemplo, as necessidades sanitárias. É uma mudança muito importante na narrativa.
P. Você foi muito crítico com a gestão europeia da crise anterior. Mas o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e os Governos nacionais agiram agora com mais rapidez e decisão. Vemos finalmente uma resposta comum à crise?
R. É certo que desta vez foi mais rápida e efetiva, em parte graças à experiência da crise anterior. O fundo de recuperação proposto pela Comissão Europeia é um passo importante. E parece que a ideia de mutualizar a dívida se infiltra na UE. Resta ver se será um primeiro passo em um processo que leve a uma união fiscal e política ou uma resposta única a esta crise. Mas que a França e Alemanha tenham chegado a um acordo e que a Alemanha tenha aceitado o fundo é ótimo sinal. Isso não aconteceu há 12 anos.
P. Isto o deixa mais otimista com o futuro do euro?
R. Honestamente, não sei. A Europa deve escolher entre uma união fiscal e política real, ou recuar em sua integração. Essa é a opção em longo prazo. A única forma de superar feridas como o Brexit é criar uma comunidade política transnacional onde as pessoas se sintam representadas. É um caminho longo, mas será preciso decidir se se deseja trilhá-lo. Se não, temo que o Brexit será o primeiro passo em um processo de desintegração econômica. Se não se avançar por esse caminho, a união não poderá se manter em sua forma atual.
P. Ao falar de seu famoso trilema, segundo o qual os países têm que escolher dois destes elementos: democracia, hiperglobalização e soberania nacional, você diz que em nenhum lugar isso é tão verdadeiro como a Europa. A qual destas pernas a Europa poderia renunciar?
R. Sempre fui a favor da integração política na Europa. Mas estou consciente de que esse caminho é mais difícil depois das decisões tomadas na crise do euro. Em lugar de ser abordada como uma oportunidade para construir instituições melhores, uns puseram a culpa nos outros, numa história de esforçados trabalhadores alemães frente a gregos indolentes e endividados. Isso inflamou as tensões nacionais e deu força aos populistas. A reposta a essa crise fez que a integração política agora seja mais difícil. O fundo de 750 bilhões [de euros; 4,37 trilhões de reais] tem como mudar isso? Tenho alguma esperança de que haverá a solidariedade de que a Europa necessita para avançar na integração política. Anima-me que a Alemanha tenha aderido. Estou mais otimista, mas ainda há muitas dúvidas.
P. A desindustrialização afeta a países como a Espanha, que assiste ao fechamento de importantes fábricas. E a crise atual agravará esse processo. Que respostas os Governos podem dar?
R. É muito difícil aumentar o emprego na indústria. Talvez seja impossível. Os empregos de qualidade que queremos não virão da indústria, e sim dos serviços. Para um país como a Espanha, virá do turismo, das finanças, da educação, da saúde… Será preciso pôr em marcha regulações que permitam ao mesmo tempo aumentar a produtividade e o emprego de qualidade.

“OS AUTOCRATAS COMO TRUMP RESPONDEM PIOR À PANDEMIA”

Dani Rodrik concorda quando Estados Unidos e Brasil são mencionados entre os países mais afetados pela pandemia. Tanto Donald Trump como Jair Bolsonaro são líderes populistas que se gabam de ter todas as respostas, algo que esta crise contribuiu para desmentir. “Não me surpreende que autocratas como Bolsonaro, Trump ou até certo ponto Boris Johnson estejam respondendo pior à crise do coronavírus”, responde. “Há anos publiquei uma pesquisa em que comparava países com sistemas mais democráticos e liberais com outros onde a classe política tinha maiores tendências populistas e autoritárias. A ideia de que esses regimes respondiam melhor a choques externos ao permitirem que seus líderes tomem decisões rápidas, por não terem que negociar e chegar a acordos, não se sustentava nas análises que fiz sobre crises ocorridas nos anos setenta e oitenta do século passado. Acredito que isto seja assim porque os sistemas mais democráticos usam melhor a informação, porque contam com mecanismos onde todos os setores da sociedade possam apresentar seus pontos de vista”, afirma o economista de origem turca. Ele não esconde sua avaliação negativa sobre líderes como o norte-americano Trump e o turco Recep Tayyip Erdogan, a quem criticou em diversos artigos por suas tendências autoritárias. “São regimes em que só importa a visão de uma pessoa. Nos EUA se viu como Trump desprezou a opinião dos cientistas. E isto é muito mais fácil de fazer em um regime autocrático”, afirma.

