Multilateralismo: resposta necessária para enfrentar a pandemia
Nas relações internacionais, o termo multilateralismo é utilizado para se referir ao trabalho conjunto de vários países sobre um determinado tema. Refere-se, portanto, a um sistema coordenado de interações entre três ou mais países de acordo a certos princípios de conduta. Como política, trata-se de uma ação deliberada por um país, em coordenação com outros, em prol da realização de objetivos em áreas de interesses comuns. Na filosofia política, o inverso de multilateralismo é o unilateralismo.
O mundo emergido da Segunda Guerra Mundial é reconstruído sobre seis pilares consagrados como os princípios gerais das relações internacionais contemporâneas e do direito internacional vigente. Estes estão inclusive elencados no artigo segundo da Carta de São Francisco, tratado internacional que cria a Organização das Nações Unidas, a instituição que poderia ser designada como o símbolo maior do multilateralismo. São eles: a igualdade soberana entre os países; a não interferência nos assuntos internos dos países; a proibição do uso da força entre países (salvo exceções como legítima defesa e sua autorização pelo Conselho de Segurança da ONU, possibilidades estas previstas no capítulo 6 da Carta da ONU intitulado “Ação relativa a ameaças à paz, ruptura da paz e atos de agressão”); a solução pacífica de controvérsias entre países; a cooperação internacional; e a afirmação dos direitos humanos. Esses princípios se consagram para preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra e reafirmar a fé nos direitos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano, objetivando a promoção do progresso social e melhores condições de vida numa liberdade planetária mais ampla.
Desde 24 de outubro de 1945, data de criação da ONU, várias ações foram tomadas consagrando e sacramentando esses seis princípios gerais. Mais recentemente, especialmente a partir desta segunda década do século 21, reiterou-se a necessidade de acelerar a ação sobre a construção de um mundo mais equitativo e sustentável, com fulcro especialmente em duas estratégias-chave: a Agenda 2030 e seus 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Ora, não se necessita ser alguém especialmente dotado de profundo espírito humanitário ou elevado conhecimento científico para entender os benefícios múltiplos para a humanidade em seu conjunto e para o planeta em sua ampla dimensão, incluindo fauna e flora, caso a meta ambiciosa de alcance desses objetivos seja atingida. Pois é notável que os desafios globais de hoje, tais como a mudança climática, a pobreza, a desigualdade ou a migração, afetam a tudo e a todos, incluindo países pobres e ricos, sem nenhum tipo de discriminação. Ademais, os desastres naturais, o terrorismo, a guerra cibernética e as pandemias de saúde estão aumentando aceleradamente.
Prova disso está no atual desafio de combate e contenção à pandemia da covid-19. A cooperação internacional entre países, organizações internacionais e indivíduos é essencial para o logro eficaz e rápido da vitória da humanidade sobre o vírus. Tal esforço requer uma ação imediata e coletiva, cujo êxito somente será palpável se todos esses três atores isoladamente e em seu conjunto puserem seus grãos de areia. Finalmente, o futuro de todos estes está inexoravelmente conectado. Dias melhores para as pessoas e o planeta passam pela defesa dos direitos humanos, manutenção da paz e promoção do desenvolvimento sustentável. Para tanto, o multilateralismo é o vetor ideal.
No contexto da cooperação internacional em prol de uma solução duradoura, eficaz e sustentável à pandemia que carcome a humanidade, muitos países dos distintos continentes somam-se em esforços para enfrentar tal realidade. Recentemente, dois chamam a atenção: um trabalho coordenado conjunto para a descoberta de uma vacina cabal e uma coalizão mundial para planejar e levar adiante uma reconstrução orquestrada da economia mundial. Em um cenário global multilateral e à luz da cooperação internacional, tais esforços serão mais facilmente alcançados. Assim como todos e quaisquer desafios que se proponha o ser humano alcançar.
Contrariando a lógica da sobrevivência planetária e humana, o multilateralismo enfrenta uma profunda crise. Há uma notável diminuição do apoio concertado da sociedade internacional ao mesmo tempo em que se nota um aumento de opinião exacerbada, tendenciosa ou agressiva em seu desfavor. Assim mesmo, o nacionalismo fútil e o protecionismo tosco desafiam a virtude da cooperação internacional, obrando na direção oposta ao multilateralismo.
Observa-se suntuosamente que fundamentalismos ideológicos, políticos e religiosos têm impactos centrais sobre o mundo que nos cerca: vários de nossos amigos, colegas de profissão, familiares, nossas culturas e sociedades já estão por eles afetados, seja por simples interesse vulgar ou diferentes psicopatias.
O fundamentalismo não é um fenômeno que se aproxima, pois é algo que já está entre nós. Fred Halliday nos alertou que os fundamentalistas têm uma visão bastante clara e determinada do que são. Estes combinam, sem necessária relação estreita entre eles, dois elementos: a invocação de um retorno aos textos sagrados lidos literalmente e a aplicação dessas doutrinas na vida social e política. Por isso, estes têm no multilateralismo um foco de combate. Trata-se de uma oposição certeira e vigorosa à visão doentia e insana de todo o tipo de fundamentalismo.
O multilateralismo é um ambiente propício à convivência harmônica, pacífica e sustentável entre diversas culturas, países e povos.
Renato Zerbini Ribeiro Leão é PhD em direito internacional e relações internacionais. Presidente do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU.