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domingo, 21 de junho de 2020

A geopolítica do “vírus chinês” - Marcos de Azambuja (revista Piauí)

A geopolítica do “vírus chinês”

A disputa do século entre Washington e Pequim – e o que o Brasil tem a ver com isso

Marcos Azambuja
Revista Piauí, edição 165, junho de 2020

Mapa atribuído a Zheng He, grande navegador chinês do século XV: ao contrário dos EUA, que não temem agressão do Canadá ou do México, a China tem uma vulnerabilidade geográfica, que lhe traz preocupações reais com vizinhos poderosos, como a Rússia, a Coreia, a Índia e o Japão

O ofício do futuro é ser perigoso.ALFRED NORTH WHITEHEAD


É um lugar comum dizer que a história se faz por caminhos complexos e tortuosos, mas não é menos verdade dizer que ela também gosta e precisa de datas e palavras que sirvam como pontos de referência claros para os contemporâneos e para os que virão depois. São inúmeros, no correr dos séculos, os períodos de sinalização incerta e ambígua, mas uma coisa é praticamente certa: os anos de 2017 a 2020 não estarão nessa lista. Poucas vezes um momento histórico indicou, de maneira tão clara, sua intenção de ser lembrado como uma daquelas encruzilhadas em que as coisas deixam de ser o que eram e uma nova realidade aparece com todas as suas promessas e desafios. No caso, e pelo que se vê até agora, com mais desafios do que promessas.
Os Estados Unidos, nesses quatro anos memoráveis, promoveram a desconstrução da ordem internacional que eles próprios, com algumas interrupções e hesitações, vinham desenhando desde o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918. Enfraqueceram o Tratado do Atlântico Norte, sua principal aliança militar e política com os países da região. Reviram seu apoio ao sistema das Nações Unidas, amplamente construído por mãos norte-americanas, em São Francisco e em Bretton Woods. Saíram da Unesco e do Conselho dos Direitos Humanos, ambos entidades da ONU. Afastaram-se do Acordo de Paris sobre o clima e do acordo de controle nuclear com o Irã. Deixaram o Tratado Transpacífico, um acordo comercial entre países do Oceano Pacífico. Esvaziaram a política de criação de dois Estados em Israel e levaram sua embaixada para Jerusalém, dando reconhecimento formal à cidade como capital israelense. Buscaram aproximação com os regimes fortes da Rússia e da Coreia do Norte. Começaram uma guerra comercial com a China, seu maior parceiro e, depois deles próprios, a mais poderosa economia do mundo. Renegociaram seus tratados com o México e o Canadá que haviam criado a Alca, uma área de livre-comércio da região. Mudaram drasticamente as regras que regulavam o processo migratório para o país, começaram a construir um muro de separação com o México. Finalmente, os Estados Unidos também estão enfrentando agora, como todos nós, a mais agressiva pandemia dos últimos cem anos.
É difícil encontrar nos anais e em tempos de paz um processo de demolição tão abrangente. Como ilustração deste momento, escolho, arbitrariamente, um instante que me parece revelador e que foi capturado pelas implacáveis e onipresentes lentes e câmeras do nosso tempo. O presidente Donald Trump está na Casa Branca, tendo à sua frente um texto que vai ler para a nação. A menção que o texto fazia ao “coronavírus” é riscada e substituída – por sua própria mão – para que o vírus fosse simplesmente rotulado como o “vírus chinês”.
As palavras de Trump foram pronunciadas no dia 19 de março, quando a pandemia chegava devastadora à população norte-americana. A tentativa de associação explícita do vírus com a China destinava-se a fazer com que as duas palavras – “vírus” e “chinês” – ficassem ligadas de maneira indelével na memória coletiva. Como Catão, que exibe no Senado de Roma os figos recém-colhidos para mostrar a proximidade e a ameaça de Cartago, Trump procura transformar o novo coronavírus em arma e argumento contra a China. O mero fato de que, mais de 2 mil anos depois, eu ainda recorde aqui o episódio de Roma, em contexto tão diverso, é prova de como as palavras e os gestos podem ser longamente memoráveis e servem para definir momentos cruciais. Em termos puramente retóricos, a mudança intencional do nome do agente responsável pela pandemia era quase – como pretendia ser – uma declaração de guerra.