A mentalidade soviética nos EUA, de Pasternak a George Floyd - Izabella Tabarovsky (Wilson Center, WSJ)






The American Soviet Mentality
Collective demonization invades our culture
BY

THE WALL STREET JOURNAL, JUNE 15, 2020
The American Soviet Mentality

Russians are fond of quoting Sergei Dovlatov, a dissident Soviet writer who emigrated to the United States in 1979: “We continuously curse Comrade Stalin, and, naturally, with good reason. And yet I want to ask: who wrote four million denunciations?” It wasn’t the fearsome heads of Soviet secret police who did that, he said. It was ordinary people.
Collective demonizations of prominent cultural figures were an integral part of the Soviet culture of denunciation that pervaded every workplace and apartment building. Perhaps the most famous such episode began on Oct. 23, 1958, when the Nobel committee informed Soviet writer Boris Pasternak that he had been selected for the Nobel Prize in literature—and plunged the writer’s life into hell. Ever since Pasternak’s Doctor Zhivago had been first published the previous year (in Italy, since the writer could not publish it at home) the Communist Party and the Soviet literary establishment had their knives out for him. To the establishment, the Nobel Prize added insult to grave injury.
Within days, Pasternak was a target of a massive public vilification campaign. The country’s prestigious Literary Newspaper launched the assault with an article titled “Unanimous Condemnation” and an official statement by the Soviet Writers’ Union—a powerful organization whose primary function was to exercise control over its members, including by giving access to exclusive benefits and basic material necessities unavailable to ordinary citizens. The two articles expressed the union’s sense that in view of Pasternak’s hostility and slander of the Soviet people, socialism, world peace, and all progressive and revolutionary movements, he no longer deserved the proud title of Soviet Writer. The union therefore expelled him from its ranks.
A few days later, the paper dedicated an entire page to what it presented as the public outcry over Pasternak’s imputed treachery. Collected under the massive headline “Anger and Indignation: Soviet people condemn the actions of B. Pasternak” were a condemnatory editorial, a denunciation by a group of influential Moscow writers, and outraged letters that the paper claimed to have received from readers.
The campaign against Pasternak went on for months. Having played out in the central press, it moved to local outlets and jumped over into nonmedia institutions, with the writer now castigated at obligatory political meetings at factories, research institutes, universities, and collective farms. None of those who joined the chorus of condemnation, naturally, had read the novel—it would not be formally published in the USSR until 30 years later. But that did not stop them from mouthing the made-up charges leveled against the writer. It was during that campaign that the Soviet catchphrase “ne chital, no osuzhdayu”—“didn’t read, but disapprove”—was born: Pasternak’s accusers had coined it to protect themselves against suspicions of having come in contact with the seditious material. Days after accepting the Nobel Prize, Pasternak was forced to decline it. Yet demonization continued unabated.
Some of the greatest names in Soviet culture became targets of collective condemnations—composers Dmitry Shostakovich and Sergei Prokofiev; writers Anna Akhmatova and Iosif Brodsky; and many others. Bouts of hounding could go on for months and years, destroying people’s lives, health and, undoubtedly, ability to create. (The brutal onslaught undermined Pasternak’s health. He died from lung cancer a year and a half later.) But the practice wasn’t reserved for the greats alone. Factories, universities, schools, and research institutes were all suitable venues for collectively raking over the coals a hapless, ideologically ungrounded colleague who, say, failed to show up for the “voluntary-obligatory,” as a Soviet cliché went, Saturday cleanups at a local park, or a scientist who wanted to emigrate. The system also demanded expressions of collective condemnations with regards to various political matters: machinations of imperialism and reactionary forces, Israeli aggression against peaceful Arab states, the anti-Soviet international Zionist conspiracy. It was simply part of life.
Twitter has been used as a platform for exercises in unanimous condemnation for as long as it has existed. Countless careers and lives have been ruined as outraged mobs have descended on people whose social media gaffes or old teenage behavior were held up to public scorn and judged to be deplorable and unforgivable. But it wasn’t until the past couple of weeks that the similarity of our current culture with the Soviet practice of collective hounding presented itself to me with such stark clarity. Perhaps it was the specific professions and the cultural institutions involved—and the specific acts of writers banding together to abuse and cancel their colleagues—that brought that sordid history back.
On June 3, The New York Times published an opinion piece that much of its progressive staff found offensive and dangerous. (The author, Republican Sen. Tom Cotton, had called to send in the military to curb the violence and looting that accompanied the nationwide protests against the killing of George Floyd.) The targets of their unanimous condemnation, which was gleefully joined by the Twitter proletariat, which took pleasure in helping the once-august newspaper shred itself to pieces in public, were New York Times’ opinion section editor James Bennet, who had ultimate authority for publishing the piece, though he hadn’t supervised its editing, and op-ed staff editor and writer Bari Weiss (a former Tablet staffer).
Weiss had nothing to do with editing or publishing the piece. On June 4, however, she posted a Twitter thread characterizing the internal turmoil at the Times as a “civil war” between the “(mostly young) wokes” who “call themselves liberals and progressives” and the “(mostly 40+) liberals” who adhere to “the principles of civil libertarianism.” She attributed the behavior of the “wokes” to their “safetyism” worldview, in which “the right of people to feel emotionally and psychologically safe trumps what were previously considered core liberal values, like free speech.”
It was just one journalist’s opinion, but to Weiss’ colleagues her semi-unflattering description of the split felt like an intolerable attack against the collective. Although Weiss did not name anyone in either the “woke” or the older “liberal” camp, her younger colleagues felt collectively attacked and slandered. They lashed out. Pretty soon, Weiss was trending on Twitter.
