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domingo, 21 de junho de 2020

Lima Barreto e o cipó mortífero da burocracia - Arnaldo Godoy

EMBARGOS CULTURAIS

Lima Barreto, M. J. Gonzaga de Sá e o cipó mortífero da burocracia


Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá é um romance de crítica à inutilidade de boa parte das intervenções burocráticas. Há nesse interessante livro de Lima Barreto alguns outros assuntos que se sobrepõem, a exemplo de uma discussão sobre a natureza e o destino das biografias, da imprestabilidade dos emblemas públicos, do papel da imprensa e dos jornais nas cidades do interior (Gazeta de UberabaA Pesquisa de Cascadura), do socialismo, da crítica literária e da filosofia, nesse último caso com alusões a Nietzsche.
O leitor pode ter a impressão de que os temas se entrelaçam como uma extensa crônica. A cidade do Rio de Janeiro, como recorrente nos textos de Lima Barreto, é personagem com vida própria. Tem fisionomia, que expressa muitos lugares, também com vida própria, ainda que antípodas: Méier e Copacabana, Rio Comprido e Laranjeiras, São Cristóvão e Botafogo, Saúde, Gamboa, Prainha, Campo de Santana, Catete, Gávea e Jardim Botânico. Monteiro Lobato, que comentou o livro, observou que o Rio estava inteiro naquela prosa, “nas paisagens naturais, na paisagem urbana, na população caleidoscópica”.
Lima Barreto sobressai-se, ainda na impressão de Monteiro Lobato, como “um revoltado, mas um revoltado em período manso de revolta”. Em Gonzaga de Sá não há cólera, há ironia. Essa última – ironia – é para sensíveis e inteligentes o que força física e intimidação são para néscios e limítrofes. Lima Barreto era irônico, no sentido mesmo socrático da expressão. Contemplava um mundo, segundo Lobato, “sentado num café e amolentado por um dia de calor”. Em carta dirigida a Godofredo Rangel, e datada de 1º de outubro de 1916, Lobato elogiava Lima Barreto, que reputava como “facílimo na língua, engenhoso, fino, dá [dava] impressão de escrever sem torturamento – ao modo das torneiras que fluem uniformemente a sua corda d´água”. Conta-nos Francisco de Assis Barbosa que Lima Barreto possuía dois livros de Lobato em sua biblioteca: Urupês e Negrinha.
O narrador inicia Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá afirmando que publicava pensamentos e apontamentos de um tal Augusto Machado, que conhecera Gonzaga de Sá, disciplinado funcionário de imaginária Secretaria dos Cultos. É Lima que usa Machado para falar do Gonzaga. Manuel Joaquim Gonzaga de Sá (esse o nome completo) era bacharel em letras pelo imponente Colégio Imperial D. Pedro II. O narrador nos conta que Gonzaga tinha boas luzes e sólidos princípios de educação e de instrução. Era um “empregado assíduo e razoável trabalhador”. No dia da proclamação da República estava sozinho em sua sala, redigindo um decreto. Lia Fustel de Coulanges, o historiador francês que se ocupou das instituições religiosas do mundo greco-romano.
Gonzaga era “um velho alto, já não de todo grisalho, mas avançado em idade, todo seco, com um longo pescoço de ave, um grande ‘gogó’, certa macieza na voz grave, tendo uns longes de doçura e sofrimento no olhar enérgico”. Usava um “pince-nez”, contemplando o mundo “do fundo do abismo de sua banca burocrática”. Era cético, regalista, voltairiano, antimonástico, mas o narrador diz que não era maçom. Machado e Sá se conheceram quando aquele procurou esse último, a propósito de um gravíssimo problema de interpretação que se enfrentava. Um problema muito sério. Vejamos.
O Bispo de Tocantins chegou no porto de Belém e, ao ser recebido, da fortaleza ouviu apenas 17 tiros de canhão. A eminência religiosa não se conformou, justamente porque a ele se deviam 18 tiros, e não 17. A falta de um tiro era negligência imperdoável. Deveria ser castigada com rigor. A reclamação do bispo chegou formalmente ao também imaginário Ministro dos Cultos. Ouviu-se o Ministério do Exterior, que estudou o direito comparado, ilustrando seus argumentos inconclusos com os entendimentos que China e Montenegro tinham a respeito do assunto. Discutiu-se intensamente.
