Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
Nunca antes na história da diplomacia brasileira, ela tinha sido tão conspurcada como sob o tacão dos ignorantes bolsonaristas, os ineptos em relações internacionais, os sabujos e fanáticos do guru destrambelhado da Virgínia, aquele debiloide grosseiro que orienta o presidente despreparado e o chanceler acidental, submisso ao bando de bárbaros.
Como diplomata, sinto-me envergonhado pelo espetáculo lastimável de retrocessos inacreditáveis na diplomacia profissional e pela imagem diminuída do Brasil no mundo.
Como diria o Visconde de Cabo Frio, mas em circunstâncias totalmente diferentes a propósito da gestão do Itamaraty: "Estamos esperando que essa gente vá embora".
Paulo Roberto de Almeida
Diplomacia em cacos
A escalada negacionista
Por Mary Zaidan - Atualizado em 12 Jul 2020, 04h36 - Publicado em 12 Jul 2020, 08h30
O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, nas negociações do Pacto de Letícia pela Amazônia, Colômbia - 06/09/2019 Raul Arboleda/AFP
O reiterado descaso do presidente Jair Bolsonaro pela pandemia que já tirou a vida de mais de 70 mil brasileiros tem um rival quase imbatível: o desempenho do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, na dupla tarefa de desacreditar o vírus e o Brasil.
Desde que a Covid-19 desembarcou no país, o chanceler tenta caracterizá-la como mal criado e disseminado pela esquerda – o “comunavírus”, como ele gosta de tratar o que a turma bolsonarista chama de “vírus chinês”. Em abril, publicou em seu blog pessoal um artigo em que acusa a Organização Mundial da Saúde de usar a pandemia para incrementar um “projeto globalista” na direção ao comunismo.
No texto, o ministro ressalta que o comunismo embutido no “vírus ideológico” – considerado por ele mais perigoso que a Covid-19 – já estava sendo executado pelo “climatismo ou alarmismo climático”, ou sob a égide da “ideologia de gênero, do dogmatismo politicamente correto, do imigracionismo, do racialismo, do antinacionalismo, do cientifismo”. Um libelo de arrepiar até terraplanistas.
A escalada negacionista continuou a se aprofundar, incluindo organismos estatais para divulgá-la.
Na terça-feira, 14, Araújo promove, por meio da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), órgão de pesquisa do Itamaraty, a conferência virtual “Memória do comunismo e atualidade do vírus da mentira”, com o jornalista e escritor Federico Jiménez Losantos. Apresentador do La Mañana, programa matutino de audiência da rede espanhola Code, Losantos é um achado: um maoísta desencantado, com discurso aclamado pela direita extrema, que se autodefine como liberal.
Outras palestras no gênero foram realizadas ao longo do ano. A conjuntura internacional no pós-coronavírus teve como debatedores os neoespecialistas e assessores especiais da Presidência da República Felipe G. Martins e Arthur Weintraub, irmão do ex-ministro da Educação. A despeito de ter sido o pior titular da pasta a se sentar na Esplanada – ou até por esse motivo -, o antiglobalista convicto Abraham ganhou assento no Banco Mundial como prêmio de consolação pela fidelidade canina ao presidente Bolsonaro.
A Funag recebeu também o moçambicano Gabriel Mithá Ribeiro, polêmico defensor de teses no mínimo heterodoxas. Para o autor do livro “Um século de escombros: pensar o futuro com valores morais da direita”, o racismo não existe mais, o colonialismo nunca existiu, e o “pai intelectual do Brasil atual é o professor Olavo de Carvalho”.
O ciclo de conferências tem causado desconforto a diplomatas, que só não põem a boca no trombone em respeito ao Itamaraty e por saber que governos passam e a instituição fica. Alguns deles não escondem que gostariam que esse passasse depressa.
