O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

Mostrando postagens com marcador Mathias Alencastro. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Mathias Alencastro. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Reeleição de Bolsonaro seria uma calamidade climática - Mathias Alencastro (Folha de S. Paulo)

 Reeleição de Bolsonaro seria uma calamidade climática

Manutenção da política ambiental atual é maior ameaça à soberania nacional desde a Independência
Mathias Alencastro
Folha de S. Paulo, 23.out.2022 às 13h12

As discussões sobre as consequências de uma eventual reeleição de Jair Bolsonaro no segundo turno giram, obviamente, em torno dos seus riscos para a democracia.

Todavia, no plano internacional, ela também marcaria o fim de um período dramático na luta contra a crise climática, severamente abalada pela Guerra da Ucrânia e pelo regresso em força de fontes fósseis de energia, e inauguraria uma nova era na geopolítica.

Existe um arcabouço teórico, jurídico e até militar pronto a ser colocado em prática caso o governo brasileiro prossiga na sua lógica de autodestruição ambiental. A sua dimensão mais conhecida é a proposta aprovada no Parlamento Europeu, em setembro, para obrigar os importadores da União Europeia a provar o cumprimento de exigências ambientais por parte dos fornecedores.

Apesar de enfrentar resistências entre governos dos Estados-membros, a aprovação final da medida seria tornada irreversível pela pressão da opinião pública da UE depois da reeleição de Bolsonaro.

A internacionalização da Amazônia seguiria avançando entre gritos de "a Amazônia é nossa". No contexto da aproximação da Colômbia de Petro com a Otan, a general Laura Richardson, do Comando Sul dos EUA, mencionou um "esboço" de iniciativas similares com o governo Bolsonaro, em discussão desde julho.

O fato de o Itamaraty ter circulado às pressas uma instrução interna na semana passada esclarecendo a fala da autoridade americana deixou evidente o incômodo com a questão no atual contexto eleitoral.

Pela posição crucial da Amazônia na manutenção do aumento da temperatura global abaixo de 1,5 ºC, a aceleração do desmatamento pode radicalizar a ação externa. Stephen Walt, outro grão-mestre das relações internacionais ao lado de John Mearsheimer, uma celebridade desde o início da Guerra da Ucrânia, teorizou sobre intervenções lideradas pela ONU contra países que ameaçassem a existência humana com a sua política ambiental. O governo Biden deu um passo nessa direção ao colocar o clima no centro da segurança internacional na Estratégia de Segurança Nacional divulgada na semana passada.

O bolsonarismo poderia buscar formas de contornar a pressão internacional até a decisiva eleição presidencial americana de 2024. O encontro noticiado por Fábio Zanini entre o chanceler Carlos França e Mario David, assessor internacional do premiê húngaro, Viktor Orbán, provavelmente não tratou do fechamento de Supremas Cortes e de outras especialidades locais.

David, que foi relator do acordo de livre comércio do Peru e da Colômbia no Parlamento Europeu, é um especialista na defesa de regimes violadores de direitos humanos e ambientais em instituições europeias.

Por fim, a solidariedade do Brics com um país alvo de sanções ocidentais até poderia trazer alívio econômico. Todavia, ao abdicar da condição de mediador em potencial entre os blocos orientais e ocidentais, o Brasil estaria se integrando à China da forma mais subalterna e assimétrica possível.

Todas essas pressões podem ser facilmente revertidas por um governo democrático. Mas se a política ambiental de Bolsonaro continuar —e for reforçada por um Congresso antiambiental—, o Brasil encararia a maior ameaça à sua soberania nacional desde a Independência.

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Relações América Latina com os EUA e a China - Mathias Alencastro (FSP)

O FIM DA UNIPOLARIDADE!

Mathias Alencastro, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford

Folha de S. Paulo, 24/05/2021

 

Nenhuma dimensão da diplomacia contra a pandemia parece tão estruturante quanto o avanço da China na América Latina. Após atingir um milhão de mortos e com apenas 3% da população vacinada, a região depende, na quase totalidade, da alavancagem econômica e da cooperação sanitária promovida por Pequim para ter chance de sair da crise.