O Barão de Ingá, secretário-geral dos Cultos, também atuou na questão. O barão passava os dias e as horas na repartição apontando um lápis, e depois outro, o tempo todo. Segundo o narrador, “era um gasto de lápis que nunca mais se acabava; mas o Brasil é rico e aprecia o serviço de seus filhos”. Pode haver alguma semelhança com o Barão de Itaipu, que lhe aplicou exames, e que ostentava o título de nobreza, mesmo quando os títulos nobiliárquicos foram abolidos, na impressão de Lília Moritz Schwarz, autora de biografia definitiva de Lima Barreto.
Gonzaga de Sá é personagem importante no deslinde da complicada e importante questão. É o exemplo acabado de como a burocracia mata talentos. Era subordinado a um chefe da seção de “Alfaias e Paramentos”, que leu vagarosamente o processo, considerou bem o caso e sugeriu que ouvissem a Secretaria da Propaganda, em Roma. Boa decisão.
Há também um Dr. Xisto Beldroegas, o burocrata mais típico do romance. Bacharel em Direito, colega de Gonzaga na secretaria. Xisto “caminha devagar e preocupado, sombriamente preocupado”. Era o “depositário das tradições contenciosas da Secretaria dos Cultos”. De acordo com o narrador, Xisto era “apaixonado pela legislação cultual do Brasil, vivia obcecado com os avisos, portarias, leis, decretos e acórdãos”. Conta-se que passou por uma crise de nervos porque não encontrou no arquivo a legislação que fixava o número de setas que atravessavam a imagem de São Sebastião. Duas, três, uma? O problema era sério. Andava atormentado porque não havia lei que fixava o número de dias de chuva que havia ao longo do ano. O Congresso e os ministros, segundo Xisto, de fato, não prestavam, ao deixarem de regular esse fato importante (chuva) na vida das pessoas.
A solução salomônica para o complicado caso das salvas de canhão para o Bispo (17 ou 18) veio do Ministro da Guerra: 17 tiros e meio. Como? O último tiro seria dado por uma arma menor, o que significaria exatamente a metade do tiro disputado. Uma grave questão recebia uma pá de cal. A máquina do Estado funcionava, para alegria do contribuinte.
A tônica do livro é a crítica irônica à burocracia. Era um mundo no qual dava-se importância à presença em congresso mundial sobre a vadiagem de cães, que se realizaria na Itália. Assunto grave. Jovens talentosos eram cooptados pela carreira funcional, encalacravam-se na “depressão mental do ambiente”. Com os anos, prossegue, “esfriam, não leem mais, embotam-se e desandam a conversar”. O narrador conta a história de um escriturário que conhecia línguas (entre elas o hebraico). O pai, que fora rico, o mandou para a Europa, onde estudou crítica religiosa e antigas línguas sagradas. Sem a fortuna da família, perdida, retornou para o Rio, sábio, sem saber o que fazer da sabedoria. Fez concurso. Tornou-se amanuense. “Ficou como um escolar que sabe geometria, a viver numa aldeia de gafanhotos”. Morreu 15 anos depois. Os colegas lembravam que “tinha uma boa letra”. E nada mais. Amou o carimbo.
Lobato, em carta a Lima Barreto, datada de 23 de novembro de 1919, afirmava que o livro não vendia por causa do título, que não era psicologicamente comercial: as pessoas pensavam que era a biografia de um ilustre desconhecido. Remendo que era um ilustre incógnito que habita um pouco em todos aqueles que de algum modo se deixam enlear no “cipó mortífero da burocracia”, expressão do Lobato, que dividiu com Lima Barreto aversão mineral e orgânica para com as instituições de fachada.
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 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.

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