As the mob’s fury kicked into high gear, the language of collective outrage grew increasingly strident, even violent. Goldie Taylor, writer and editor-at-large at The Daily Beast, queried in a since-deleted tweet why Weiss “still got her teeth.” With heads rolling at the Times—James Bennet resigned, and deputy editorial page editor James Dao was reassigned to the newsroom—one member of the staff asked for Weiss to be fired for having bad-mouthed “her younger newsroom colleagues” and insulted “all of our foreign correspondents who have actually reported from civil wars.” (It was unclear how she did that, other than having used the phrase “civil war” as a metaphor.)
Mehdi Hasan, a columnist with the Intercept, opined to his 880,000 Twitter followers that it would be strange if Weiss retained her job now that Bennet had been removed. He suggested that her thread had “mocked” her nonwhite colleagues. (It did not.) In a follow-up tweet Hasan went further, suggesting that to defend Weiss would make one a bad anti-racist—a threat based on a deeply manipulated interpretation of Weiss’ post, yet powerful enough to stop his followers from making the mistake.
All of us who came out of the Soviet system bear scars of the practice of unanimous condemnation, whether we ourselves had been targets or participants in it or not. It is partly why Soviet immigrants are often so averse to any expressions of collectivism: We have seen its ugliest expressions in our own lives and our friends’ and families’ lives. It is impossible to read the chastising remarks of Soviet writers, for whom Pasternak had been a friend and a mentor, without a sense of deep shame. Shame over the perfidy and lack of decency on display. Shame at the misrepresentations and perversions of truth. Shame at the virtue signaling and the closing of rank. Shame over the momentary and, we now know, fleeting triumph of mediocrity over talent.
It is also impossible to read them without the nagging question: How would I have behaved in their shoes? Would I, too, have succumbed to the pressure? Would I, too, have betrayed, condemned, cast a stone? I used to feel grateful that we had left the USSR before Soviet life had put me to that test. How strange and devastating to realize that these moral tests are now before us again in America.
In a collectivist culture, one hoped-for result of group condemnations is control—both over the target of abuse and the broader society. When sufficiently broad levels of society realize that the price of nonconformity is being publicly humiliated, expelled from the community of “people of goodwill” (another Soviet cliché) and cut off from sources of income, the powers that be need to work less hard to enforce the rules.
But while the policy in the USSR was by and large set by the authorities, it would be too simplistic to imagine that those below had no choices, and didn’t often join in these rituals gladly, whether to obtain some real or imagined benefit for themselves, or to salve internal psychic wounds, or to take pleasure in the exercise of cruelty toward a person who had been declared to be a legitimate target of the collective.
According to Olga Ivinskaya, who was Pasternak’s lover and companion during those years, the party brass, headed by Nikita Khrushchev, was only partly to blame for the nonpublication of Doctor Zhivago. The literary establishment played an important role as well. Reading over her recollections of the meetings at the Writers’ Union, it is hard not to suspect that some of its members were motivated not so much by fear of reprisals or ideological fervor but by simple conformity and professional jealousy. Some, I imagine, would have only been too happy to put spokes in the wheels of a writer whose novel—banned at home, but published abroad—was being translated into dozens of languages and who had been awarded the world’s most prestigious literary prize.
For the regular people—those outside prestigious cultural institutions—participation in local versions of collective hounding was not without its benefits, either. It could be an opportunity to eliminate a personal enemy or someone who was more successful and, perhaps, occupied a position you craved. You could join in condemning a neighbor at your cramped communal flat, calculating that once she was gone, you could add some precious extra square meters to your living space.
And yet even among this dismal landscape, there were those who refused to join in this ugly rite. A few writers, for example, refused to participate in demonizing Pasternak. And is it karma or just a coincidence that most of these people—many of them dissidents, who were outside the literary establishment—remain beloved among Russian readers today, while the writings of the insiders, ones who betrayed and condemned, have been forgotten?
The mobs that perform the unanimous condemnation rituals of today do not follow orders from above. But that does not diminish their power to exert pressure on those under their influence. Those of us who came out of the collectivist Soviet culture understand these dynamics instinctively. You invoked the “didn’t read, but disapprove” mantra not only to protect yourself from suspicions about your reading choices but also to communicate an eagerness to be part of the kollektiv—no matter what destructive action was next on the kollektiv’s agenda. You preemptively surrendered your personal agency in order to be in unison with the group. And this is understandable in a way: Merging with the crowd feels much better than standing alone.
Those who remember the Soviet system understand the danger of letting the practice of collective denunciation run amok. But you don’t have to imagine an American Stalin in the White House to see where first the toleration, then the normalization, and now the legitimization and rewarding of this ugly practice is taking us.
Americans have discovered the way in which fear of collective disapproval breeds self-censorship and silence, which impoverish public life and creative work. The double life one ends up leading—one where there is a growing gap between one’s public and private selves—eventually begins to feel oppressive. For a significant portion of Soviet intelligentsia (artists, doctors, scientists), the burden of leading this double life played an important role in their deciding to emigrate.
Those who join in the hounding face their own hazards. The more loyalty you pledge to a group that expects you to participate in rituals of collective demonization, the more it will ask of you and the more you, too, will feel controlled. How much of your own autonomy as a thinking, feeling person are you willing to sacrifice to the collective? What inner compromises are you willing to make for the sake of being part of the group? Which personal relationships are you willing to give up?
From my vantage point, this cultural moment in these United States feels incredibly precarious. The practice of collective condemnation feels like an assertion of a culture that ultimately tramples on the individual and creates an oppressive society. Whether that society looks like Soviet Russia, or Orwell’s Nineteen Eighty-Four, or Castro’s Cuba, or today’s China, or something uniquely 21st-century American, the failure of institutions and individuals to stand up to mob rule is no longer an option we can afford.

Izabella Tabarovsky is a researcher with the Kennan Institute at the Wilson Center focusing on the politics of historical memory in the former Soviet Union.

Lima Barreto e o cipó mortífero da burocracia - Arnaldo Godoy

EMBARGOS CULTURAIS

Lima Barreto, M. J. Gonzaga de Sá e o cipó mortífero da burocracia


Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá é um romance de crítica à inutilidade de boa parte das intervenções burocráticas. Há nesse interessante livro de Lima Barreto alguns outros assuntos que se sobrepõem, a exemplo de uma discussão sobre a natureza e o destino das biografias, da imprestabilidade dos emblemas públicos, do papel da imprensa e dos jornais nas cidades do interior (Gazeta de UberabaA Pesquisa de Cascadura), do socialismo, da crítica literária e da filosofia, nesse último caso com alusões a Nietzsche.
O leitor pode ter a impressão de que os temas se entrelaçam como uma extensa crônica. A cidade do Rio de Janeiro, como recorrente nos textos de Lima Barreto, é personagem com vida própria. Tem fisionomia, que expressa muitos lugares, também com vida própria, ainda que antípodas: Méier e Copacabana, Rio Comprido e Laranjeiras, São Cristóvão e Botafogo, Saúde, Gamboa, Prainha, Campo de Santana, Catete, Gávea e Jardim Botânico. Monteiro Lobato, que comentou o livro, observou que o Rio estava inteiro naquela prosa, “nas paisagens naturais, na paisagem urbana, na população caleidoscópica”.
Lima Barreto sobressai-se, ainda na impressão de Monteiro Lobato, como “um revoltado, mas um revoltado em período manso de revolta”. Em Gonzaga de Sá não há cólera, há ironia. Essa última – ironia – é para sensíveis e inteligentes o que força física e intimidação são para néscios e limítrofes. Lima Barreto era irônico, no sentido mesmo socrático da expressão. Contemplava um mundo, segundo Lobato, “sentado num café e amolentado por um dia de calor”. Em carta dirigida a Godofredo Rangel, e datada de 1º de outubro de 1916, Lobato elogiava Lima Barreto, que reputava como “facílimo na língua, engenhoso, fino, dá [dava] impressão de escrever sem torturamento – ao modo das torneiras que fluem uniformemente a sua corda d´água”. Conta-nos Francisco de Assis Barbosa que Lima Barreto possuía dois livros de Lobato em sua biblioteca: Urupês e Negrinha.
O narrador inicia Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá afirmando que publicava pensamentos e apontamentos de um tal Augusto Machado, que conhecera Gonzaga de Sá, disciplinado funcionário de imaginária Secretaria dos Cultos. É Lima que usa Machado para falar do Gonzaga. Manuel Joaquim Gonzaga de Sá (esse o nome completo) era bacharel em letras pelo imponente Colégio Imperial D. Pedro II. O narrador nos conta que Gonzaga tinha boas luzes e sólidos princípios de educação e de instrução. Era um “empregado assíduo e razoável trabalhador”. No dia da proclamação da República estava sozinho em sua sala, redigindo um decreto. Lia Fustel de Coulanges, o historiador francês que se ocupou das instituições religiosas do mundo greco-romano.
Gonzaga era “um velho alto, já não de todo grisalho, mas avançado em idade, todo seco, com um longo pescoço de ave, um grande ‘gogó’, certa macieza na voz grave, tendo uns longes de doçura e sofrimento no olhar enérgico”. Usava um “pince-nez”, contemplando o mundo “do fundo do abismo de sua banca burocrática”. Era cético, regalista, voltairiano, antimonástico, mas o narrador diz que não era maçom. Machado e Sá se conheceram quando aquele procurou esse último, a propósito de um gravíssimo problema de interpretação que se enfrentava. Um problema muito sério. Vejamos.
O Bispo de Tocantins chegou no porto de Belém e, ao ser recebido, da fortaleza ouviu apenas 17 tiros de canhão. A eminência religiosa não se conformou, justamente porque a ele se deviam 18 tiros, e não 17. A falta de um tiro era negligência imperdoável. Deveria ser castigada com rigor. A reclamação do bispo chegou formalmente ao também imaginário Ministro dos Cultos. Ouviu-se o Ministério do Exterior, que estudou o direito comparado, ilustrando seus argumentos inconclusos com os entendimentos que China e Montenegro tinham a respeito do assunto. Discutiu-se intensamente.