O caso da Colômbia, fortaleza de Washington e membro da OCDE, é o mais ilustrativo desse novo momento geopolítico. A China enviou milhares de insumos e de ventiladores empacotados em campanhas com mensagens de Xi Jinping. Arrasado por uma explosão social, o governo de Bogotá não resistiu à operação de charme e desviou de décadas de alinhamento ocidental em nome da nova amizade.

A solidariedade chinesa é calibrada para atingir objetivos práticos. No caso do Paraguai e de Honduras, a China está aproveitando a pandemia para aprofundar o isolamento de Taiwan, independente desde 1949. Assunção chegou perto de aprovar o fim da aliança com Taipé no ano passado, e Tegucigalpa ameaça seguir o mesmo caminho.

Não deixa de ser curioso que a China avance com tanta facilidade numa região historicamente associada aos EUA. Afinal, uma das premissas das relações internacionais é que uma superpotência precisa, primeiro, controlar a sua própria sub-região. Essa visão tem orientado o projeto hegemônico dos EUA nas Américas desde a Doutrina Monroe.

Como explicar a crise do sistema unipolar? Entre outros fatores, a diplomacia de "alinhamento automático" promovida por Donald Trump e Jair Bolsonaro criou a ilusão de que Brasília atuaria como o primeiro defensor dos interesses de Washington na América Latina. Essa aposta desastrada nos talentos de Ernesto Araújo e de Eduardo Bolsonaro abriu espaço para a China. Na ausência do Brasil e de um poder moderador como o Mercosul, Pequim teve total liberdade para ampliar suas parcerias bilaterais. A administração Biden corre para reverter o desgaste, mas a América Latina parece ter entrado de forma irreversível numa nova era.

Resta saber como os governos latino-americanos vão tirar proveito da competição entre superpotências. O balanço atual é cheio de contrastes.

Enquanto o Chile conseguiu emergir como o "Israel do Sul Global" da vacinação graças à cooperação com a China, Bolsonaro continua infantilizando a política externa brasileira. As últimas semanas foram dedicadas a superar mais um surto verborrágico do presidente, que associou, de novo, a pandemia a uma "guerra química" dos chineses.

Outros já experimentam mudanças nos sistemas políticos. A virada autoritária do governo de extrema direita de El Salvador, criticada pelo governo Biden, não parece trazer constrangimento à China. Da mesma forma, a aproximação do país com Honduras ganhou outro significado desde que o irmão do presidente Juan Orlando Hernández foi condenado por tráfico nos EUA em 2019.

Num passado recente, Pequim deu respaldo decisivo a um projeto de poder antidemocrático na Venezuela. Para os progressistas, o desafio será fazer com que a presença da China potencialize a autonomia da América Latina sem agravar a crise democrática que corrói a região.

 

 

terça-feira, 16 de março de 2021

Relações Brasil-Africa, dos anos Lula à atualidade - livro de Mathias Alencastro e Pedro Seabra

 Livro relata altos e baixos na relação recente entre Brasil e África

Obra reúne artigos que tratam de investimentos, cooperação e papel da sociedade civil

Folha de S. Paulo | 15/3/2021, 15h 13

Em 2003, o ex-primeiro-ministro de Moçambique Mário Machungo fez um discurso empolgado, em razão da promessa do presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, de construir uma fábrica de medicamentos contra a Aids no país.

“É uma confirmação eloquente de que a cooperação com o Brasil ocorrerá entre parceiros iguais, sem o paternalismo ou a busca de hegemonia que caracterizam as relações de Moçambique com países desenvolvidos”, afirmou.

Sete anos depois, quando Lula estava de saída da Presidência, a fábrica ainda não estava pronta. Aflitos para que o presidente brasileiro pudesse inaugurar alguma coisa, diplomatas sugeriram que ele pelo menos acompanhasse presencialmente o início do treinamento de profissionais que trabalhariam no local.