Nada contra o pensamento de direita que em muito enriquece a governança em diversas partes do mundo. Nem mesmo aversão às suas correntes mais radicalizadas, ainda que sofram dos males do fanatismo, válido para as dois polos ideológicos. Mas quando promovidos por uma organização de Estado, os encontros teriam que, pelo menos, tentar parecer plurais. Seria conveniente ainda se despirem do caráter catequizador e do eloquente proselitismo ao governante da vez.
Como se um erro autorizasse outros, alguns dirão: os governos do PT faziam ações semelhantes e ninguém reclamava. Mentira para boi dormir ou para iludir a boiada. Foram duramente criticados, seja no conteúdo pró-ditaduras de esquerda nas Américas, na África e no Oriente Médio, seja no desperdício de dinheiro público para promover encontros de formação política.
Não é necessário recorrer ao Google ou fazer qualquer esforço de memória para apontar que o início da partidarização das Relações Exteriores se deu sob o comando de Celso Amorim, no governo Lula. Ali, o Itamaraty começou a envergonhar seu patrono Rio Branco. De lá para cá, respirou um pouco no curto período de Michel Temer para, de novo, cair na esparrela.
Com sua agenda desconectada da razão, da lógica e do mundo, Araújo é um dos protagonistas ativos do massacre da imagem do Brasil lá fora, golpeada cotidianamente pelo negacionismo do presidente Bolsonaro diante da pandemia, desmatamento recorde e desdém ambiental.
Como o país precisa de gente capaz de desfazer nós e não de apertá-los, Araújo entrou na mira da turma do “segura o touro”. Os que defendem um governo sem arroubos tentam convencer Bolsonaro a colocar na bandeja as cabeças do chanceler e do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.
Salles até pode ser servido. Araújo é prata da casa.
Enquanto isso, a cristaleira refinada anos a fio pela invejável diplomacia brasileira, que começou a se quebrar no governo Lula, se estilhaça de vez. Vira cacos.
Nesta altura do ano, paira sobre Luanda uma neblina úmida e ofuscante, conhecida localmente como cacimbo.
A capital angolana fica ainda mais desconfortável para os expatriados. Talvez uma malaise existencial esteja na origem do gesto desesperado do embaixador do Brasil no país, Paulino Franco de Carvalho Neto.
Numa missiva dirigida a um ex-ministro e atual colunista do Jornal de Angola, o diplomata adotou um tom incompatível com o cargo, acusando o angolano de proferir “barbaridades” sobre o Brasil e afirmando que Jair Bolsonaro tem um “compromisso inquebrantável com a democracia”, apesar de ser mundialmente conhecido por frequentar protestos golpistas.
Segundo a maioria dos especialistas, a decadência do Itamaraty tem nome e sobrenome: Ernesto Araújo. O advento dos embaixadores ideológicos revela que a instituição no seu todo está sendo corroída pelo bolsonarismo.
Entre muitas outras pérolas, merece destaque o ataque do embaixador na Espanha, Pompeu Andreucci Neto, ao El País. Com o vocabulário típico de um guerrilheiro guevarista, ele denunciou a “vocação neocolonialista” do jornal.
Na sua reação a um artigo crítico do Le Monde, o embaixador na França, Luís Fernando Serra, explicou que os governadores de oposição viram no “confinamento estrito” uma oportunidade para derrubar os “excelentes indicadores econômicos” da “administração Bolsonaro”.
Vale tudo para salvar o presidente, inclusive rebaixar a inteligência de outros políticos eleitos democraticamente.
O texto do embaixador em Luanda tem especial peso simbólico. Ele foi publicado dias depois de o Brasil anunciar o encerramento das embaixadas na Libéria e em Serra Leoa.
Angola é o lugar onde os grandes diplomatas Ítalo Zappa e Ovídio de Mello reinventaram a política africana-brasileira em plena ditadura. Um monumento à independência intelectual e moral do Itamaraty.
Cabe lembrar que o embaixador ideológico é uma raridade nas democracias. Na sua busca por um rottweiler para a embaixada da Alemanha, Donald Trump precisou contratar o relações-públicas Richard Grenell. Funcionários de carreira preferiram desertar do Departamento de Estado a manchar a sua biografia.