O Barão de Ingá, secretário-geral dos Cultos, também atuou na questão. O barão passava os dias e as horas na repartição apontando um lápis, e depois outro, o tempo todo. Segundo o narrador, “era um gasto de lápis que nunca mais se acabava; mas o Brasil é rico e aprecia o serviço de seus filhos”. Pode haver alguma semelhança com o Barão de Itaipu, que lhe aplicou exames, e que ostentava o título de nobreza, mesmo quando os títulos nobiliárquicos foram abolidos, na impressão de Lília Moritz Schwarz, autora de biografia definitiva de Lima Barreto.
Gonzaga de Sá é personagem importante no deslinde da complicada e importante questão. É o exemplo acabado de como a burocracia mata talentos. Era subordinado a um chefe da seção de “Alfaias e Paramentos”, que leu vagarosamente o processo, considerou bem o caso e sugeriu que ouvissem a Secretaria da Propaganda, em Roma. Boa decisão.
Há também um Dr. Xisto Beldroegas, o burocrata mais típico do romance. Bacharel em Direito, colega de Gonzaga na secretaria. Xisto “caminha devagar e preocupado, sombriamente preocupado”. Era o “depositário das tradições contenciosas da Secretaria dos Cultos”. De acordo com o narrador, Xisto era “apaixonado pela legislação cultual do Brasil, vivia obcecado com os avisos, portarias, leis, decretos e acórdãos”. Conta-se que passou por uma crise de nervos porque não encontrou no arquivo a legislação que fixava o número de setas que atravessavam a imagem de São Sebastião. Duas, três, uma? O problema era sério. Andava atormentado porque não havia lei que fixava o número de dias de chuva que havia ao longo do ano. O Congresso e os ministros, segundo Xisto, de fato, não prestavam, ao deixarem de regular esse fato importante (chuva) na vida das pessoas.
A solução salomônica para o complicado caso das salvas de canhão para o Bispo (17 ou 18) veio do Ministro da Guerra: 17 tiros e meio. Como? O último tiro seria dado por uma arma menor, o que significaria exatamente a metade do tiro disputado. Uma grave questão recebia uma pá de cal. A máquina do Estado funcionava, para alegria do contribuinte.
A tônica do livro é a crítica irônica à burocracia. Era um mundo no qual dava-se importância à presença em congresso mundial sobre a vadiagem de cães, que se realizaria na Itália. Assunto grave. Jovens talentosos eram cooptados pela carreira funcional, encalacravam-se na “depressão mental do ambiente”. Com os anos, prossegue, “esfriam, não leem mais, embotam-se e desandam a conversar”. O narrador conta a história de um escriturário que conhecia línguas (entre elas o hebraico). O pai, que fora rico, o mandou para a Europa, onde estudou crítica religiosa e antigas línguas sagradas. Sem a fortuna da família, perdida, retornou para o Rio, sábio, sem saber o que fazer da sabedoria. Fez concurso. Tornou-se amanuense. “Ficou como um escolar que sabe geometria, a viver numa aldeia de gafanhotos”. Morreu 15 anos depois. Os colegas lembravam que “tinha uma boa letra”. E nada mais. Amou o carimbo.
Lobato, em carta a Lima Barreto, datada de 23 de novembro de 1919, afirmava que o livro não vendia por causa do título, que não era psicologicamente comercial: as pessoas pensavam que era a biografia de um ilustre desconhecido. Remendo que era um ilustre incógnito que habita um pouco em todos aqueles que de algum modo se deixam enlear no “cipó mortífero da burocracia”, expressão do Lobato, que dividiu com Lima Barreto aversão mineral e orgânica para com as instituições de fachada.
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 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.

sábado, 20 de junho de 2020

Multilateralismo: resposta necessária para enfrentar a pandemia - Renato Zerbini Ribeiro Leão (Nexo)

