Quem inventou o populismo digital
Gianroberto Casaleggio não é lá um nome particularmente conhecido. Mas foi ele quem inventou as técnicas políticas que levaram o Reino Unido a deixar a União Europeia, alçaram Donald Trump à Casa Branca e puseram Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto. É uma história importante de compreender pois não se trata de um método complexo. Quando colocamos fake news no centro do debate, porém, cria-se a ilusão de que a tática de desmonte digital da democracia pode ser enfrentada com a correção da informação falsa. Dá a impressão de que a eleição dos populistas digitais nasce de um processo baseado na falsificação, em mentiras. Mentiras fazem parte da palheta de ferramentas, mas não estão no centro. O centro da estratégia é duplo: um ataque simultâneo a políticos e à imprensa. E isto é feito pela manipulação de diálogos em comunidades digitais para formar — artificialmente — consensos.
Essa história começa no final dos anos 1990. Recém-chegado aos 40, milanês, cabelos compridos e emaranhados, Gianroberto Casaleggio alcançara o ápice de sua carreira: era CEO da Webegg, uma joint venture das italianas Olivetti e Finsiel. A internet comercial era jovem e Casaleggio, que havia começado como programador no momento em que a fábrica de máquinas de escrever migrava para o digital mais de uma década antes, era fascinado pela cultura do Vale do Silício. Buscava uma utopia digital. Webegg era uma consultoria que pretendia ajudar seus clientes no processo de digitalização. Naqueles tempos iniciais, a Webegg dedicava-se principalmente a criar intranets. Redes internas para grandes companhias. E foi a maneira como estas intranets funcionavam que chamaram a atenção do CEO.
Na maioria das vezes, as redes eram em essência um repositório de informações. Dados de seguro de saúde, comunicados internos das empresas, ferramentas para que os empregados pudessem se orientar na vida corporativa. Em alguns casos, porém, estas redes também serviam a conversas. Os fóruns online eram adotados pelas pessoas e movimentavam diálogos por vezes emocionalmente carregados. E foi neles que Casaleggio iniciou seu grande experimento social. Queria saber se conseguiria construir consensos.
Desenvolveu um método simples. Um funcionário da Webegg publicava um post, lançava um tema em debate. Outros contribuíam para estimular que aquela conversa ganhasse tração. Funcionava. Atraía gente, cada pessoa com sua opinião. Quando o número de envolvidos já era grande o suficiente, a equipe da Casaleggio punha o arremate final, o que batizaram ‘avalanche de consenso’. Várias novas vozes, todas publicando mensagens que apontavam para uma mesma conclusão. O conjunto do fórum acompanhava em acordo. O engenheiro de software com jeitão de roqueiro hippie da Califórnia havia descoberto como manipular a formação de consensos no meio digital. E como é internet, na verdade ele sequer precisava de muita gente para construir estes consensos. Afinal, um mesmo indivíduo com várias contas pode parecer muitas pessoas.
Como negócio, a Webegg era um desastre. Vendida para a Telecom Italia em 2003, terminou quase imediatamente com a demissão do CEO por má gestão. Um ano depois, acompanhado de quatro dos executivos mais próximos a ele, Gianroberto fundou uma empresa de marketing digital. A Casaleggio Associati.
Entra Beppe Grillo
Mas esta não é uma história que possa ser contada sem Beppe Grillo. Casaleggio nasceu em 1954. Grillo, um genovês grandalhão, de cabelos fartos e barba, era seis anos mais velho — de 1948. No final dos anos 1970, se tornou famoso como um comediante ácido que misturava técnicas de stand-up com música, sempre acompanhado dum violão. Já era uma estrela na RAI, a TV estatal de maior audiência na Itália, quando foi demitido na virada da década de 80 para 90. Seu humor tinha cada vez mais, por alvo, os políticos no comando da Itália. Estava ficando incisivo, monotemático. Num determinado momento, a emissora não resistiu à pressão vinda de Roma.