As palavras Covid-19 e coronavírus parecem ter sido aceitas de forma agora irreversível, mas, para isso, foi preciso que até mesmo os principais aliados dos Estados Unidos se recusassem a subscrever um importante documento do G7 porque incluía a expressão “vírus de Wuhan”, uma fórmula alternativa, e igualmente agressiva, que Washington desejava e promovia.
O que ajuda a entender a animosidade norte-americana é o fato de que a China, bem antes do tempo imaginado, ultrapassou a sua condição de economia complementar à dos Estados Unidos, que fornecia em condições imbatíveis uma enorme gama de bens e serviços, e passou a se apresentar, cada vez com mais credibilidade, como um poderoso rival no terreno que de fato importa e onde se definirá o controle do futuro – as tecnologias de ponta. A controvérsia não irá embora. Ao contrário, deve se agravar cada vez mais daqui para a frente.
A relação entre a China e os Estados Unidos – eixo central do mundo de hoje e, até agora, indispensável e vantajoso para a economia de ambos – vinha se deteriorando ao longo dos últimos meses, talvez um pouco mais. Mas, até então, o terreno principal do enfrentamento entre os dois gigantes era o das trocas comerciais. No centro das discussões, estavam os problemas ligados à propriedade intelectual e à competição desleal. A pandemia serviu para que se subisse o tom e se ampliasse a desconfiança entre os parceiros, que são, agora e cada vez mais claramente, adversários. Elevou-se neste ano, de maneira inquietante, o patamar do crescente antagonismo. Mas, antes de ir adiante e tratar especificamente disso, devo andar um pouco para trás.
Não encontro melhor caminho do que começar no ano de 1945, quando o fim da Segunda Guerra Mundial e o início da era atômica inauguram um ciclo que se estende até hoje e que, apesar de importantes rupturas, guarda não poucos traços de coerência e continuidade. É um período marcado pela hegemonia dos Estados Unidos – desafiada até 1989 pela rivalidade militar e ideológica com a então União Soviética –, que se define por três parâmetros: a Guerra Fria, o fim dos impérios coloniais clássicos e o aparecimento na cena internacional de quase 150 novos países independentes, antes colônias, fato que mudou de maneira extraordinária o mapa político do mundo.
É, também, o período em que as armas nucleares excluíram, como opção racional, os enfrentamentos diretos entre Estados detentores dessa tecnologia, ainda que um número importante de conflitos periféricos desafiasse o controle das potências dominantes, interessadas em manter certas áreas sob sua influência. Nesse intervalo, emergem para a vida independente moderna alguns grandes atores, entre eles a Índia, o Paquistão e Israel, além da África do Sul, que se redefine com nova e acrescida legitimidade. E, finalmente, a China sai de um longo período de declínio e fragmentação para, reclamando ser vista como uma única entidade, ocupar seu lugar de direito na vida internacional.
Foi, sobretudo, um extraordinário período de acelerada incorporação científica e tecnológica. Penso que a época que agora está chegando ao fim será lembrada como aquela em que o homem passou, por sua ação ou omissão e pela primeira vez na história, a ter uma influência decisiva na sua própria sobrevivência como espécie. (As inquietações com o clima, com o meio ambiente e com o esgotamento dos recursos naturais, inexistentes ou marginais em 1945, são hoje uma preocupação absolutamente prioritária. A exploração espacial começou, deslanchou e hoje os céus são, literalmente, o limite. O fundo dos mares e dos oceanos oferece uma nova fronteira.)
Neste período, a ordem internacional democrática e liberal emergiu triunfante depois de décadas de desafio e turbulência. Parecia ser uma arquitetura tão estável que alguns até imaginavam que seu advento significava simplesmente o fim da história.
Este é o ciclo que está terminando. Agora, com sobressaltos, num mar de incertezas e enormes indagações, vivemos o que parece ser o nascimento de um outro ciclo no qual o poder dos Estados Unidos – um poder tão dominante que transformou os últimos cem anos no que se pode chamar, apropriadamente, de “século americano” – começa a ser ameaçado por novas formas de governo e de interação social, e pela volta da China ao lugar que o país ocupou, durante milênios, no tabuleiro do poder mundial.
O momento é talvez decisivo para o Ocidente, que terá de enfrentar um desafio direto à sua longa hegemonia, que vinha se estendendo e se consolidando desde que as Grandes Navegações, o Iluminismo e a Revolução Industrial deram à nossa parte do mundo a impressão de que podia exercer um poder duradouro em escala verdadeiramente global. Durante todos esses séculos, o Ocidente foi o centro e o motor da história. As duas grandes guerras do século XX, que chamamos mundiais, foram a culminância explosiva de crises que o Ocidente criou para si mesmo.
Não quero exagerar nem simplificar demais. Não ignoro o desafio que o Japão procurou oferecer na primeira metade do século XX até sua derrota em 1945 e, depois, seu impressionante renascimento. A própria China, humilhada e fragilizada, não chegou a perder formalmente a sua soberania e conseguiu mesmo, por seu incontornável peso, um lugar privilegiado como membro permanente do Conselho de Segurança da então recém-criada Organização das Nações Unidas. Tampouco estou esquecendo o dinamismo dos chamados “tigres asiáticos” a partir da década de 1970, e também tenho presente que a Coreia e o Vietnã deram a medida de como era caro e perigoso, mesmo para países muito poderosos, meter-se em uma guerra terrestre na Ásia. E a hora e a vez da Índia parecem estar perto de chegar.
Nos mares, a história não foi diferente. Ao longo dos séculos, o Mediterrâneo cedeu sua centralidade e influência ao Atlântico e, agora, o imenso Pacífico reclama sua hegemonia. Tudo parece indicar que iremos viver uma fase de menor fervor ideológico e ainda maior dinamismo tecnológico. A ciência vai tão longe e tão depressa que até a ficção científica parece superada por avanços e conquistas reais. Júlio Verne e H. G. Wells, assim como seus muitos sucessores, podem ser vistos hoje apenas como acanhados precursores. O mundo real, em várias frentes, parece ir mesmo além do que hoje pode ser imaginado.
Observo, naturalmente, com olhos brasileiros o que está acontecendo. O status quo é, certamente, mais confortável para nós do que aquele que agora começa a se desenhar. Temos, por ser parte dele, imensas afinidades com o mundo ocidental e nele estamos em casa. Participamos de sua história, de sua cultura e de sua política, e compartilhamos uma mesma tradição que se estende das práticas religiosas ao pensamento econômico.
A globalização aproximou maneiras de ser e fazer virtualmente em todo o mundo e reduziu diferenças, mas, apesar de tudo, ainda é mais fácil para nós pensar e atuar em algum idioma neolatino ou germânico do que em mandarim ou híndi. É bem mais simples nos orientarmos pelas ruas de Barcelona do que de Karachi. É verdade que o inglês é o novo latim, mas basta chegar a Cantão ou Bangcoc para descobrir que a chamada língua franca do nosso tempo é menos falada e entendida do que se supõe.
Teremos que nos acostumar a novos hábitos, aprender e decifrar ideogramas e nos familiarizar com tradições e narrativas que não são aquelas que conhecemos. Durante os muitos séculos em que o Ocidente ditou comportamentos e modas, eram elas, as imensas multidões que moravam do lado errado do Canal de Suez, que deviam fazer o esforço de aprender e copiar os estilos ocidentais, muitas vezes emigrar e vir aqui comer o “trigo alheio”. Agora, seremos nós a fazer o percurso em sentido contrário em busca de mercados, financiamentos e até mesmo empregos.