Multilateralismo: resposta necessária para enfrentar a pandemia

Nas relações internacionais, o termo multilateralismo é utilizado para se referir ao trabalho conjunto de vários países sobre um determinado tema. Refere-se, portanto, a um sistema coordenado de interações entre três ou mais países de acordo a certos princípios de conduta. Como política, trata-se de uma ação deliberada por um país, em coordenação com outros, em prol da realização de objetivos em áreas de interesses comuns. Na filosofia política, o inverso de multilateralismo é o unilateralismo.
O mundo emergido da Segunda Guerra Mundial é reconstruído sobre seis pilares consagrados como os princípios gerais das relações internacionais contemporâneas e do direito internacional vigente. Estes estão inclusive elencados no artigo segundo da Carta de São Francisco, tratado internacional que cria a Organização das Nações Unidas, a instituição que poderia ser designada como o símbolo maior do multilateralismo. São eles: a igualdade soberana entre os países; a não interferência nos assuntos internos dos países; a proibição do uso da força entre países (salvo exceções como legítima defesa e sua autorização pelo Conselho de Segurança da ONU, possibilidades estas previstas no capítulo 6 da Carta da ONU intitulado “Ação relativa a ameaças à paz, ruptura da paz e atos de agressão”); a solução pacífica de controvérsias entre países; a cooperação internacional; e a afirmação dos direitos humanos. Esses princípios se consagram para preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra e reafirmar a fé nos direitos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano, objetivando a promoção do progresso social e melhores condições de vida numa liberdade planetária mais ampla.
Desde 24 de outubro de 1945, data de criação da ONU, várias ações foram tomadas consagrando e sacramentando esses seis princípios gerais. Mais recentemente, especialmente a partir desta segunda década do século 21, reiterou-se a necessidade de acelerar a ação sobre a construção de um mundo mais equitativo e sustentável, com fulcro especialmente em duas estratégias-chave: a Agenda 2030 e seus 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

Ora, não se necessita ser alguém especialmente dotado de profundo espírito humanitário ou elevado conhecimento científico para entender os benefícios múltiplos para a humanidade em seu conjunto e para o planeta em sua ampla dimensão, incluindo fauna e flora, caso a meta ambiciosa de alcance desses objetivos seja atingida. Pois é notável que os desafios globais de hoje, tais como a mudança climática, a pobreza, a desigualdade ou a migração, afetam a tudo e a todos, incluindo países pobres e ricos, sem nenhum tipo de discriminação. Ademais, os desastres naturais, o terrorismo, a guerra cibernética e as pandemias de saúde estão aumentando aceleradamente.
Prova disso está no atual desafio de combate e contenção à pandemia da covid-19. A cooperação internacional entre países, organizações internacionais e indivíduos é essencial para o logro eficaz e rápido da vitória da humanidade sobre o vírus. Tal esforço requer uma ação imediata e coletiva, cujo êxito somente será palpável se todos esses três atores isoladamente e em seu conjunto puserem seus grãos de areia. Finalmente, o futuro de todos estes está inexoravelmente conectado. Dias melhores para as pessoas e o planeta passam pela defesa dos direitos humanos, manutenção da paz e promoção do desenvolvimento sustentável. Para tanto, o multilateralismo é o vetor ideal.
No contexto da cooperação internacional em prol de uma solução duradoura, eficaz e sustentável à pandemia que carcome a humanidade, muitos países dos distintos continentes somam-se em esforços para enfrentar tal realidade. Recentemente, dois chamam a atenção: um trabalho coordenado conjunto para a descoberta de uma vacina cabal e uma coalizão mundial para planejar e levar adiante uma reconstrução orquestrada da economia mundial. Em um cenário global multilateral e à luz da cooperação internacional, tais esforços serão mais facilmente alcançados. Assim como todos e quaisquer desafios que se proponha o ser humano alcançar.
Contrariando a lógica da sobrevivência planetária e humana, o multilateralismo enfrenta uma profunda crise. Há uma notável diminuição do apoio concertado da sociedade internacional ao mesmo tempo em que se nota um aumento de opinião exacerbada, tendenciosa ou agressiva em seu desfavor. Assim mesmo, o nacionalismo fútil e o protecionismo tosco desafiam a virtude da cooperação internacional, obrando na direção oposta ao multilateralismo.
Observa-se suntuosamente que fundamentalismos ideológicos, políticos e religiosos têm impactos centrais sobre o mundo que nos cerca: vários de nossos amigos, colegas de profissão, familiares, nossas culturas e sociedades já estão por eles afetados, seja por simples interesse vulgar ou diferentes psicopatias. 
O fundamentalismo não é um fenômeno que se aproxima, pois é algo que já está entre nós. Fred Halliday nos alertou que os fundamentalistas têm uma visão bastante clara e determinada do que são. Estes combinam, sem necessária relação estreita entre eles, dois elementos: a invocação de um retorno aos textos sagrados lidos literalmente e a aplicação dessas doutrinas na vida social e política. Por isso, estes têm no multilateralismo um foco de combate. Trata-se de uma oposição certeira e vigorosa à visão doentia e insana de todo o tipo de fundamentalismo.
O multilateralismo é um ambiente propício à convivência harmônica, pacífica e sustentável entre diversas culturas, países e povos.

