Os embaixadores ideológicos
O bolsonarismo está corroendo o Itamaraty
Mathias Alencastro
Folha de S. Paulo, 15/06/2020
Nesta altura do ano, paira sobre Luanda uma neblina úmida e ofuscante, conhecida localmente como cacimbo.
A capital angolana fica ainda mais desconfortável para os expatriados. Talvez uma malaise existencial esteja na origem do gesto desesperado do embaixador do Brasil no país, Paulino Franco de Carvalho Neto.
Numa missiva dirigida a um ex-ministro e atual colunista do Jornal de Angola, o diplomata adotou um tom incompatível com o cargo, acusando o angolano de proferir “barbaridades” sobre o Brasil e afirmando que Jair Bolsonaro tem um “compromisso inquebrantável com a democracia”, apesar de ser mundialmente conhecido por frequentar protestos golpistas.
Segundo a maioria dos especialistas, a decadência do Itamaraty tem nome e sobrenome: Ernesto Araújo. O advento dos embaixadores ideológicos revela que a instituição no seu todo está sendo corroída pelo bolsonarismo.
Entre muitas outras pérolas, merece destaque o ataque do embaixador na Espanha, Pompeu Andreucci Neto, ao El País. Com o vocabulário típico de um guerrilheiro guevarista, ele denunciou a “vocação neocolonialista” do jornal.
Na sua reação a um artigo crítico do Le Monde, o embaixador na França, Luís Fernando Serra, explicou que os governadores de oposição viram no “confinamento estrito” uma oportunidade para derrubar os “excelentes indicadores econômicos” da “administração Bolsonaro”.
Vale tudo para salvar o presidente, inclusive rebaixar a inteligência de outros políticos eleitos democraticamente.
O texto do embaixador em Luanda tem especial peso simbólico. Ele foi publicado dias depois de o Brasil anunciar o encerramento das embaixadas na Libéria e em Serra Leoa.
Angola é o lugar onde os grandes diplomatas Ítalo Zappa e Ovídio de Mello reinventaram a política africana-brasileira em plena ditadura. Um monumento à independência intelectual e moral do Itamaraty.
Cabe lembrar que o embaixador ideológico é uma raridade nas democracias. Na sua busca por um rottweiler para a embaixada da Alemanha, Donald Trump precisou contratar o relações-públicas Richard Grenell. Funcionários de carreira preferiram desertar do Departamento de Estado a manchar a sua biografia.
Mas Brasília não tem o equivalente de uma K Street, a rua de Washington repleta de ONGs e think tanks que contratam servidores desiludidos com os rumos da vida profissional.
No Itamaraty, segunda vida rima com aposentadoria. No entanto, o embaixador no Reino Unido, Fred Arruda, autor de uma sóbria resposta ao Financial Times, mostrou que é possível defender o governo sem vestir a camisa de bolsominion.
Quando a roda girar, os embaixadores mais assanhados regressarão ao escritório com o sorriso maroto de quem passou do ponto, e tudo será timidamente esquecido. Poderia ser diferente.
O Quai d’Orsay tratou de cortar as asinhas dos diplomatas franceses que embarcaram na tentativa de instrumentalização do ministério por Nicolas Sarkozy.
Caberá à sociedade civil cobrar ao Itamaraty uma reação a esses desvarios, num momento em que precisávamos, talvez mais do que nunca, de diplomatas bombeiros, em vez de incendiários.
Mathias Alencastro
Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
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