Tínhamos a impressão – e não era uma impressão falsa – de sermos o centro do mundo. Entre nós, um navio de longo curso era chamado de transatlântico, como se o nosso mar vizinho fosse o único em que se navegasse. Contávamos as horas pelo meridiano de Greenwich e parecia ser da ordem natural das coisas que fosse assim. O metro original, medida de quase todas as coisas, tinha nascido e morava em Paris. Aceitávamos sem surpresas que quase tudo se medisse por nossas réguas e nossos compassos.
Quando fui à China pela primeira vez, nos idos de 1975, os efeitos cumulativos da Revolução Cultural, do Grande Salto para a Frente e do radicalismo feroz da chamada Gangue dos Quatro ainda estavam dolorosamente presentes. O Brasil, ao contrário, vivia então um ciclo de acelerado crescimento econômico e, apesar do regime ditatorial, havia confiança no futuro. Na época, enquanto nós convivíamos com índices de crescimento aproximados aos da China de hoje, a China de então derrapava em taxas modestas e mesmo negativas de crescimento, como as do Brasil de agora. Em menos de cinquenta anos, tudo mudou.
A diferença de fuso horário entre Brasília e Pequim era e continua sendo de onze horas – e comemoro que, em um mundo em grande transformação, pelo menos isso não tenha mudado. Minha primeira noite no histórico Grand Hôtel de Pékin foi, como aconteceu em várias viagens seguintes, insone. Poucas horas antes, tinha cochilado, confesso, em cima de uma indefinível sopa durante um jantar formal interminável em pratos e brindes. Lá pelas sete da manhã, ou talvez um pouco antes, desisti de tentar dormir e fui para a minha janela, que dava para uma daquelas larguíssimas avenidas da capital chinesa. Vi então – e a imagem ficou comigo – uma miríade de bicicletas que rolavam em silêncio, pilotadas por muitas dezenas de milhares de chineses, todos vestidos com o que era virtualmente o uniforme do período maoista, e tive uma impressão, que perdura até agora, da imensidão do universo humano chinês e do seu não menor potencial.
Pequim então era cinza – desde a cor do céu até o tijolo das casas – e ainda se escutava o hino O Oriente É Vermelho, comemorando Mao Tsé-tung e sua obra em termos escandalosamente laudatórios. Na última visita que fiz à China, em 2012, as bicicletas haviam virtualmente desaparecido, o hino estava esquecido e o cinza fora substituído pelas cores reluzentes de uma cidade que parecia ter se reinventado e, magicamente, enriquecido. Do primeiro encontro com a China, lembro ainda que viajar de Cantão a Hong Kong representava muito mais do que atravessar uma fronteira política. Era observar aquela imensa diferença de riqueza e de modo de vida entre dois regimes e duas formas de organização econômica. Na minha visita mais recente, as diferenças eram quase imperceptíveis.
Atribui-se a Napoleão a seguinte frase: “Quando a China despertar, o mundo irá tremer.” Ele teria dito isso durante o exílio na ilha britânica de Santa Helena e, embora concorde com a profecia, desconfio da autenticidade da atribuição. (Eu mesmo tenho ocasionalmente usado o imperador para emprestar prestígio e autoridade a frases de origem duvidosa. Sábios chineses não identificados, bem como obscuros provérbios russos, são outros disfarces aos quais eu e outros tantos temos recorrido para dizer coisas às quais desejamos dar uma aura de profundidade ou um selo de autoridade. Os mortos não costumam reclamar.)
O fascínio do Ocidente com a China não é novidade. O nosso maravilhamento começa por volta de 1298, com a publicação do relato das viagens de Marco Polo. O outro momento decisivo de descoberta e contato ocorre na missão de lorde George Macartney, em 1792, a primeira da história. Com essa iniciativa, a Grã-Bretanha queria abrir a China para os seus produtos – e queria que isso acontecesse logo, por bem ou por mal. O imperador Qianlong disse que a China não precisava daquele comércio, desprezou os presentes que lhe eram oferecidos e não simpatizou com o emissário. O encontro marca também o primeiro choque entre dois impérios: o britânico, que estava em movimento e expansão, e o chinês, que vivia seu declínio. Em dois livros cuja leitura recomendo com entusiasmo, Alain Peyrefitte trata desse episódio crucial.