Este ciclo de promessa e realidade na relação entre Brasil e África permeia o livro “Brazil-Africa Relations in the 21st Century: from Surge to Downturn and Beyond” (Relações Brasil-África no século 21: do crescimento à desaceleração e além”), recém-lançado (editora Springer).

A obra, lançada em inglês, é uma coletânea de artigos de vários autores, cobrindo diversos aspectos de uma relação tão próxima quanto inconstante. Os textos tratam de temas como o papel das empreiteiras, as relações comerciais, cooperações nas áreas da agricultura e saúde, acordos militares e o papel da sociedade civil.

Os organizadores são Mathias Alencastro, pesquisador do Cebrap e colunista da Folha, e Pedro Seabra, professor-associado do Instituto Universitário de Lisboa. Por enquanto, há apenas edição em inglês, que pode ser adquirida pela Amazon. Uma versão brasileira está prevista para 2022, com capítulos adicionais sobre o futuro das relações.

Nesta terça (16), o livro será debatido em seminário virtual organizado pela Fundação Fernando Henrique Cardoso (mais informações abaixo).

O subtítulo do livro descreve bem o que foi a relação do Brasil com a África nas últimas duas décadas. Primeiro, houve um período de frenesi no governo Lula, com aumento de embaixadas, contratos grandiosos na área de infraestrutura e projetos de cooperação, como a fábrica de medicamentos moçambicana.

Como motor dessa estratégia, havia um ciclo de commodities em alta que dava fôlego econômico ao governo brasileiro, além de um presidente com uma estratégia ambiciosa de expandir os horizontes geopolíticos do país.

No governo Dilma Rousseff, a equação começou a se inverter, com a economia desacelerando, a Lava Jato pressionando as empresas que investiam na África e uma presidente claramente sem o mesmo interesse que o antecessor pela arena externa.

Esse processo se intensificou sob Michel Temer e Jair Bolsonaro, dois presidentes sem muito tempo ou paciência para a retórica Sul-Sul.

Dois exemplos citados no livro ilustram esse desinteresse: em 2013, Dilma saiu mais cedo de um evento da União Africana na Etiópia; cinco anos depois, Temer fez o mesmo numa reunião do bloco de países emergentes Brics na África do Sul.

Com essa guinada, dizem os autores, “uma das consequências mais visíveis foi a reorientação das prioridades geográficas [do Brasil] para longe do Sul e mais uma vez em direção ao Norte, particularmente os EUA”.

O período de expansão na relação bilateral deixou marcas transformadoras. Talvez a mais relevante delas tenha sido o novo papel do setor privado na formulação da política externa brasileira, um processo que viveu seu ápice no governo Lula.

“Diplomatas notam que o setor privado começou a intervir de maneira mais consistente nas decisões de política externa nos anos 2000, à medida que empresas como Vale e Odebrecht expandiam seus investimentos estrangeiros”, diz um dos artigos.

Lula gostava de se definir como um “mascate”, levando a tiracolo empresas brasileiras em suas muitas viagens pela África e dando todo o suporte financeiro possível para que fechassem contratos no continente, não importa se com democratas ou ditadores.

Como é sabido, esse expansionismo teria consequências políticas graves para ele, com a deflagração da Operação Lava Jato.

Talvez o melhor exemplo desse modelo tenha sido Angola, que merece um capítulo exclusivo no livro.

Na ex-colônia portuguesa, a presença brasileira se fazia sentir sobretudo pela empreiteira Odebrecht, mais até do que pela embaixada. A relação da empresa com o governo na verdade data de obras na década de 1980, quando o país vivia uma guerra civil.

No governo Lula, essa participação foi anabolizada pelo BNDES, que financiou megaconstruções como a usina de Laúca. A Odebrecht chegou a ser chamada pelo governo para ajudar a reerguer uma cadeia de supermercados estatais que estava prestes a falir, embora nunca tenha vendido um pãozinho na vida.