Mas Brasília não tem o equivalente de uma K Street, a rua de Washington repleta de ONGs e think tanks que contratam servidores desiludidos com os rumos da vida profissional.
No Itamaraty, segunda vida rima com aposentadoria. No entanto, o embaixador no Reino Unido, Fred Arruda, autor de uma sóbria resposta ao Financial Times, mostrou que é possível defender o governo sem vestir a camisa de bolsominion.
Quando a roda girar, os embaixadores mais assanhados regressarão ao escritório com o sorriso maroto de quem passou do ponto, e tudo será timidamente esquecido. Poderia ser diferente.
O Quai d’Orsay tratou de cortar as asinhas dos diplomatas franceses que embarcaram na tentativa de instrumentalização do ministério por Nicolas Sarkozy.
Caberá à sociedade civil cobrar ao Itamaraty uma reação a esses desvarios, num momento em que precisávamos, talvez mais do que nunca, de diplomatas bombeiros, em vez de incendiários.
Mathias Alencastro
Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
As causas e os estragos da pior crise de imagem internacional do Brasil
O fracasso no combate à pandemia e as ameaças às instituições e ao meio ambiente evidenciam ao mundo o desgoverno do país
Por Edoardo Ghirotto, Eduardo Gonçalves - Atualizado em 29 maio 2020, 09h44 - Publicado em 29 maio 2020, 06h00
O Brasil encontra-se à beira de um lockdown diante da comunidade internacional. O estado de isolamento agudo daquele que seria o país do futuro está materializado na balbúrdia do presente por uma conjunção de catástrofes, a começar pela tragédia humanitária nacional, com a liderança mundial de mortes diárias por Covid-19 (rumando firme para a casa de 30 000 óbitos). Em vez das doses cavalares de prudência, de organização e de responsabilidade adotadas pela esmagadora maioria do planeta como remédios para conter a doença, por aqui o caminho foi apostar na improvisação, na negação da ciência e no desprezo à gravidade do problema. Na esteira do estrago do coronavírus vieram o agravamento da crise política, a queda acelerada rumo ao fundo do poço da recessão, o aumento dos insultos às instituições, as novas ameaças ao meio ambiente e a exacerbação de discursos e gestos autoritários, com direito a um flerte explícito com o militarismo. Em meio ao caos, “Bolsonero”, um dos vários apelidos criados recentemente por veículos de imprensa da Europa e dos Estados Unidos para classificar a postura do presidente, vai aumentando o volume de seu mantra de chamar a população de volta às ruas e de procurar inimigos por todos os cantos, boa parte deles imaginários, a fim de responsabilizá-los pela situação. Para mostrar que não teme a “gripezinha” e estimular as pessoas a fazer o mesmo, o capitão não perde a oportunidade de se expor sem os devidos cuidados, e em uma das últimas aparições sem a proteção da redoma do séquito bolsonarista foi saudado com panelaços e gritos de “assassino” enquanto degustava um cachorro-quente em Brasília.
Esse flerte irracional com o perigo parece cada vez mais indigesto e incompreensível aos olhares estrangeiros. Não bastasse provocar ondas permanentes de espanto e de preocupação pelo estado de desgoverno até entre os vizinhos mais pobres da América do Sul, o país passa a sofrer as inevitáveis consequências econômicas por causa dessa política confusa em um mundo globalizado. São inúmeros os indicadores que comprovam como a instabilidade afugenta o capital, o que só agrava a situação do momento. O real se tornou uma moeda tóxica, com desvalorização de aproximadamente 30% em relação ao dólar neste ano. Segundo o Banco Central, investidores estrangeiros retiraram daqui 31,4 bilhões de dólares de aplicações financeiras entre janeiro e abril, enquanto a entrada de investimentos diretos despencou de 5,1 bilhões de dólares em abril de 2019 para insignificantes 234 milhões no último mês. Em sinal de alerta, a agência Fitch rebaixou a perspectiva da nota de crédito do país de neutra para negativa. “O Brasil se tornou um pária internacional”, disse a VEJA o historiador e brasilianista britânico Kenneth Maxwell. “Uma situação que foi amplificada pelo comportamento irresponsável de Bolsonaro.”