Com manobras astuciosas e dilatórias no final fadadas ao insucesso, a China procurou resistir ao insaciável apetite do colonialismo e do imperialismo ocidental e, depois, tardiamente, ao imperialismo nipônico. Por isso, foi alvo de ataques de uma violência que excederam mesmo os parâmetros do século XIX e da primeira metade do século XX, uma época especialmente tolerante aos abusos de poder pelas grandes potências. O retalhamento da China em áreas sob virtual jurisdição estrangeira, a ignomínia das guerras do ópio, a ferocidade da Guerra dos Boxers e a barbárie da invasão e ocupação japonesas devem ser vistos como alguns dos momentos mais repugnantes da história moderna. Não quero sugerir aqui que a China tenha sido apenas vítima inocente da violência de terceiros. Muito do que aconteceu na rebelião Taiping, ainda no século XIX, depois no longo enfrentamento entre nacionalistas e comunistas, e durante sua grande revolução, é igualmente terrível e indesculpável.
Como as coisas andam depressa, os novos tempos não têm ainda um nome de aceitação geral e, ao chamá-lo aqui de período pós-americano, tomo emprestada a expressão proposta pelo escritor e colunista Fareed Zakaria para descrever o mundo, como ele hoje se apresenta. Não disponho de outro rótulo melhor. A China, apesar de todo seu impressionante crescimento e projeção, ainda não reúne credenciais para pretender que os novos tempos tenham seu nome. A expressão pós-americano mostra, e isto me parece correto e essencial, que vivemos uma fase de transição que ainda não permite identificar com clareza suas coordenadas principais. Vemos apenas, com nitidez, o que deixou de ser.
Estou convencido de que o mundo, do ponto de vista militar, deverá nos próximos anos continuar com a configuração unipolar que o define. O poder norte-americano não deverá ser desafiado. Os Estados Unidos serão detentores, agora e no futuro previsível, de incontrastáveis meios de dissuasão e pressão. É sempre bom recordar que, além de sua própria e imensa projeção, os Estados Unidos são herdeiros e sucessores de três grandes impérios: o espanhol, o francês e o britânico, e a dispersão de suas bases e postos avançados corresponde, no Pacífico, no Atlântico e no Caribe, às fronteiras da influência desses impérios anteriores. A recente ampliação da presença chinesa em ilhas no Mar da China, espaço que Pequim prepara e virtualmente cria para seu uso estratégico, é coisa que não pode ser negligenciada, mas que, nem de longe, corresponde à profundidade e extensão da rede de instalações que definem o império norte-americano.
Acho que o desafio chinês aos Estados Unidos não deverá ser, até onde a vista alcança, militar e ideológico, como o que aconteceu com a antiga União Soviética. Será essencialmente comercial e tecnológico. O regime soviético nunca teve condições nem vocação para competir com os Estados Unidos em termos econômicos e comerciais, e o seu desafio se fazia em outros terrenos. A China, por seu turno, vai oferecer, isso sim, um desafio talvez insuperável em termos de produtividade e criatividade no campo da indústria, do comércio e dos serviços. Em um vasto espectro de atividades, a China se faz cada vez mais competitiva, prenunciando que as tensões com os Estados Unidos vão continuar a se agravar.
Quero acentuar – e acho importante repetir isso – a vulnerabilidade estratégica e geográfica da China. Os Estados Unidos nunca precisaram construir uma grande muralha e nunca foram invadidos e ocupados, ao contrário do que aconteceu com a China em mais de uma ocasião. Washington não teme uma agressão canadense ou mexicana (excluídas as preocupações migratórias ou policiais), mas a China tem preocupações reais com poderosos vizinhos: a Rússia, a Coreia, a Índia e o Japão. Isso sem falar no Tibete, que é um problema interno de difícil solução ou absorção. O futuro de Taiwan, por sua vez, é sempre um complexo desafio.