Lula, por sua vez, passou a ser usado pelo então presidente angolano, José Eduardo dos Santos, como uma espécie de rede de segurança para prolongar seu regime, que durou 38 anos. “As elites políticas de Angola invocavam Lula, em razão de seu prestígio internacional e papel de tutor na política brasileira, para justificar a perpetuação de Dos Santos no poder”.

A primeira década do século foi também o momento em que a imagem do Brasil sofreu seus abalos mais sérios junto à opinião pública africana.

A proximidade com ditadores cobrou seu preço, às vezes em razão de decisões que beiravam o surrealismo, como a defesa de que a Guiné Equatorial, uma ex-colônia espanhola governada há 42 anos por Teodoro Obiang, entrasse na CPLP, uma comunidade de países que falam português. O motivo eram as jazidas de petróleo descobertas em seu território.

Simultaneamente, a reputação do Brasil como uma presença benigna no continente, em oposição ao colonialismo europeu e à sanha predatória da China, sofreu um abalo por causa da mobilização da sociedade civil.

Em Moçambique, como mostra o livro, uma rede de ONGs e agricultores se organizou para torpedear o ProSavana, programa de incentivo ao agronegócio com participação brasileira, no norte do país. O Brasil passou a ser associado a uma espécie de “sub-imperialismo”.

Se a segunda década do século mostrou retração na presença brasileira, isso não significa a retirada completa do palco africano. Ainda há um estoque considerável de obras e projetos de cooperação no continente.

As próximas décadas verão a África seguir no processo de crescimento demográfico e econômico iniciado precisamente quando Lula colocou o continente em seu radar de prioridades, o que inevitavelmente atrairá interesse de empresas e do governo do Brasil.

Se puder ser uma relação mais madura e menos afeita a ciclos de euforia e fracasso, teremos aprendido algo.

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/03/livro-relata-altos-e-baixos-na-relacao-recente-entre-brasil-e-africa.shtml

 

segunda-feira, 8 de março de 2021

Itamaraty: o navio da morte - Mathias Alencastro (FSP)

 O autor desta matéria pergunta se os diplomatas - na verdade, o chanceler acidental e poucos auxiliares — conseguem dormir de noite, tendo participado ativamente do empreendimento macabro dirigido por Bolsovirus.

Eu também me pergunto o que deve se passar na cabeça de EA, um burocrata como outro qualquer da diplomacia profissional, sem qualquer preeminência na carreira, mas que escolheu se vender ao bando de aloprados perversos que estão destruindo o Brasil e a sua imagem internacional, com um entusiasmo digno de sua mente perturbada. Ele não deve dormir tranquilo de noite, pois deve ter perfeita consciência de que é desprezado e objeto de zombarias de seus colegas, pela gestão destrutiva que tem feito contra o infeliz Itamaraty.

Paulo Roberto de Almeida 


Itamaraty, o navio da morte

Israel vai jogar com o desespero do governo brasileiro para extrair benefícios

Mathias Alencastro

Folha de S. Paulo, 8/03/2021


Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor da governo em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra)

A diplomacia da tranqueira entre Brasil e Israel conheceu mais um episódio bizarro. Depois de prometer uma máquina que "extrai água do ar" no começo do ano passado, Jair Bolsonaro encontrou na brinquedoteca um spray que poderia curar pacientes com Covid-19 em poucos dias.

Essa fantasia medicamentosa foi demais até para o Tribunal de Contas da União, que questionou a pertinência de uma viagem para conhecer um forte candidato a nova cloroquina. Para se proteger, o Planalto corrigiu o tiro, e a comitiva descobriu na sala de embarque que, afinal, a prioridade da missão era buscar parcerias de "ciência e tecnologia".

À imagem do que aconteceu com República Tcheca e Honduras, as autoridades israelenses vão jogar com o desespero do governo brasileiro para extrair benefícios diplomáticos em troca das sobras da sua triunfal campanha de vacinação. Ernesto Araújo não hesitará em chamar esse escambo de vitória.