Renato Zerbini Ribeiro Leão é PhD em direito internacional e relações internacionais. Presidente do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU.

Será que vai ter golpe? - Fernão Lara Mesquita

Será que vai ter golpe?

Fernão Lara Mesquita 
16 de junho de 2020 § 32 Comentários
É sempre aquela encruzilhada chave do catolicismo: “Pequei por pensamentos, palavras … e obras”. É nessa reticência que se instala a inversão fatal. O pecado em pensamento conduz diretamente à tortura: “Pensou ou não pensou”? Como prová-lo? Já o pecado em palavras está aí para produzir “a prova” do pecado em pensamento. Mas e os atos? Ora, os atos perdoa-se com meia dúzia de ave-marias. Não ha que perder muito tempo com eles.
Todo mundo tem o direito de desejar o fechamento do Congresso, do Supremo e do que mais quiser e de expressar esse desejo. Só é proibido agir para isso com o uso de força, o que está totalmente fora do alcance do portador de cartazes em manifestações ou de quem bate palmas para eles. O STF agir contra essas pessoas, isto sim está expressamente proibido por lei. Quando é o STF que viola a lei tem-se, de saída, uma afronta institucionalizada contra o estado de direito. Mas quando ele passa a agir sem provocação o estado de direito é literalmente aniquilado. Quando passa por cima das condições dentro das quais é lícito acionar contra alguém a arma mais forte do sistema nenhum outro direito do cidadão permanece em pé. 
Ha 15 meses o sr. Dias Toffoli, monocraticamente, instalou o vale tudo ao censurar uma revista por expor seus podres. Subverteu, com isto, todas as condições dentro das quais a arma do STF pode ser acionada. E fez jurisprudência. Desde então cada ministro “ofendido” por um “pecador em palavras” está autorizado a agir para fazer justiça com as próprias mãos sucessivamente como polícia, como promotor e como juiz da própria causa. Não é preciso lei nem figura do Código Penal que defina a ofensa. Nem denuncia pelo Ministério Público, nem endereçamento ao tribunal definido pela lei, nem sorteio de juiz, nem indiciamento, nem defesa para os acusados.
De que outra ditadura têm medo, então, os nossos alarmados defensores do “estado democrático de direito”? 
O divisor de águas é muito simples e claro: ha democracia quando o povo manda no governo e este só tem os poderes que o povo explicitamente lhe conceder. Mas nas seções de mutuo endosso entre representantes das corporações beneficiadas por ela que a imprensa enviesada exibe à exaustão não há verdade nem democracia fora da Constituição de 1988. 
Mentira! 
O caráter democrático de uma constituição não se define por quais privilégios determinados grupos de poder inscrevem nela e sim por quais meios ela é pactuada com quem vai acata-la. Sem o referendo formal e explícito dado pelo povo, única fonte de legitimação do poder numa democracia, que nos Estados Unidos levou 13 anos de debates para ser alcançado e no Brasil nunca chegou sequer a ser proposto, uma constituição não passa da “verdade revelada”, ou seja, da mentira da vez a que sempre se recorreu para justificar sistemas de opressão.
Agora anda em voga a questão das listas tríplices. “Sem lista tríplice não ha independência, nem democracia, nem transparência”, dizem nossos “democratas”. Certíssimo! Mas independência do que em relação a quem? Do Estado em relação ao povo, única fonte de legitimação do poder que, nas democracias, elege diretamente os seus promotores e demais encarregados de fiscalizar o governo assim como os conselhos gestores de suas escolas públicas. 
Não é de um óbvio ululante que a cadeia de lealdades que as listas tríplices macunaímicas estabelecem – primeiro do servidor em detrimento do servido com a corporação que seleciona os três nomes passiveis de serem transformados em deuses e depois de todos com o suposto fiscalizado a quem cabe a escolha final – são a própria descrição da tragédia do Brasil?
Não seria a cegueira da imprensa para essa obviedade decorrência do fato de haver gente demais nas redações desfrutando pessoalmente ou pela interseção de “cônjuge, companheiro ou parente em linha reta ou colateral, por consanguinidade ou afinidade, até o terceiro grau” dos privilégios do emprego estatal que por isso contempla a justiça desses privilégios com a mesma boa vontade com que os ministros do STF contemplam os seus? 
De que outro modo é possível explicar que com a ajuda de R$ 600 reais reduzida a 200 ou 300 e por apenas mais dois ou três meses por falta de dinheiro e metade da população desempregada ou subempregada não ocorra a nenhuma grande redação brasileira por em pauta os salários, a indemissibilidade, as aposentadorias, as lagostas e os vinhos tetra-campeões que nem as pandemias derrubam? Ou as reportagens que expliquem como conseguem as excelências que tantas loas cantam ao “estado de direito”, mesmo com o gordo salário que consta dos seus holleriths, manter suas dachas internacionais em euros ou em dólares? 
A única invocação da constituição brasileira interessada no Brasil é a que vier para reivindicar a reforma que ponha o País Oficial na dependência estrita da sua constante re-confirmação pelo País Real. E essa reforma começa por extirpar dela tudo que não diga respeito a todos os brasileiros sem nenhuma exceção. Vender privilégios medievais como democracia e uma privilegiatura segura o bastante para arrotar desenfreadamente sua arrogância como “estado de direito” não engana ninguém.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Política externa e diplomacia brasileira no desenvolvimento nacional: perspectiva global e comparada - Paulo Roberto de Almeida