O sentimento de autoconfiança da China parece estar preservado no momento, ainda que o foco inicial da grande pandemia atual tenha sido em uma de suas províncias. A resposta chinesa depois de um breve período de procrastinação e mesmo negação da realidade parece ter sido extraordinária, mas só poderia ser feita na escala e na velocidade em que ocorreu em uma sociedade equipada com abundantes recursos e na qual o governo dispõe de instrumentos coercitivos extremamente eficazes – e não hesita em utilizá-los. Não subscrevo as teorias de conspiração que, como sempre acontece nessas circunstâncias, pretendem oferecer cenários dramáticos mas de escassa credibilidade para explicar o que ocorreu. O novo coronavírus causou muito sofrimento e prejuízos para a própria China e não vejo, até agora, provas de que tenha havido algum tipo de maquinação para produzir e liberar o vírus do qual o país foi a primeira vítima.
A cultura chinesa não privilegia a transparência. O conceito seria de difícil definição e talvez mesmo incompreensível para um sistema que cultua o sigilo, a disciplina vertical, o respeito pela autoridade e vê com visceral desconfiança os motivos e intenções do mundo exterior. É sempre útil ter em mente que a China, além de ser um grande país com todos os atributos de um Estado moderno, é, sobretudo, uma velha civilização e tem, de seu longo percurso, uma memória ininterrupta de quase 4 mil anos. A própria natureza e identidade do comunismo da China requer hoje qualificações tão profundas e extensas que chego mesmo a me perguntar se ainda serve de uma maneira rigorosa e abrangente para descrever o que a China de fato é e pretende vir a ser.
Ao longo de muitos anos tenho me colocado sempre a mesma pergunta: A China é ainda um país comunista convivendo com uma economia de mercado, ou é de fato um país capitalista governado por um partido formalmente comunista? No decorrer de décadas de observação, minha resposta tem variado. Desde Mao Tsé-tung, passando pelos anos de ascendência de Zhou Enlai e depois de Deng Xiao-ping, tenho oscilado e a mesma hesitação perdura até este momento em que o controle de Xi Jinping sobre o país parece se reforçar na busca de uma duração muito mais longa para seu mandato. Acabo sempre tendo que me refugiar nas palavras de Deng sobre a irrelevância que tem a cor de um gato desde que saiba apanhar ratos.
Há cerca de 50 milhões de pessoas de etnia chinesa que não vivem na China, nem em Hong Kong, nem em Taiwan. Estão espalhadas em um grande número de países (no Brasil, calcula-se que sejam cerca de 450 mil). Em graus diferentes, esses overseas Chinese, como são chamados, conservam uma importante fidelidade a suas origens. Ser chinês é mais do que pertencer a uma nacionalidade. É, também, ser parte de uma civilização profundamente conservadora, cujos membros se identificam pelo culto aos ancestrais e pelo respeito à família e às tradições. Essa grande diáspora chinesa aconteceu em diversas ondas ao longo de mais de mil anos e em muitas dessas comunidades no exterior, mesmo depois de séculos, seus membros ainda se identificam, no todo ou em parte, como chineses. Estou sugerindo aqui que é muito difícil deixar de ser chinês. Quem viaja pela Ásia e, especialmente, pelo sudeste do continente, pode constatar como a presença chinesa é demograficamente importante e, sobretudo, decisiva na economia e na administração de países como Tailândia, Malásia, Cingapura, Vietnã, Mianmar e até a Coreia.
Poderia ir muito além, já que a dispersão e a influência dos chineses é de fato global. Só nos Estados Unidos, segundo o censo de 2010, eram cerca de 3 milhões de sino-americanos, o que lhes confere um importante papel na construção da tapeçaria de raças e culturas que formam os Estados Unidos. A população acadêmica e universitária chinesa nos Estados Unidos é imensa, e seu prestígio intelectual é significativo. Nos negócios, desde os inumeráveis pequenos restaurantes de esquina até as grandes corporações, a presença chinesa é evidente e incontornável. Nas grandes cidades da China, a reciprocidade é visível, e os McDonald’s e Starbucks estão em todo lugar. Não preciso falar da atuação das grandes empresas. Minha convicção é que o comércio e os negócios, epicentro das atuais disputas, serão também o caminho para uma futura acomodação de interesses.
