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sexta-feira, 19 de junho de 2020

O patrimonialismo estatal e os novos bárbaros - Paulo Roberto de Almeida

Meu artigo sobre o novo patrimonialismo estatal no Brasil, desta vez sob o comando dos novos bárbaros, visando inclusive o Itamaraty, que precisa ser preservado de sua sanha destruidora; no Estado da Arte, O Estado de S. Paulo (19/06/2020; link: https://t.co/0pf41nF0sr).


O patrimonialismo estatal e os novos bárbaros

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: discussão de um fenômeno permanente; finalidade: debate público]
O Estado da Arte, O Estado de S. Paulo (19/06/2020; link: https://t.co/0pf41nF0sr?amp=1).


O patrimonialismo, nosso velho conhecido, tem, evidentemente, um longo passado na história do Brasil. Provavelmente, ele terá também um brilhante futuro pelos anos à frente. É o que se constata, em todo caso, por meio das medidas governamentais do “novo Brasil” dos bolsolavistas, que desde já estão identificados à segunda parte do título deste artigo. Eles são os novos bárbaros, pois estão deliberadamente empenhados na destruição de muito do que existe atualmente no Brasil, no plano institucional, segundo se pode julgar pelas palavras e ações do próprio presidente, que é quem comanda, de fato, esses novos bárbaros.
Como devidamente estudado nas obras magistrais do maior sociólogo do século XX, Max Weber, o patrimonialismo é inerente às sociedades tradicionais, e esteve representado em todas as épocas e em quaisquer circunstâncias nas formações políticas que não puderam ainda passar a formas mais elaboradas de organização social e estatal, aquelas compreendidas no universo institucional do que ele chamou de administração racional-legal. Aliás, se por acaso Weber, falecido há exatos cem anos, desembarcasse no Brasil do século XXI – mas isso sempre foi válido para qualquer outra época – teria de refazer sua tipologia das formas de dominação política, embaralhando os seus tipos-ideais, uma vez que conseguimos, por aqui, misturar formas tradicionais, carismáticas e racionais-legais de administração política, todas elas coexistindo ao mesmo tempo e justapostas, como numa colcha de retalhos.
O patrimonialismo, que desembarcou aqui junto com Tomé de Souza, em 1549, mas que já existia no Portugal medieval – como ensinou Raymundo Faoro –, atravessou todas as épocas e todos os regimes políticos, superpondo-se desde os tempos dos “homens de bem”, dominando as administrações locais, passando pelos donatários, governadores-gerais, pelos vice-reis, coexistindo com a corte transplantada, o Reino Unido e sob os dois reinados do Império. A República trouxe poucas mudanças a esse patrimonialismo oligárquico, típico dos regimes tradicionais, mas alguma mudança ocorreu, não se sabe bem se para melhor. 
Mário de Andrade, poeta modernista que se frustrou com o pequeno impacto que teve sobre a sociedade a Semana de Arte Moderna, quase cem anos atrás, traduziu um pouco desse espírito pessimista no seu Macunaíma, o “herói sem nenhum caráter”, cujas páginas já trazem diversos exemplos de patrimonialismo – ou seja, a mistura do público e do privado – nas ações de alguns personagens. Entre 1922 (a Semana) e 1928 (Macunaíma) ele perpetrou um poema – “O poeta come amendoim” – no qual algumas estrofes revelam como o Brasil avançava, mas preservando traços de continuidade, em meio a poucos avanços; disse ele: “progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade”. O fato é que a fatalidade da dominação artificialmente carismática da “era Vargas” introduziu algumas mudanças cosméticas no mandonismo local – uma vez que não se fez nenhuma reforma agrária, a despeito da “revolução burguesa” –, preservando o patrimonialismo no famoso tripé do “coronelismo, enxada e voto” de que falava Vitor Nunes Leal, dez anos antes que Raymundo Faoro dissecasse a continuidade do fenômeno no seu clássico “Os Donos do Poder”. Ele sempre recusou o caráter weberiano de sua obra, mas o fato é que o chamado “estamento burocrático”, base do patrimonialismo brasileiro moderno, continuou sendo preservado mesmo na nova modernização conduzida pelo regime militar poucos anos depois.
Pouco antes que Vitor Nunes Leal consagrasse seu estudo às formas tradicionais de patrimonialismo, de base essencialmente rural, um episódio ao final do Estado Novo revelou uma das novas faces da modernização desse fenômeno: seu caráter “estatal”, ou pelo menos abrigado nos interstícios do Estado burocrático construído na era Vargas e simbolizado, em grande medida, pelo DASP, o Departamento Administrativo do Serviço Público, suposto terminar com o pistolão e o apadrinhamento e disciplinar o ingresso no serviço público. Pois foi entre outubro de 1945, quando ditador foi derrubado pelas Forças Armadas, e janeiro de 1946, quando tomou posse o presidente eleito em dezembro, no primeiro escrutínio desde 1930, que o chefe interino do Estado, José Linhares, presidente da Suprema Corte, facilitou o ingresso em cargos públicos, sem qualquer concurso, de membros de sua extensa família e de inúmeros outros oportunistas, ensejando então o famoso slogan, “os Linhares são milhares”, ou seja, um exemplo típico do novo patrimonialismo de feição estatal. 
A modernização então operada sob a ditadura dos generais foi de fato impressionante, praticamente completando o processo de industrialização substitutiva e, finalmente, levando a cabo a transformação da agricultura, que tinha continuado atrasada mesmo depois que Monteiro Lobato alertava para o perigo das saúvas nos tempos de Mario de Andrade. A Embrapa e a própria capitalização do campo contornaram a necessidade de uma “reforma agrária”, nos moldes pregados por militantes da esquerda e intelectuais como Caio Prado Jr. Mas o patrimonialismo continuou impávido, embora tenha mudado de mecanismos e de ferramentas de atuação, deixando as formas tradicionais de dominação típicas do “Brasil essencialmente agrícola” para assumir as novas vestes do coronelismo eletrônico das redes de rádio e televisão do Brasil moderno: essas mudanças podem ser seguidas nos mapas eleitorais e no deslocamento dos apoios em função das novas políticas de assistencialismo estatal. 
A própria transposição da capital federal para o interior criou ou reforçou essas novas formas, desta vez com a ampliação desmesurada do Estado dirigista e intervencionista, com suas múltiplas corporações públicas, confirmando a “ditadura” do estamento burocrático de que falava Faoro ainda na República de 1946. Tanto a tecnocracia do regime militar quanto a Nova República, consolidada sob a Constituição de 1988 representaram, antes de mais nada, a ascensão irresistível do funcionalismo público, o novo patrimonialismo estatal, com seus novos “senhores feudais” e seus novos “mandarins da República”. A nata da magistratura, por exemplo, é o mais próximo que temos da aristocracia do Antigo Regime, criando para si mesma, aliás, privilégios, prebendas e penduricalhos salariais de que nunca gozou a antiga aristocracia da espada e menos ainda a nobreza de títulos. 
Durante algum tempo, por sinal, a “República Sindical” criada pelos companheiros que ocuparam o poder entre 2003 e 2016, aperfeiçoou ainda mais o velho patrimonialismo dos antigos donos do poder, mas o fizeram à sua maneira, como revelado pelas investigações sobre a gigantesca máquina de corrupção criada e alimentada pelos novos donos do poder, o que permitiria falar de um “patrimonialismo gangsterista”, dadas as técnicas criminosas desvendadas por ocasião do processo do Mensalão; elas foram, depois, expostas amplamente no bojo da Operação Lava Jato, que se ocupou basicamente do chamado Petrolão, mas ainda há muito a ser revelado, pois as operações de “compra e venda” se estenderam a vários outros âmbitos políticos e do funcionalismo público. Aparentemente, o patrimonialismo voltou a formas mais “tradicionais” depois do impeachment e da substituição dos donos do poder.