Como é hábito no bolsonarismo, os embustes revelam um mal profundo. Muito se especulou sobre o caráter do personagem de Werner Herzog responsável por transformar o Itamaraty no navio da morte. Mas o "caso do spray" diz algo novo sobre a sua equipagem.

Do Chile à Nigéria, passando pela Noruega, os diplomatas estão sendo tratados como heróis da pandemia, ao mesmo título que os médicos e enfermeiros, por seu papel na disputa pelos parcos estoques de imunizante no mercado global. Embaixadores de países da União Europeia rebelaram-se contra a política de aquisição de vacinas centralizada por Bruxelas e passaram a negociar em nome das suas capitais com Rússia e China.

Enquanto isso, no Brasil, o alto escalão do Itamaraty passou a última semana organizando uma viagem que tinha como único propósito alimentar o delírio negacionista. Durante esse período, morreram 10 mil brasileiros. A sociedade quer saber como esses diplomatas conseguem dormir à noite.

A transformação do Itamaraty na secretaria de comunicação do bolsonarismo terá consequências nefastas para a instituição. Manifestações como a tentativa de aquisição de vacinas por governadores e prefeitos podem ser vistas como tentativas caóticas de sobrevivência, mas também são movimentos em direção a uma federalização da política externa. Essas instituições regionais vão acabar se emancipando dos canais da diplomacia tradicional.

Uma das vocações do bolsonarismo é a vandalização das instituições. Poucas estão sendo tão atingidas como o Ministério das Relações Exteriores.

Os diplomatas são a elite do serviço público, homens e mulheres preparados com muito rigor e experientes. Mesmo nos piores momentos da história brasileira, eles souberam manifestar a sua individualidade e independência.

Seus antecessores jamais assistiriam passivamente a um chanceler normalizar a morte de milhares de brasileiros. Os diplomatas precisam, urgentemente, resgatar seu amor-próprio e encontrar uma forma de expressar seu desconforto com a promiscuidade entre o Itamaraty e a ideologia governamental.


segunda-feira, 15 de junho de 2020

Os embaixadores ideológicos - Mathias Alencastro (FSP)

Os embaixadores ideológicos
O bolsonarismo está corroendo o Itamaraty
Mathias Alencastro
Folha de S. Paulo, 15/06/2020
Nesta altura do ano, paira sobre Luanda uma neblina úmida e ofuscante, conhecida localmente como cacimbo.
A capital angolana fica ainda mais desconfortável para os expatriados. Talvez uma malaise existencial esteja na origem do gesto desesperado do embaixador do Brasil no país, Paulino Franco de Carvalho Neto.
Numa missiva dirigida a um ex-ministro e atual colunista do Jornal de Angola, o diplomata adotou um tom incompatível com o cargo, acusando o angolano de proferir “barbaridades” sobre o Brasil e afirmando que Jair Bolsonaro tem um “compromisso inquebrantável com a democracia”, apesar de ser mundialmente conhecido por frequentar protestos golpistas.
Segundo a maioria dos especialistas, a decadência do Itamaraty tem nome e sobrenome: Ernesto Araújo. O advento dos embaixadores ideológicos revela que a instituição no seu todo está sendo corroída pelo bolsonarismo.
Entre muitas outras pérolas, merece destaque o ataque do embaixador na Espanha, Pompeu Andreucci Neto, ao El País. Com o vocabulário típico de um guerrilheiro guevarista, ele denunciou a “vocação neocolonialista” do jornal.
Na sua reação a um artigo crítico do Le Monde, o embaixador na França, Luís Fernando Serra, explicou que os governadores de oposição viram no “confinamento estrito” uma oportunidade para derrubar os “excelentes indicadores econômicos” da “administração Bolsonaro”.
Vale tudo para salvar o presidente, inclusive rebaixar a inteligência de outros políticos eleitos democraticamente.
O texto do embaixador em Luanda tem especial peso simbólico. Ele foi publicado dias depois de o Brasil anunciar o encerramento das embaixadas na Libéria e em Serra Leoa.
Angola é o lugar onde os grandes diplomatas Ítalo Zappa e Ovídio de Mello reinventaram a política africana-brasileira em plena ditadura. Um monumento à independência intelectual e moral do Itamaraty.
Cabe lembrar que o embaixador ideológico é uma raridade nas democracias. Na sua busca por um rottweiler para a embaixada da Alemanha, Donald Trump precisou contratar o relações-públicas Richard Grenell. Funcionários de carreira preferiram desertar do Departamento de Estado a manchar a sua biografia.
Mas Brasília não tem o equivalente de uma K Street, a rua de Washington repleta de ONGs e think tanks que contratam servidores desiludidos com os rumos da vida profissional.
No Itamaraty, segunda vida rima com aposentadoria. No entanto, o embaixador no Reino Unido, Fred Arruda, autor de uma sóbria resposta ao Financial Times, mostrou que é possível defender o governo sem vestir a camisa de bolsominion.
Quando a roda girar, os embaixadores mais assanhados regressarão ao escritório com o sorriso maroto de quem passou do ponto, e tudo será timidamente esquecido. Poderia ser diferente.
O Quai d’Orsay tratou de cortar as asinhas dos diplomatas franceses que embarcaram na tentativa de instrumentalização do ministério por Nicolas Sarkozy.
Caberá à sociedade civil cobrar ao Itamaraty uma reação a esses desvarios, num momento em que precisávamos, talvez mais do que nunca, de diplomatas bombeiros, em vez de incendiários.
Mathias Alencastro
Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).