Não é fácil prever e desenhar um conflito de civilizações entre a China e o Ocidente, como se considera ser possível acontecer com o Islã. Há nos chineses e no mundo ocidental uma plasticidade e um pragmatismo que faz com que seja bem mais fácil encontrar terreno comum para colaboração e entendimento. Acredito, como dizia Montesquieu, que o “doce comércio” irá nos salvar. Não vejo as atuais e possíveis futuras tensões como uma incompatibilidade irremediável de práticas e valores. Na minha avaliação, estamos diante de grandes problemas e dificuldades, mas que são, por sua própria natureza, suscetíveis de serem quantificados e claramente definidos e, assim sendo, negociáveis.
Apesar de importantes hiatos, as relações entre a China e os Estados Unidos têm um fio condutor de busca de respostas pragmáticas, como deve e costuma acontecer entre duas imensas civilizações comerciais. As iniciativas Nixon-Kissinger junto à dupla Mao-Zhou Enlai, conduzidas em momento tão adverso, mostram o caminho que deverá voltar a ser explorado. O espírito de moderação parece estar temporariamente em falta em Washington, mas é da natureza das coisas que deva logo voltar. A China atravessa um perigoso momento de húbris, mas sua própria história é rica em lições que mostram como a excessiva autoconfiança pode preparar desastres um pouco mais adiante.
Não pretendo ter – depois de muitos anos e de longa reflexão – uma posição neutra sobre as relações entre o Brasil e a China. Sempre identifiquei, sem maiores complicações, o que parece ser a natural complementaridade de interesses econômicos entre os dois países. Somos e seremos cada vez mais produtores daquilo que a China precisa. E a China, cada vez mais, pode e parece querer fazer investimentos de grande importância estratégica para o nosso país. Desejo e espero que a relação se diversifique cada vez mais e nossa pauta de exportações possa ir além dos limites da lista atual.
Em anos recentes, e em mais de uma ocasião, visitei a China quase sempre em algum evento ligado aos Brics, o pequeno clube de cachorros grandes onde, para ser sócio, como costumo dizer, tamanho é documento. A China, a Índia e a Rússia se entendem e se desentendem há muito tempo. Nós e a África do Sul somos os new kids on the block, e cabe agora, aos cinco países, de tão díspares destinos, encontrar e definir alguns temas que possam servir como uma agenda comum. Gosto de participar desse exercício e acho que o Brasil deve continuar a ser um país de múltiplos vínculos e associações. Ficaremos desconfortáveis se seguirmos políticas estreitas contando apenas com uns poucos parceiros.
Antes que a diplomacia brasileira tomasse os caminhos erráticos e ingênuos que agora percorre, algumas verdades pareciam ser incontornáveis para nós. Éramos um país destinado a encontrar convergências com muitos – e não com poucos. Éramos naturalmente criadores de amplos consensos – e não parte de alianças sectárias. Usávamos a nosso favor as muitas dimensões da nossa identidade e não excluíamos, a priori, nenhum país ou ideologia idônea do nosso convívio e do nosso diálogo. Parecemos esquecidos de tudo isso.
Temo que o agravamento das tensões e disputas entre os Estados Unidos e a China crie condições que devem nos obrigar a navegar com cuidado em águas que ficarão perigosamente agitadas. Temos que cuidar dos nossos imensos interesses em jogo e agir com racionalidade e lucidez. O falso detetive chinês Charlie Chan, que ficou famoso em filmes de segunda linha nas décadas de 1930-40 e hoje talvez esteja merecidamente esquecido, dizia sempre o seguinte: “O espírito é como um paraquedas. Só funciona bem quando está aberto.” Essa é a recomendação que se deve fazer hoje aos que vêm conduzindo, com tanta imprudência, a política exterior do Brasil.

MARCOS DE AZAMBUJA

Diplomata, foi secretário-geral do Itamaraty e embaixador do Brasil em Buenos Aires e Paris. É coautor de História da Paz, da Contexto

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