Uma crise econômica no período pós-pandemia seria inevitável. A Alemanha, considerada um dos modelos no enfrentamento da doença, entrou nesta semana em recessão técnica, após as quedas no consumo e nas exportações derrubarem o PIB do primeiro trimestre em 2,2%. Para o Brasil, as consequências tendem a ser piores. O Instituto Internacional de Finanças revisou recentemente a previsão de queda do PIB para 6,9% em 2020. No campo político, Bolsonaro se equiparou aos ditadores de Nicarágua, Turcomenistão e Bielorrússia ao negar a gravidade da Covid-19. Também rodou o mundo a irrestrita defesa que fez ao uso da cloroquina, sem que houvesse comprovação científica, e as brigas que comprou com governadores e prefeitos que aplicavam medidas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde. “Hoje, a nação é sinônimo de tragédia”, afirma o brasilianista Jeffrey Lesser, diretor do Instituto Halle de Pesquisa Global da Universidade Emory, nos Estados Unidos. “O país se tornou um problema sanitário e econômico global.”
Um exemplo concreto da perda de reputação com a crise do coronavírus é a recente proibição que os Estados Unidos impuseram a todos os voos vindos do Brasil. “Não quero pessoas infectando meu povo”, disse Donald Trump, considerado por Bolsonaro um aliado de primeira hora, ao explicar por que cogitava impedir a entrada de brasileiros. No pior dos cenários, tendo em conta o aprofundamento de seu atual grau de isolamento pelas grandes nações e pelos blocos econômicos, o país teria de lidar com a suspensão de voos, a proibição do tráfego marítimo e o bloqueio à entrada de produtos em importantes mercados, como os Estados Unidos, a China e a União Europeia. Para o cientista político chileno Jorge Heine, professor da Universidade de Boston e um dos autores do Manual da Diplomacia Moderna de Oxford, o Brasil atropela dois pré-requisitos imprescindíveis nas relações internacionais: credibilidade e previsibilidade. “O país as tinha de sobra, mas isso não ocorre mais”, afirma o estudioso. Desde 2019, prossegue o especialista, o Brasil alcançou a rara posição em que conseguiu antagonizar praticamente com o mundo inteiro. “A comunidade internacional está horrorizada com o presidente dizendo ‘e daí?’ enquanto o país conta dezenas de milhares de mortos”, diz Heine. “Será preciso um enorme esforço para restaurar a posição que o Brasil um dia teve no mundo.”
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Se há características que certamente não fazem parte do governo Bolsonaro, elas são “credibilidade e previsibilidade”. No último dia 22, o ministro do STF Celso de Mello autorizou a divulgação do vídeo da reunião ministerial em que o presidente ameaça interferir na pasta da Justiça para proteger familiares e amigos de investigações. Além do disparate autoritário, a filmagem de quase duas horas mostra o presidente e seus ministros sem que haja qualquer filtro. O jornal britânico The Guardian dedicou um texto só para os 34 palavrões que Bolsonaro disse na reunião. Pior: o mundo pôde ver o ministro da Educação, Abraham Weintraub, pedindo a prisão dos ministros do STF, assim como o fez a ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, em relação a governadores e prefeitos. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, voltou a pôr fogo nas preocupações internacionais com a preservação da Amazônia ao dizer que o governo deveria aproveitar a distração da imprensa com a pandemia de Covid-19 para “passar a boiada”, alterando regramentos e flexibilizando normas. O resultado só não foi mais desastroso porque Celso de Mello omitiu os ataques que o ministro da Economia, Paulo Guedes, dirigiu à China, o principal parceiro comercial do Brasil.