Para Grillo, de certa forma, foi uma libertação. Tendo de ganhar sustento sem o salário da TV, jogou-se no circuito das apresentações ao vivo. Passou a intercalar comédia e música, sempre mantendo a acidez que era sua marca, com indignação voltada para a política, para o jornalismo e para o mundo dos negócios. Ávido leitor até dos resultados financeiros de companhias, entremeava suas piadas com críticas para todo lado. E, pelas piadas, tornou-se um denunciador contumaz. Denunciava quem estava no comando do país, esquemas de burla de impostos, executivos de toda sorte de companhias — Parmalat, Fiat, Fininvest. Denunciava o que considerava mau jornalismo. Fora da televisão, Grillo se tornou ainda mais conhecido. E admirado. Atraía contra si processos, o que só reforçava a imagem de dom Quixote.
A Itália do início do século não era muito diferente do Brasil. O Estado havia sido tomado por um corporativismo profundo no qual todo cargo com algum comando, mesmo os mais baixos, tornava-se moeda de troca em negociações políticas. A corrupção era imensa e uma série de escândalos sucessivos, com a Operação Mãos Limpas no centro, havia levado dezenas de parlamentares à prisão. O sistema caíra em descrédito. E, desde sempre, estava lá Beppe Grillo o denunciando.
Os dois, Grillo e Casaleggio, se conheceram no ano de 2004. Blogs estavam explodindo na internet mundial e o executivo tornado marqueteiro digital queria botar o comediante online. Beppegrillo.it, seu blog, tornou-se rapidamente um dos sites mais visitados do mundo.
Cinco Estrelas
Tendo ao seu lado o carisma de Grillo e contando com uma profunda compreensão de Teoria das Redes, Casaleggio sabia o que fazer. E fez. Uma rede não é uma estrutura hierárquica. É formada, isto sim, por nós e conexões. Cada indivíduo é um nó que se conecta a outros. Um nó pode ter poucas ou muitas conexões a outros nós. Neste sentido, o blog de Grillo foi construído para congregar o maior número possível de conexões. Porque, desta forma, dispararia o chamado Efeito de Rede. Quanto mais conexões um nó tem, mais novas conexões formará. É por esta lógica que segue a economia de influenciadores digitais. Quanto mais gente segue, mais gente seguirá.
Assim, o conteúdo do blog foi construído para fortalecer a estratégia. Nos discursos em público de Grillo eram inseridas frases de efeito, pílulas de ideias, que poderiam ser transformadas em vídeos curtos de fácil viralização. O mesmo conceito se deu na formação de slogans, pensados para serem repetidos em série, distribuídos na forma daquilo que hoje chamamos memes. Tinham de divertir e, ao mesmo tempo, canalizar a indignação que pairava na sociedade. Casaleggio identificou também outros influenciadores, embora na época ainda não fossem chamados por esta palavra. Mas pessoas com alguma relevância na web italiana que compartilhariam o conteúdo de Grillo. Para quem vê de fora, a ilusão é de um movimento popular. Indivíduos que vêm de baixo e falavam verdades às elites. Era — e continua sendo — tudo construído para ter este efeito.
Numa tese de mestrado apresentada para o Departamento de Ciência Política da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, Edward Harrison Leavy batizou este tipo de movimento de tecnopopulismo (PDF). É uma palavra possível — ainda não há, na literatura, um termo consensual.
Casaleggio e Grillo tinham o ambiente: um país que se tornara descrente do sistema que o governava. A partir de 2008, uma crise econômica violenta que catalisava as frustrações. Rapidamente, eles centraram em dois alvos. A política e a imprensa. Por corruptos, os políticos que existiam não serviam mais aos italianos. Era preciso algo radicalmente novo. Mas como também era necessário criar uma nova percepção de realidade — uma nova narrativa que desse conta de explicar uma visão do problema e sugerir uma solução que viesse de fora, era fundamental desacreditar a imprensa. Porque era fundamental desacreditar críticos.
O uso das ferramentas digitais para formar comunidades e se comunicar era útil. Permitia um discurso no qual o novo suplantava o velho. A velha democracia liberal em oposição a uma nova democracia digital, na qual o povo manda. A velha mídia perante a nova mídia, que realmente representa a voz do povo.
