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segunda-feira, 8 de junho de 2020
O Poder Moderador de 1824 a 2020 - Gabriel Heller (Estado da Arte)
O Poder Moderador de 1824 a 2020: um diálogo constitucional intergeracional
O Estado da Arte, O Estado de S. Paulo, 05/06/2020
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Em artigo publicado em meados de 2019 neste Estado da Arte, questionando a legitimidade e a legalidade do inquérito das fake news, bem como o avanço do Supremo Tribunal Federal sobre competências de outros Poderes, mencionei que “vários juristas e cientistas políticos entendem que, com a queda da monarquia, o Poder Moderador, atribuído ao Imperador pela Constituição de 1824, teria passado tacitamente aos militares e, a partir da Constituição de 1988, ao Poder Judiciário – ou, mais especificamente, ao STF”.
A recente crise institucional – motivada por ações judiciais, entrevistas, notas à imprensa e manifestações públicas – trouxe à tona novamente a questão do Poder Moderador, construção teorizada por Benjamin Constant e concretizada, na prática, no art. 98 de nossa Constituição do Império (1824). Na letra da Constituição, competia ao Imperador exercer tal mister, como “chave de toda a organização política” e “chefe supremo da nação”, “para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais Poderes Políticos”.
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Agora, aparecem vozes sugerindo que o art. 142 da Constituição de 1988 conferiria às Forças Armadas o Poder Moderador, no sentido de que, usurpando um Poder a competência de outro ou desbordando daquela que a Lei Fundamental lhe outorgou, poderia o aparato militar agir para garantir a independência e a harmonia entre os Poderes (art. 2º da Constituição). Essa a interpretação que extraem da previsão de que as Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Uma leitura sistemática da Constituição, e não “em tiras” – a expressão é de Eros Grau[1] –, mostra a inviabilidade lógica e jurídica dessa exegese. Como lograriam as Forças Armadas arbitrar um conflito de atribuições entre os Poderes Políticos, se, conforme o art. 142, podem ser chamadas a atuar por provocação de qualquer deles para garantir a lei e a ordem? Diante de convocações simultâneas de dois Poderes em conflito, reclamando a ação das Forças Armadas em sentidos diametralmente opostos e, portanto, inconciliáveis, caberia aos militares a “interpretação constitucional do litígio” e, assim, uma função de guarda da Constituição ad hoc? Evidentemente, a resposta é negativa.
Desde 1891, com a promulgação da nova Constituição, nossa República tem duas grandes inspirações no que concerne ao chamado princípio da separação de Poderes: Montesquieu e os founding fathers estadunidenses. De Montesquieu, herdamos os postulados de equilíbrio e moderação entre os Poderes Políticos,[2] de inibição recíproca entre estes,[3] com vista a garantir a liberdade e evitar o despotismo. De seu turno, os founding fathers legaram-nos o federalismo e, a partir de John Marshall e pelas mãos de Ruy Barbosa, a atribuição ao Poder Judiciário de examinar a constitucionalidade das leis e dos atos dos demais Poderes. Se, no Império, a “chave de toda a organização política” estava no Poder Moderador, na República, the key-stone of our political fabric – palavras de George Washington em carta a John Jay[4] – deslocou-se para o que se tinha por the least dangerous branch – palavras de Alexander Hamilton.[5]
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Dessas premissas, podemos extrair algumas conclusões. A primeira é que crises políticas se resolvem politicamente – e não com recurso à força ou “às Forças”. Como expôs sabiamente, na década de 1920, Hermes Lima, Ministro do STF aposentado compulsoriamente após a edição do AI-5, “o fim da política, da arte verdadeira de governar, será a formação de instituições oportunas capazes de transformar em energia civil, […], em energia legal, a quantidade dinâmica de violência, que é a seiva perpetuamente renovada das reivindicações sociais”.[6]
A segunda conclusão, relacionada diretamente à primeira, é que, ao falar na atribuição das Forças Armadas de “garantia dos poderes constitucionais”, a Constituição não está se referindo à defesa de um Poder em detrimento de outro, mas sim ao conjunto da ordem legal e das competências do Poder Público, competências essas que têm natureza antes de dever do que de poder, prerrogativa ou direito. Por conseguinte, advogar que a Constituição abre as portas para o emprego das Forças Armadas em um embate entre Poderes vai frontalmente contra a ideia de Montesquieu, segundo o qual “como, pelo movimento das coisas, eles são obrigados a avançar, serão obrigados a avançar concertadamente”.[7]
A derradeira conclusão é que, embora seja demasiado falar que o Poder Judiciário ou, mais especificamente, o STF exerce o que um dia se chamou de Poder Moderador, a Constituição outorgou a este o que se vem chamando de “última palavra provisória”, no sentido de que a Lei Fundamental prevê os caminhos para a solução de conflitos, os quais têm um ponto final dentro de cada rodada procedimental, “que pode ser recomeçada indefinidamente”.[8] Exemplos claros disso são emendas constitucionais promulgadas como reação a decisões do STF, bem como a previsão de concessão de anistia pelo Congresso Nacional, com sanção do Presidente da República (art. 48, VIII), mecanismo de caráter eminentemente político que implica não apenas o perdão, mas o esquecimento da prática de um crime,[9] ainda que transitada em julgado a decisão condenatória.
Não poucas vezes tem errado o STF, dentro e fora dos autos; não poucas vezes tem ido além de suas competências – seja ocupando supostos vácuos de poder, seja avançando sobre questões que foram legítima e constitucionalmente tratadas pelos demais Poderes. Os equívocos do STF são de tal monta que é válido questionar se ele continua mesmo inofensivo, como via Hamilton, se ainda se mantém como o “menos perigoso dos Poderes”. Todavia, contra essas ocorrências, a Constituição previu tudo o que se pode fazer dentro da ordem, que não pode estar “à mercê de golpes que contra ela se desfiram fora dos processos legais do seu remodelamento”.[10] Nesse sentido bem se esclareceu que o povo, como delegante, “retém o poder de controlar os governos que ele formou, não por meios de golpes violentos e ilegais de força revolucionária, mas pelos meios previstos na Suprema Lei, que ele mesmo se traçou”[11] – e por certo não está entre esses instrumentos o uso das Forças Armadas para “harmonizar” os Poderes.
O ora famigerado art. 142 está incluído no Título V da Constituição Federal – Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas – Instituições Democráticas, conjunto indissolúvel, cujas partes são inoponíveis entre si, senão na forma da Carta de 1988. Como disse certa feita um Ministro aposentado do STF, a Lei Fundamental “não dá tiro no próprio pé”, não é suicida; não há como, portanto, ter previsto o uso da força por um Poder contra o outro. Repita-se: problemas políticos são resolvidos politicamente. Aqueles que se dedicam a clamar por AI-5 e intervenções militares bem fariam em considerar a lição de Hermes Lima: “Quem está com a Constituição? Esse estará na ordem, esse o conservador”.[12]
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Notas:
[1] GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e os princípios. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 86-87.
[2] GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 9. ed.. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 223-230.
[3] MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 166; FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito Constitucional: liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. Barueri, SP: Manole, 2007, p. 400; AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello. Sobre a organização de poderes em Montesquieu: comentários ao capítulo VI do livro XI de O espírito das leis. Revista dos Tribunais. São Paulo, ano 97, v. 868, fev. 2008, p. 63.
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