O vídeo da reunião ministerial provocou estrago significativo na imagem do governo brasileiro no exterior. O jornal britânico conservador Financial Times, tido como a bíblia do mercado financeiro, veiculou, na segunda 25, uma coluna com o seguinte título: “O populismo de Jair Bolsonaro está levando o país ao desastre”. O presidente deu de ombros, classificando a imprensa internacional como “de esquerda”. A tática do confronto também foi adotada pelo chanceler Ernesto Araújo, que já chamou a pandemia de “comunavírus” e varreu do Itamaraty quadros renomados que não comungam de sua pregação. Alinhado a essa visão estreita, Luís Fernando Serra, embaixador na França, emitiu no dia 19 uma carta criticando a direção do Le Monde, a quem ele acusou de inventar ficções quando o jornal francês publicou um editorial devastador sobre a insensatez de Bolsonaro no combate ao coronavírus.
No jargão diplomático, o recorde de desatinos dos últimos tempos fez o Brasil queimar seu capital de soft power, como se define a habilidade de uma nação ter o que quer por meio da atração em vez da coerção. “Tradicionalmente, o Brasil tinha um soft power que emanava de sua reputação por políticas competentes e progressistas”, diz Joseph Nye, idealizador desse conceito e professor emérito da Harvard. “Essa imagem se perdeu com a forma como Bolsonaro lida com a pandemia.” As consequências já são sentidas no alijamento de representatividade da nação nos organismos multilaterais. Bolsonaro não participou da reunião entre os presidentes da América do Sul para tratar do combate à Covid-19 e ficou de fora de uma força-tarefa mundial para acelerar a produção de uma vacina para a doença. Entre diplomatas e especialistas em comércio exterior, corre a versão de que a renúncia de Roberto Azevêdo à direção da Organização Mundial do Comércio (OMC) foi motivada pela incapacidade de domar os desvarios do governo brasileiro na área de relações exteriores e pela iminência de sanções contra o país. A rigor, o Brasil tem hoje apenas uma posição de liderança entre entidades do primeiro time global: José Sette, na direção da Organização Internacional do Café.
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Não é a primeira vez que o Brasil é posto de lado pela comunidade internacional. Na década de 70, na ditadura militar, o país sofreu com o isolamento em razão das violações dos direitos humanos, tendo como auge o tenebroso período do AI-5 durante o governo Médici (aliás, uma época incensada por Bolsonaro). Mas, para Rubens Barbosa, que foi embaixador de 1999 a 2004 nos Estados Unidos, há uma grande diferença entre o isolamento da época do período militar e o momento atual. “Antes, a sanção era só política. Agora, também é econômico-comercial”, compara.
A preservação do meio ambiente é uma das questões com maior potencial para gerar novos prejuízos. Em 2019, as cenas de desmatamento da Amazônia e a postura tíbia do governo diante do problema já haviam provocado uma crise internacional. O alerta voltou a ser aceso com as palavras de Ricardo Salles no tristemente célebre encontro de 22 de abril e a aproximação da temporada seca, quando o volume de queimadas costuma explodir. “Naquela reunião minha manifestação não tinha nada a ver com a Amazônia. Eu estava me referindo a normas infralegais, abaixo das leis. Reitero: estava falando de todos os ministérios”, afirmou a VEJA Salles. “Dito isso, defendo que, se não avançarmos na regulação fundiária da região, não adianta políticas de comando e controle. A fiscalização tem efeito limitado, é difícil cobrir um território que equivale a dezesseis países da Europa”, completa. Representa mesmo um desafio proteger uma porção de terra tão vasta, mas é fato também que o Ministério do Meio Ambiente não tem colaborado muito com o trabalho, punindo agentes do Ibama que aplicam corretamente as leis contra madeireiros e garimpeiros ilegais, entre outras barbaridades. Mesmo com o foco na pandemia, os governos europeus andam atentos à forma como o país trata essa área. Está prevista para o meio deste ano a assinatura do acordo do Mercosul com a União Europeia, que tem um capítulo inteiro dedicado ao cumprimento de acordos ambientais que vão desde a redução na emissão de carbono à preservação da Amazônia. “O governo brasileiro está avançando com sua política de expansão de atividades econômicas e comerciais predatórias na Amazônia”, escreveu a deputada portuguesa Isabel Santos, que entrou com uma representação no Parlamento Europeu que pede investigações sobre a atuação brasileira na região.