Independentemente das diferentes formas de patrimonialismo que o Brasil conheceu ao longo da história, sempre se pode dizer que ele permanece impérvio à modernização das instituições, como já constatado por diversos especialistas, entre eles mestre Antônio Paim, um dos grandes analistas do patrimonialismo. Este parece extrair novas forças da extrema fragmentação partidária experimentada no sistema político-eleitoral brasileiro nas últimas décadas, o que multiplica, justamente, as operações de apropriação privada dos bens públicos (o que constitui, como se sabe, o cerne do patrimonialismo de todas as épocas). Tal dispersão da representação cidadã – com muitos partidos criados unicamente para fruir, de forma bem patrimonialista, dos recursos públicos, num processo quase similar ao da multiplicação de igrejas evangélicas, aqui recolhendo dízimos privados – favoreceu inclusive a rejeição da política tradicional, o que abriu espaço à ascensão de novos tipos de populismo, como o que se assiste atualmente no Brasil, apenas com o sinal aparentemente contrário ao populismo de esquerda que vicejou durante três lustros neste século. 
A despeito dos anúncios grandiosos de rejeição da “velha política” e de correção das velhas distorções do sistema político anterior, não existe nenhuma indicação de que as velhas práticas do patrimonialismo – tradicional, ou novo, inclusive gangsterista, não importa – tenham sido aposentadas. Ele se insinua, inclusive, na organização mais weberiana, mais racional-legal, que se poderia conceber no Estado brasileiro desde praticamente dois séculos: o ministério das Relações Exteriores, no qual o recrutamento por concurso e a reserva de mercado para os próprios profissionais da carreira são proverbiais (embora nem sempre tenha sido assim: antes de 1946, muitos diplomatas podiam entrar “pela janela”). Foi anunciado, há pouco, que o governo da “nova política” pensa abrir o Itamaraty a colaboradores recrutados de fora, ou seja, “assessores” que não seriam servidores concursados, mas escolhidos a dedo. Isto nada mais é do que patrimonialismo puro, ou seja, apropriação da coisa pública pelos donos (supõe-se que temporários) do poder, o que nos remete, finalmente, à caracterização dos “novos bárbaros” feita na segunda parte do título deste artigo. 
Na análise weberiana das antigas formas de dominação política, ele destacou o papel da República romana, e da figura do cidadão, protegido por leis, como uma das bases da evolução política na Europa medieval e moderna, que desembocaria finalmente no Estado pós-absolutista. Ora, o Império romano foi submergido por tribos bárbaras, cujos membros tinham no patrimonialismo uma das características do usufruto dos bens públicos e sua transmissão hereditária, sem qualquer controle por algum corpo representativo de “cidadãos”, uma entidade desconhecida nessas formações. O Estado brasileiro atual parece ter sido posto sob o controle dos “novos bárbaros” que emergiram na política sem qualquer estrutura partidária ou institucional, baseados apenas nos instintos primitivos daquele que pretende apresentar-se como “líder carismático”, mas que nada mais representa do que uma espécie de contrafação do conceito weberiano original. 
O Itamaraty, que se orgulhava de ser a mais “weberiana” das corporações de Estado, parece estar prestes a ser submergido por esses “novos bárbaros”, que podem deformar o caráter “racional-legal” de seus métodos burocráticos de trabalho. Se Weber estivesse vivo, talvez usasse o conceito de Entzauberung – isto é, desencanto – para sinalizar o sentimento dos diplomatas do corpo profissional do Itamaraty em face do estupro que parece estar sendo preparado pelos bolsolavistas contra a outrora respeitada instituição formuladora da essência da política externa nacional, uma realidade agora praticamente desfigurada. A História não os absolverá desse novo crime institucional.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 17 de junho de 2020

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