segunda-feira, 22 de julho de 2019

O Itamaraty saqueado, esquartejado - Mathias Alencastro (FSP)


Indicação de Eduardo Bolsonaro leva Itamaraty a risco de implosão

A indicação de embaixadores de fora da carreira diplomática não é apenas moralmente aceitável como também é perfeitamente banal nas democracias ocidentais.

As coisas se complicam quando motivações espúrias estão por trás das escolhas e os indicados demonstram absoluta falta de experiência para o cargo.

Um terço dos embaixadores indicados por Donald Trump contribuíram financeiramente para a sua vitoriosa campanha presidencial de 2016. Somente 5% possuíam algum tipo de conhecimento prévio da região onde servem atualmente. Os restantes tinham apenas fritado hambúrgueres.

Na era Obama, o finado senador republicano John McCain se indignou com a escolha de Colleen Bell para chefiar a embaixada na Hungria. A produtora do melodrama "Paixão e Ódio" tinha zero experiência internacional, mas era um importante cabo eleitoral do presidente democrata na Califórnia.

Imune a esse tipo de intervenção presidencial, o Brasil está prestes a entrar numa nova era com a indicação de Eduardo Bolsonaro para a embaixada em Washington.

Manifestamente antirrepublicana, ela abre um precedente irreversível, que expõe a política externa a todo tipo de absurdo.

Depois de o Senado aprovar a nomeação de Eduardo, o que impedirá Jair de indicar Marco Feliciano para Tel Aviv, algum ideólogo das redes sociais para Roma, e, por que não, Luciano Hang para Tóquio?

A mais grave consequência desse processo seria a implosão do Itamaraty. A liga dos embaixadores amadores trataria diretamente com quem os designou —o presidente— , esvaziando a instituição dos seus poderes discricionários.

Outro efeito perverso seria a exposição do Brasil aos erros crassos dos seus deslumbrados, facilmente manipuláveis por diplomatas mais experientes de outros países.

Por fim, nada garante que essas manobras surtam o efeito esperado. Theresa May e Emmanuel Macron fizeram de tudo para estabelecer uma relação de confiança com Trump. Os seus respectivos embaixadores acabaram regressando com o rabo entre as pernas.

Mas o mal já está feito. Se Bolsonaro recuar, ele pode seguir os passos de Trump, que também enfrentou resistência no Senado, e vetar a indicação de novos embaixadores. Por esse motivo, postos relevantes para a diplomacia americana, como México e Austrália, permanecem desocupados.