A imagem de um governo caótico também é um espantalho para a captação de negócios para o Brasil, sobretudo em um momento em que empresas estão repensando as suas operações e cortando gastos no mundo todo. “O investidor pensa: vou colocar o meu dinheiro em outro país, que até pode ter risco e oportunidades semelhantes, mas sem os problemas de gestão do Brasil”, diz o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega. VEJA conversou com executivos de três gigantes multinacionais do setor químico, automotivo e de vestuário. O sentimento é desesperador. Todos relataram não ter mais margem para fazer demandas às matrizes, seja para trazer novas linhas de produção, seja para pedir o capital necessário para manter saudáveis os caixas das sedes no Brasil. As matrizes orientam os executivos para que busquem fundos localmente, porque a prioridade é salvar outras operações ao redor do mundo. Os motivos elencados são o somatório de ruídos graves e constantes vindos do presidente, o confronto permanente entre os poderes, a perspectiva de uma crise maior do que em outros países e a projeção de uma retomada econômica mais lenta do que em outras localidades. “Quando se faz uma política externa ornamentada ideologicamente e atrelada a indivíduos, o cenário que se desenha é catastrófico”, diz o cientista político Hussein Kalout, pesquisador da Universidade Harvard.
Mesmo diante de uma situação tão crítica, é possível ainda evitar o pior? A firmeza de instituições como o STF diante dos arroubos autoritários e o potencial represado do Brasil dão sinais de que nem tudo está perdido. Um exemplo dessa capacidade de resiliência é o agronegócio. Desde o início do ano passado, o país abriu 48 mercados para produtos do setor rural nacional. Trata-se de um feito impressionante, pois parte dele ocorreu durante a escalada mundial da pandemia e em meio às constantes caneladas do governo no maior cliente, a China. “A boa notícia é que, com mudanças de administração ou de políticas, os países podem recuperar sua reputação com o passar do tempo”, diz Joseph Nye. De fato, há tempo para transformações enquanto as agências de classificação não cogitam pôr o país no clube dos inadimplentes. Antes da pandemia, a expectativa era de que o Brasil retomasse o grau de investimento em 2022. A hipótese, agora, beira a zero, mas não cair para o nível de calote já é alguma coisa. Economistas mais otimistas ainda veem uma janela de oportunidades com a profunda crise econômica para consertar gargalos antigos do Brasil, como os setores de infraestrutura e de tecnologia. Eles citam a tese da “destruição criativa”, do austríaco Joseph Schumpeter, que se propõe a explicar alterações bruscas no capitalismo. Se por um lado a inovação cria outras opções de emprego e atividades, por outro ela também torna obsoletas modalidades antigas. “É a característica desta era e temos de permitir que essa destruição promova produtividade e eficiência”, afirma Adriano Pires, sócio-fundador do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE). É um chamamento para o governo Bolsonaro recobrar a lucidez e a razão. Há um enorme trabalho pela frente para recuperar o estrago feito até aqui.
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Com reportagem de Victor Irajá e Jennifer Ann Thomas
Após críticas, Itamaraty cancela clipping internacional para embaixadores
Ernesto Araújo interrompeu o serviço que reunia reportagens da imprensa estrangeira após jornais britânicos publicarem textos contrários a Bolsonaro
Por Edoardo Ghirotto - Atualizado em 29 maio 2020, 10h32 - Publicado em 29 maio 2020, 10h19
O Itamaraty cancelou nesta semana o serviço diário de clipping que reunia reportagens publicadas por veículos de imprensa estrangeiros sobre o Brasil. A decisão foi tomada pelo chanceler Ernesto Araújo após um aumento nas críticas ao presidente Jair Bolsonaro ser registrado na mídia internacional.