Populismo, por definição, são movimentos políticos que se alavancam no discurso de que há uma conspiração das elites contra o povo. O líder populista é quem se ergue, tal qual salvador, para enfrentar esta batalha em nome deste povo. Com o surgimento das redes sociais, no final da primeira década do século, o trabalho de construir estes nós fortes de uma rede se tornou mais fácil para a equipe de Casaleggio. Permitiu, por exemplo, o uso de robôs para facilitar a ‘avalanche de consensos’. E porque de fora é difícil perceber que os discursos são construídos nas mesas de marqueteiros assim como na política tradicional, a impressão geral é de que há um movimento popular.
Fake news é uma das ferramentas para compor a narrativa. Mas é o manipular da formação de consensos o truque real. Grillo se tornou líder do Movimento Cinco Estrelas. Foi da cultura pop-californiana de Casaleggio que o personagem Guy Fawkes lido pelo quadrinista Alan Moore na graphic novel V de Vingança entrou no léxico político contemporâneo. O ‘V’ feito com as mãos em discursos para praças cheias era de vingança contra o sistema, mas também de vaffanculo. Dispensa tradução. Em 2013, o M5S teve um quarto dos votos na eleição nacional. Em 2018 passou dos 30% e se tornou o maior partido italiano.
Casaleggio morreu de câncer no cérebro em 2016. Estava rompido com Grillo. Mas seu método de fazer política encontrou, no mundo, observadores atentos. No Reino Unido, Nigel Farage, que promoveu o Brexit. Nos EUA, Steve Bannon, que pensou a eleição de Donald Trump.
No Brasil, teve alguns observadores.
Vídeo: Em um 2008, Casaleggio apresentou sua visão de uma nova política. E, sem muitos pudores, incluiu o monge radical Girolamo Savonarola, que incensou a Florença renascentista, e Benito Mussolini como seus antecessores. Assista.
Relatório: A Comissão Europeia encomendou um relatório de estudo da eleição italiana de 2018 que detalha as técnicas do novo populismo. Leia.
A desinformação era uma praga mesmo antes da Covid-19. Agora é uma questão de vida e morte - e de persuasão política. Tom Wainwright, editor da The Economist, aborda o assunto nesse podcast.
É informação pra dar e vender. Verdadeira. Falsa. Para segmentar interesses. Para eleger candidatos. Para difamar pessoas. Para evitar acidentes. Mas existem algumas que muitos preferem não saber. Um estudo apontou que 90% das pessoas prefere não saber quando, nem como, seus parceiros morrerão. Sobre a data de sua própria morte, 87% opta pelo desconhecido. Um experimento de laboratório descobriu que indivíduos classificados como menos atraentes estavam dispostos a pagar para não descobrir sua classificação exata. Sobre os eventos positivos da vida, a maioria também escolheu a ignorância. Mais de 60% não quer saber o que vai ganhar de Natal. Pode ter a ver com a possibilidade de decepção, mas o maior problema, segundo esta pesquisa, é que as pessoas gostam do suspense. É a tal mágica do talvez.
Pois é… o corpo geral de pesquisa sugere que a ignorância deliberada, aquela consciente, é uma preferência. Para o bem e para o mal, informação potencialmente desagradável, mas útil, também é evitada principalmente no campo da saúde. Mesmo com tratamentos que aliviam sintomas, possíveis portadores de doenças crônicas preferem não saber sobre sua condição.
Pesquisadores da Northwestern University desenvolveram recentemente uma escala para medir esse tipo de aversão. Eles projetaram cenários em três domínios (saúde pessoal, finanças e percepção dos outros sobre si). Os seriamente avessos à informação eram minoria, embora substancial: em média, os participantes relataram que definitivamente ou provavelmente não gostariam de receber essas informações 32% do tempo. Cerca de 45% evitariam descobrir quanto ganhariam escolhendo um fundo de investimento mais lucrativo no passado. Entre os que estavam mais abertos, havia pelo menos um domínio no qual optavam permanecer desinformados. Mais sobre o teste aqui
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