O impasse se deve, em parte, à corajosa reação do corpo diplomático americano às intervenções de Trump. Embaixadores entregaram os seus cargos, funcionários se demitiram.

No Brasil, tem sido o contrário.

Servil, Ernesto Araújo, um diplomata de carreira, vem ratificando alegremente a devassa, consolidando a ruptura com a ideia centenária de que o Itamaraty era uma instituição imune à politicagem do Alvorada.

Frequentemente apresentado pela imprensa como um desequilibrado, ele tem se revelado ser um zeloso ajudante de obras do presidente.

Resta saber se os restantes diplomatas vão continuar tolerando por muito tempo o saque do Palácio.

Mathias Alencastro
Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Itamaraty Blues - Mathias Alencastro

Itamaraty blues

Ernesto Araújo acelera um declínio que se dá também em outros governos

Ernesto Araújo tem o voluntarismo de personagens da “Comédia Humana” de Balzac, que querem galgar rapidamente os escalões da alta sociedade, e a alegria do protagonista de um romance de Michel Houellebecq —um cara de meia-idade em plena crise existencial que redescobre o sentido da vida depois de uma epifania.
Tudo bem se o leitor distraído tende a confundir Ludwig Wittgenstein com um zagueiro da seleção alemã dos tempos de Franz Beckenbauer. O importante, para o chanceler Araújo, é continuar disseminando pelas redes a boa palavra do novo governo.
Talvez essa nobre missão impeça o chanceler de reparar nas mudanças profundas que ele está provocando na sua própria instituição.
Pois além de libertar o Itamaraty das suas amarras ideológicas, ele também está libertando a Esplanada das amarras do Itamaraty. Nos últimos 20 dias, tem sido notável constatar o surgimento de novos patrões da política externa.
Paulo Guedes, o ministro da Economia, está se tornando o interlocutor exclusivo do capital estrangeiro. Sergio Moro está tornando o Ministério da Justiça e Segurança Pública em um ator autônomo da cooperação internacional bilateral e multilateral.
Treinados na experiência formadora das missões de paz no Haiti e nos países africanos, os generais do Planalto estão confortáveis na posição de mediadores entre o governo e as instituições internacionais. 
É caso para se perguntar para que servem os diplomatas no novo governo.
O dilema existencial da diplomacia brasileira não vem de hoje —todos se lembram dos tempos de cólera sob Dilma Rousseff (2010-2016).
No mais, o esfriamento nas relações entre elites políticas e diplomatas, consideradas a crème de la crème dos servidores de Estado, acontece no mundo inteiro.
Nos Estados Unidos, Donald Trump indicou o magnata do petróleo Rex Tillerson (depois substituído por Mike Pompeo, deputado do Kansas alçado a diretor da CIA, a Agência Central de Inteligência do país) para amainar os diplomatas e privilegiar novos atores, como o chanceler informal e coincidentemente marido da sua filha Ivanka, Jared Kushner.
Na França de Emmanuel Macron, os peritos da famosa “célula do Eliseu”, que assessoram diretamente o presidente, acumularam imenso poder discricionário na Quinta República.
No Reino Unido, todos os membros do governo têm um palpite sobre o maior desafio internacional desde a Segunda Guerra Mendial (1939-1945), o “brexit”. Todos menos os diplomatas, afastados das negociações e completamente inaudíveis.
Os recursos do Ministério das Relações Exteriores desses países caíram drasticamente nos últimos 30 anos.
Se a tendência continuar se agravando, os diplomatas correm o risco de conhecer o destino dos atendentes de voo, outrora admirados e invejados por todos.
Haverá resistência ao processo em curso de redução de poderes do Itamaraty. Os diplomatas recorrerão a sua habilidade política e à memória institucional para impedir ou pelo menos adiar o seu ocaso. Afinal, o prestígio e a competência de cada um deles permanece incontestável.
Mas o fato é que a ideia bizarra de transformar o Itamaraty no Farol de Alexandria do populismo tropical está comprometendo a sacralidade da instituição e, de quebra, acentuando o seu declínio.