Nos últimos dias, até jornais de linha editorial conservadora passaram a criticar a negligência do presidente no combate à pandemia de Covid-19. O jornal britânico Financial Times, tido como a bíblia do mercado financeiro, afirmou que o “populismo de Bolsonaro está levando o país ao desastre”. Outro jornal britânico, o The Daily Telegraph, chamou Bolsonaro de “o homem que quebrou o Brasil”.
Em resposta às críticas, Bolsonaro afirmou que “a imprensa mundial é de esquerda” e que o presidente americano Donald Trump “sofre muito nos Estados Unidos também”.
Esta entrevista do presidente emérito do CEBRI não tinha sido registrada neste blog, que no dia 11 de maio transcreveu apenas a nota do CEBRI, tal como publicada no jornal Valor Econômico, neste link: Nota crítica do Cebri sobre a Política Externa do ...
A gestão do Ministério das Relações Exteriores sob a tutela de Ernesto Araújo tende a levar o Brasil ao isolamento e à irrelevância perante a comunidade internacional, afirmou à Sputnik Brasil um ex-embaixador com ampla vivência na diplomacia brasileira.
O presidente emérito do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), Luiz Augusto de Castro Neves, foi embaixador do Brasil na Argentina, Japão e China, entre outros países, além de ter sido secretário de Assuntos Estratégicos do Ministério das Relações Exteriores.
Entre outras afirmações, o documento se refere a "um acumulado de erros recentes e que atingiram agora um patamar de disfuncionalidade e de prejuízo para o país ao seguir o caminho oposto do que seria natural durante a crise provocada pelo novo coronavírus".
"[O que motivou a nota] foi a disfuncionalidade crescente da política externa brasileira está tendo como consequência a irrelevância da atuação internacional do governo brasileiro, o que é grave e altamente prejudicial aos interesses brasileiros", disse Neves à Sputnik Brasil.
O presidente emérito do Cebri é um dos 27 signatários do comunicado, que ressalta que "em datas recentes o governo brasileiro, através do Itamaraty [...] tem feito declarações gratuitas e inconsequentes, proferido votos e adotado posições que nos enfraquecem e isolam sem com isso, de forma alguma, fortalecer a defesa de nossos interesses".
"Se acumulam as queixas e ressentimentos com posições nossas que se desviam de nossa longa tradição de cooperação construtiva com a sociedade internacional. Tudo isso tem um preço que pode vir a nos ser cobrado quando mais precisamos de uma coisa que já tínhamos merecidamente conquistado e que era o mais amplo respeito da sociedade internacional que via no Brasil um parceiro amistoso, confiável e, acima de tudo, generoso", acrescentou a nota.
Neves pontuou que parece claro que a política externa brasileira esteja sem rumo, "com algumas manifestações esparsas, grosseiras e inconsequentes". Presidente do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), o diplomata não mencionou diretamente, mas o órgão lida com o maior parceiro comercial do Brasil, o mesmo atacado por ministros e filhos de Bolsonaro recentemente.
"Além das 'declarações gratuitas e inconsequentes', o Brasil tende à pior forma de isolamento, que é aquele decorrente da irrelevância de sua atuação em suas relações internacionais; acrescente-se a conduta errática de algumas autoridades em relação a países com os quais o Brasil tem parcerias estratégicas relevantes para o maior interesse nacional, que é o de promover seu desenvolvimento econômico e social", completou o ex-embaixador.
Na sexta-feira (8), vários ex-chanceleres brasileiros – incluindo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – divulgaram em jornais de grande circulação um manifesto contra a atual situação do Itamaraty, que é associado mais ao alinhamento automático com os EUA e o negacionismo do que com o multilateralismo que sempre regeu a política externa do país.
Não sei onde está enterrado o corpo do Barão do Rio Branco (ok, podemos recorrer ao Google), mas tenho certeza de que há tremores enormes por ali. No túmulo dele e de todos os seus sucessores que aqui já não se encontram.
Ver aquela cena do atual chanceler, como um simples tarefeiro, um mero militante, descendo a rampa do Planalto pra buscar e estender uma bandeira para o chefe, foi de doer, foi de dar muita, mas muita vergonha. Não é preciso ter punhos de renda pra sentir engulhos com a imagem de um homem pequeno, que não entende a função e a importância do cargo.
Foi o que fez Ernesto Araújo no último domingo, na rampa do Palácio do Planalto. Apequenou-se, diminuindo também a relevância histórica do Ministério das Relações Exteriores, do qual é titular. Uma lista dos que ocuparam a principal cadeira do Itamaraty apenas da redemocratização pra cá pode dar uma ideia do que se está falando: Olavo Setúbal, Abreu Sodré, Francisco Rezek, Celso Lafer, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Felipe Lampreia, Celso Amorim, Seixas Corrêa (interino e sogro do atual) … Faltam um ou outro, mas basta. Uns ficaram mais tempo, outros menos. Teve até quem ocupou o lugar do Barão mais de uma vez.
Até os de fora da carreira e com menos afinidade com o tema, como Abreu Sodré, demonstraram mais dignidade e respeito ao cargo. Por cinco anos, como setorista de dois jornais no Itamaraty, acompanhei de perto o trabalho de diplomatas e seus chefes. Sodré foi muita coisa na vida; era um homem rico, com uma belíssima fazenda em São Paulo e apartamento na chiquérrima Avenue Foch, em Paris. Mas não entendia nada de diplomacia, misturava as coisas (inclusive a pronúncia de muitas palavras, para deleite dos jornalistas e caras envergonhadas dos diplomatas), às vezes falava o que não devia… Merece uma crônica à parte, mas aí é uma outra história.
Sodré, no entanto, sabia das suas limitações. Deu autonomia ao seu secretário-geral, o experiente embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima, ouvia os assessores, tinha consideração pelo corpo técnico do ministério.
Quanto aos ex-chanceleres oriundos da carreira, podiam enfrentar em maior ou menor grau alguma resistência interna ou as maldades vindas daquele ofidiário, como também é conhecido o Itamaraty. Mas isso faz parte.
Não sei se seria muita ousadia dizer que o atual chanceler é uma unanimidade. Talvez ele tenha sua turma. Ou os que eternamente bajulam os de cima pra avançarem na carreira. Isso é pouco, muito pouco.
Assim que ele assumiu, perguntei a um amigo diplomata, já aposentado, o que ele poderia me contar de Ernesto Araújo. Recebi uma resposta tipicamente itamarateca: “Não havia nada para contar até pouco tempo atrás, agora há demais….
E isso foi no começo. Hoje, estão todos horrorizados com o que diz, o que não diz, o que escreve e o que fala o chanceler. Cabe sobretudo aos aposentados verbalizarem as críticas. E alguns ex-ministros, que recentemente assinaram um manifesto contra as sandices ditas por Araújo.
Ex-secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores, Marcos Azambuja resumiu o constrangimento – ou, mais que isso, a indignação – com que os antigos diplomatas enxergam a atual gestão: “Nós estamos tendo uma política externa simplesmente lunática, que causa danos a nós mesmos, que é injustificável à luz dos nossos interesses e valores”.
Os desatinos de Ernesto Araújo – do “comunavírus” e outras teorias conspiratórias às agressões a aliados, passando pelo absurdo corte dos jornais brasileiros para os postos no exterior – podem ser conferidos no noticiário. E dariam pano pra muita manga. Mas há analistas mais qualificados se ocupando disso.
A mim, apenas, fica o choque com o registro da imagem, que custei a acreditar ser verdadeira, daquele homem minúsculo a correr pela rampa, resfolegando, pra agradar o chefe. Nem os seguranças faziam este papel… Que vergonha, senhor chanceler!