Um dos meus trabalhos que combina história econômica, sociologia do desenvolvimento, política externa e diplomacia brasileira, como sempre em apoio a palestra online para estudantes e professores: 

3699. “Política externa e diplomacia brasileira no desenvolvimento nacional: perspectiva global e comparada”, Brasília, 19 junho 2020, 26 p. Síntese histórica sobre o processo brasileiro de desenvolvimento econômico desde o final do Império, com referências à política externa em três fases desse longo período, para servir como texto de apoio a palestra, com base no trabalho n. 3662 (“Desenvolvimento brasileiro, do século XIX à atualidade: economia, pobreza, trabalho e educação em perspectiva histórica”). Disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/43388249/Politica_externa_e_diplomacia_brasileira_no_desenvolvimento_nacional_perspectiva_global_e_comparada_2020_).

Política externa e diplomacia brasileira no desenvolvimento nacional: perspectiva global e comparada

Paulo Roberto de Almeida


Sumário: 
1. Introdução: a natureza do exercício
2. Do Império à velha República: o lento desenvolvimento social
3. A modernização conservadora sob tutela militar: 1930-1985
4. As insuficiências sociais da democracia política: 1985-2020
5. Dúvidas e questionamentos sobre o futuro: o que falta ao Brasil?
5.1. Estabilidade macroeconômica (políticas macro e setoriais);
5.2. Competição microeconômica (fim de monopólios e carteis);
5.3. Boa governança (reforma das instituições nos três poderes);
5.4. Alta qualidade do capital humano (revolução educacional);
5.5. Abertura ampla a comércio e investimentos internacionais.
6. Conclusões: o que falta ao Brasil?


1. Introdução: a natureza profunda de uma transição nunca acabada
Não sou historiador, nem sou economista, apenas sociólogo, mas sempre gostei de refletir historicamente sobre as frustrações de nosso desenvolvimento econômico e social. Estas são muitas e evidentes, pois do contrário já seríamos uma nação materialmente mais avançada, com menor grau de iniquidades sociais do que o cenário que pode ser constatado por uma análise perfunctória de nossos indicadores sociais e econômicos per capita. Como modesto aprendiz de sociologia histórica, sempre fui propenso a analisar essas insuficiências no contexto mais vasto do processo mundial de desenvolvimento econômico dos povos e nações desde o final do século XIX, ou seja, desde quando se confirmou aquela tendência que os historiadores econômicos chamam de Grande Divergência, no bojo da primeira revolução industrial. Este é o contexto básico, historicamente enquadrado, no qual se situa a emergência do Brasil, enquanto Estado independente, na conjuntura global do sistema internacional, ou seja, aquele da primeira revolução industrial iniciada na Grã-Bretanha de meados do século XVIII e já plenamente configurada como a nação mais avançada do planeta por ocasião das guerras napoleônicas.
Ora, o mundo já se encontra na quarta ou na quinta revolução industrial e caminha para um período de relativa convergência entre os diferentes grupos de países, mesmo algumas antigas colônias dos impérios europeus da era moderna. A convergência é mais evidente no caso da Ásia Pacífico do que em outros países da periferia... (...)
(...)

6. Conclusões: o que falta ao Brasil? 
Os elementos sistêmicos, ou estruturais, alinhados nesta última seção são os que faltam ao Brasil para que ele se converta em país desenvolvido, com uma diminuição sensível dos elevados níveis, altamente iníquos, de desigualdade social e de pobreza não justificadas por falta de recursos ou de um Estado funcional. Ou seja, como já disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o Brasil não é um país pobre, mas sim um país com muitos pobres. Isto é evidente tendo em conta seu nível relativamente satisfatório de industrialização, o avanço de sua agricultura, que se tornou altamente competitiva no plano mundial, e igualmente no plano de sua organização estatal, bastante moderna no contexto dos países emergentes, o que justificaria, uma etapa de prosperidade social e patamares de renda e de desenvolvimento humano relativamente satisfatórios, o que, no entanto, não se confirma na prática. Não se poderá lograr as reformas apontadas simultaneamente, sobretudo em meio à pandemia que afeta o mundo inteiro atualmente. Mas não cabe perder de vista o que é relevante para o futuro do país. Meu foco continua dando ênfase a esses objetivos estratégicos para o futuro da nação. 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 19/06/2020

Ler a íntegra neste link: