Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
Em 2002, ainda antes que seu candidato, Ciro Gomes, perdesse para Lula, o professor Mangabeira Unger escreveu um artigo dizendo que o Brasil não tinha política externa. Ele tinha, pelo menos até 2002. Depois foram outros quinhentos, pois veio a política externa lulopetista e as deformações diplomáticas do partidarismo militante, contra as quais Mangabeira escreveu em opositor declarado, até um famoso artigo ao estilo Zola (J'Accuse), declarando ser Lula o mais corrupto presidente da República, antes de se filiar ao populista e se tornar seu ministro de Estado de Assuntos Estratégicos.
Eu li o artigo de Mangabeira na época e fiz comentários neste blog, reproduzidos em 2017, quando começava outra campanha presidencial. Reproduzo ambos abaixo.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 13/11/2023
domingo, 20 de agosto de 2017
Um duelo (diplomático) à distância com Mangabeira Unger (2002) - Paulo Roberto de Almeida
Mais um desses "inéditos redescobertos".
Em fevereiro de 2002, em fase de pré-campanha presidencial, o professor de Harvard Roberto Mangabeira Unger, conselheiro político, e supostamente diplomático, do então (e eterno) candidato Ciro Gomes, publicava um artigo vitriólico contra a política externa e a diplomacia brasileira, que transcrevo abaixo imediatamente. Eu comentei também imediatamente, e mandei o texto para o próprio, em seu endereço de Harvard. Nunca recebi resposta, sequer uma nota acusando recepção. Tampouco publiquei ou divulguei este texto que segue após o artigo original. Transcrevo agora pois talvez alguns dos debates de 2002 ainda tenham algum significado nos dias que correm. Provavelmente, pois durante os 13 anos da gestão companheira não avançamos em praticamente nada, nem em diplomacia, nem em qualquer outro terreno, a não ser na corrupção. Acho que o Brasil está rigorosamente atrasado mais de duas décadas, em suas políticas públicas e até em sua diplomacia. Mas este é outro debate. Paulo Roberto de Almeida Brasília, 20 de agosto de 2017
O Brasil não tem política exterior. Em vez dela, tem uma prática minúscula e malograda de negociações comerciais. Mas o Brasil precisa ter política exterior. Estão se reunindo as condições para criá-la.
Os defensores da redução da política exterior a negociações comerciais afundaram num pragmatismo antipragmático. Prometeram resultados e entregaram frustrações. A única iniciativa forte da diplomacia brasileira, o Mercosul, agoniza e só ressurgirá se for reconstruída radicalmente.
A razão básica pela qual não temos política externa é que não temos projeto interno, a não ser um projeto que resultou no enfraquecimento progressivo da nossa afirmação nacional e que inibiu o dinamismo extraordinário da nossa economia. Mas o descalabro tem outras causas também.
Satisfeitas em ter um presidente apresentável em salões e seminários, as elites brasileiras esqueceram que política exterior é um ramo da política, não da indústria de entretenimento. Encobertos pelo nevoeiro retórico da "diplomacia presidencial" e sem balizamento numa discussão nacional da nossa posição no mundo, nossos diplomatas tomaram conta da política externa. Não souberam, porém, o que fazer, a não ser regatear, sem rumo nem força, um pouco mais de vantagem comercial aqui e acolá. Ficaram paralisados e confundidos pelo medo dos Estados Unidos.
A perversão das práticas convergiu com o desvio das idéias. Rio Branco fundou a tradição da nossa política exterior sobre certos princípios elementares: que a política predomina sobre a economia; que a defesa da nossa soberania tem por objetivo criar condições para o desenvolvimento de uma experiência nacional própria; que essa defesa se consubstancia tanto no resguardo de um espaço sul-americano quanto na construção mundial de um pluralismo que se contraponha a hegemonias; que o Brasil precisa reconhecer na sua política exterior sua personalidade moral e que nosso engrandecimento é inseparável da nossa generosidade. Esses compromissos foram sacrificados a um realismo que se revelou falso e contraproducente.
Quatro tarefas (a discutir) devem nortear uma nova política exterior que encarne hoje esses princípios. A primeira tarefa é trabalhar pela construção de instituições que definam uma ordem política e econômica multilateral capaz de lidar com o fato do poderio americano. E que abram caminho para uma diversidade de trajetórias de desenvolvimento. É obra que exige entendimentos arrojados com alguns dos outros grandes países continentais, sobretudo a China e a Índia, com a União Européia e com nossos aliados potenciais dentro dos Estados Unidos. Nenhum país está mais bem posicionado do que o Brasil para liderar iniciativas nesse sentido. A segunda tarefa é aproveitar as contradições da economia global, buscando acordos e parcerias não só com Estados e blocos regionais mas também com empresas. E ampliar nossa margem de manobra por meio da multiplicação dos vínculos em vez de nos refugiarmos no isolamento. A terceira tarefa é começar a refazer nossa situação na América do Sul através dos empreendimentos comuns e das instituições comuns que faltaram ao Mercosul. A quarta tarefa é cumprir nossa obrigação sagrada para com a África sofredora, ajudando o Brasil, desse modo, a reconciliar-se consigo mesmo e a ganhar a energia dos magnânimos.
Em provocador artigo sob o título “Por que o Brasil não tem política exterior?” (Folha de São Paulo, 12.02.02; site: http://www.idj.org.br/art0001.asp?SelectID=45), o coordenador do Instituto Desenvolvimento com Justiça, Roberto Mangabeira Unger, tece considerações sobre uma suposta diplomacia brasileira corrente em relação à qual eu, como diplomata com mais de 23 anos de carreira, tenho dificuldades em conectá-la à realidade de nossas relações exteriores ou de nossa prática diplomática. Certamente mais inspirado em seu papel de conselheiro intelectual do candidato presidencial Ciro Gomes, do que em sua função de intelectual público e respeitado acadêmico de Harvard, Mangabeira traça um retrato de uma (falta de) política exterior do Brasil da qual parece complicado reconhecer a existência, ainda mais em concordar com a maior parte de suas afirmações levianas.
Ainda que descontando-se o fato de que ele possa estar atuando motivado mais pelo impulso eleitoral do que pela necessidade legítima de estimular um debate que tem estado ausente das campanhas presidenciais no Brasil, deve-se reconhecer que os argumentos adiantados por Mangabeira não condizem com sua reconhecida capacidade analítica e com a presumida honestidade intelectual de que goza o conselheiro do candidato do PPS.
Mangabeira começa peremptoriamente por afirmar que o Brasil “não tem política exterior”, mas tão simplesmente “uma prática minúscula e malograda de negociações comerciais”. Quaisquer observadores isentos de nossa tradição diplomática, entre eles vários outros serviços diplomáticos de países vizinhos ou mesmo de países desenvolvidos, sabem que se trata aqui de uma simplificação grosseira da realidade. Também soam como exagerados seus argumentos segundo os quais nosso “pragmatismo antipragmático” apenas entregou “frustrações” e que o Mercosul, descrito como “agonizante”, apenas poderá ressurgir “se for reconstruíd[o] radicalmente”. Nenhuma linha segue, porém, sobre as condições em que tal reconstrução poderia ser operada, nesta ou em outras frentes de trabalho diplomático. Na verdade, o artigo de Mangabeira apresenta poucas propostas concretas ou suscetíveis de implementação prática. Senão vejamos.
Concordo com Mangabeira quando ele vincula a política externa à existência de um “projeto interno”, mas torna-se singularmente difícil ver nos últimos anos de estabilização macroeconômica um processo que teria resultado, unicamente, “no enfraquecimento progressivo da nossa afirmação nacional e que inibiu o dinamismo extraordinário da nossa economia”. O que é descrito como “descalabro” não corresponde à realidade de uma diplomacia que tem colocado o Brasil como interlocutor incontornável de processos negociadores nos mais diversos foros formais e informais das relações internacionais contemporâneas. Algo desse sucesso pode ser certamente creditado ao que vem jocosamente caracterizado por Mangabeira como sendo o “nevoeiro retórico da ‘diplomacia presidencial’”, mas o bom desempenho também pode ser creditado ao trabalho sistemático e paciente de nossas representações no exterior e de nossa Secretaria de Estado na defesa constante dos interesses do Brasil nos mais diversos foros abertos ao engenho e arte de nossa diplomacia. Acusar esses diplomatas de terem ficado “paralisados e confundidos pelo medo dos Estados Unidos” é no mínimo criar uma figura de estilo para justificar uma crítica que não guarda a menor relação com a realidade, e que apenas ofende quem está na linha de frente de negociações por certo duras e sensíveis, mas que em nenhum momento foram caracterizadas por temor ou vacilação.
Não se consegue perceber onde estaria ocorrendo uma imaginária “perversão das práticas” como resultado de um suposto “desvio das idéias” do mítico chanceler Rio Branco (a ele são creditados os “fundamentos” da nossa política exterior). Que a política predomine sobre a economia, não deixa de ser verdade hoje como nos tempos do Barão; que “a defesa da nossa soberania” tenha como objetivo principal “criar condições para o desenvolvimento de uma experiência nacional própria” é tão válido hoje como há exatos cem anos atrás, quando Rio Branco assumia por dez longos anos o comando de nossa diplomacia; que essa defesa passe pelo estabelecimento de um espaço sul-americano não representa nada mais do que o que vem sendo pacientemente articulado pela diplomacia brasileira desde o início dos anos 90, pelo menos; que essa visão possa ser materializada pela “construção mundial de um pluralismo que se contraponha a hegemonias”, como quer Mangabeira, corresponde exatamente aos discursos brasileiros nas assembéias gerais da ONU desde muito tempo, como poderia ser facilmente verificado por Mangabeira. Enfim, as críticas de Mangabeira, aos conhecedores, soam como um déjà vu, all over again.
Ele elenca, em seguida, quatro tarefas que deveriam “nortear uma nova política exterior”. Suas propostas são simples e diretas e merecem citação explícita, seguidas de comentários.
1) “A primeira tarefa é trabalhar pela construção de instituições que definam uma ordem política e econômica multilateral capaz de lidar com o fato do poderio americano.”
De acordo, mas a proposta não contradiz o que já vem sendo dito e feito pelo Brasil.\
Corolário: “E que abram caminho para uma diversidade de trajetórias de desenvolvimento.”
Não poderia ser de outra forma. O irracional seria tentar perseguir a todo custo uma ilusória uniformização de posições em matéria de políticas econômicas e de modelos de desenvolvimento, o que apenas violentaria as condições próprias e o contexto exclusivo em que se dão nosso próprio processo de desenvolvimento e nossa inserção internacional. Não se compreenderia aliás uma política externa que tentasse encaixar o Brasil em moldes pré-fabricados.
Corolário: Essa tarefa, segundo Mangabeira, “exige entendimentos arrojados com alguns dos outros grandes países continentais, sobretudo a China e a Índia, com a União Européia e com nossos aliados potenciais dentro dos Estados Unidos”.
Não se percebe bem o ineditismo de tais propostas, uma vez que a diplomacia do Brasil vem atuando precisamente nessa linha, de diversificar parcerias externas e lograr uma intensificação do relacionamento com grandes países emergentes, como podem ser a China, a Índia e a Rússia. A relação com a UE é tradicional e muito intensa, atuando como contrapeso aos Estados Unidos pelo menos desde o Império e começo da República. Seria, por outro lado, muito útil que fossem identificados esses “aliados potenciais” dentro dos Estados Unidos que não estão muito claros quem sejam exatamente. Se forem os anti-globalizadores do movimento sindical e ecológico ou, ainda, protecionistas enrustidos ou declarados à la Ralph Nader, o Brasil teria muito pouco a ganhar com eles, já que eles atuam, justamente, para dificultar o acesso de nossos produtos (sobretudo agrícolas) ao mercado dos EUA.
2) “A segunda tarefa é aproveitar as contradições da economia global, buscando acordos e parcerias não só com Estados e blocos regionais mas também com empresas.”
De acordo novamente, mas é preciso obter um mapeamento preciso, a ser fornecido por Mangabeira, dessas contradições existentes na economia global, a partir das quais seria possível traçar o quadro de alianças preferenciais que a diplomacia brasileira buscaria. Do que pode ser observado atualmente, trata-se exatamente do que vem sendo feito pela atual diplomacia, que está longe de refugiar-se no “isolamento”, como quer nosso articulista.
3) “A terceira tarefa é começar a refazer nossa situação na América do Sul através dos empreendimentos comuns e das instituições comuns que faltaram ao Mercosul.”
Perfeito: mais uma vez aguarda-se o detalhamento desses empreendimentos e instituições comuns “que faltaram ao Mercosul”, pois fica parecendo que a crise deste último deve-se à falta dessas instituições, não à existência de condições econômicas objetivas em cada um dos países membros.
4) “A quarta tarefa é cumprir nossa obrigação sagrada para com a África sofredora, ajudando o Brasil, desse modo, a reconciliar-se consigo mesmo e a ganhar a energia dos magnânimos.”
Esta parte entra num terreno que pertence mais à obrigação moral do que ao cálculo racional. Se temos alguma obrigação sagrada para com a “África sofredora”, que justifique sacarmos nosso talão de cheques para atender necessidades daqueles povos, seria o caso de discutir com o Congresso como empregar esse dinheiro, pois vários parlamentares podem argumentar que temos sofredores de sobra, aqui mesmo no Brasil, com os quais temos deveres igualmente, ou mais, sagrados.
Em síntese, o Brasil dispõe de uma diplomacia que pode e deve sofrer diversos aperfeiçoamentos de forma e de conteúdo. Tal tarefa será empreendida com a colaboração de todos aqueles interessados num debate sério sobre a questão. A condição primeira para que tal debate seja feito seria evitar as simplificações e as meias-verdades, evitando caracterizar os dados da realidade pelo seu travestimento indevido numa série de conceitos que relevam mais da acusação gratuíta do que da análise serena.
No Brasil, e no Ocidente, 99,9% das pessoas nada sabem sobre o Hezbollah; dos restantes, algumas pessoas sabem algumas coisas, mas não o suficiente
Eu estava escrevendo um post, há muito devido, sobre a Palestina, tentando traçar um balanço parcial da situação…
E de repente a notícia mais quente da cidade (pelo menos no Brasil) passa a ser aquela sobre a detenção de dois homens brasileiros – supostamente de nacionalidade libanesa também – sob a suspeita de planejarem ataques terroristas no Brasil, contra edifícios e alvos judeus, e de pertencerem a uma organização terrorista.
Tudo isto, foi-nos dito e relatado, apontando para uma ligação com o Hezbollah libanês! Uma parte muito importante da história teve a ver com o fato de o Mossad israelense ser a parte responsável pela descoberta da conspiração.
Deixe-me dizer desde o início: nada do que sei sobre o Médio Oriente, o Líbano, o Hezbollah, e sobre o Brasil, São Paulo, a região fronteiriça entre o Brasil, o Paraguai e a Argentina, e nada do que sei sobre o cenário árabe e islâmico no Brasil, absolutamente nada, me permite conceber, por um momento, que haveria algum crédito à ideia do Hezbollah planejando um ataque no Brasil!
Agora, devo dizer também: estudei direito e dou aulas de direito; por algum tempo, num passado distante, trabalhei com direito penal; tudo isto ensinou-me que não se pode comentar um processo judicial em curso, uma investigação criminal em curso, se não se tiver acesso à informação. E é certo que não tenho qualquer acesso aos fatos sob investigação.
No Brasil, porém, nos habituamos a que o material das investigações seja entregue aos jornalistas e comentado pelos meios de comunicação. A estas fontes secundárias, tem-se acesso, mas é impossível confiar no seu conteúdo. É preciso lidar com as informações duvidando de tudo, o tempo todo.
A terceira coisa que devo dizer é a seguinte: no Brasil, e, acrescentaria, no Ocidente, 99,9% das pessoas nada sabem sobre o Hezbollah; dos restantes, algumas pessoas sabem algumas coisas, mas não o suficiente. Apesar disso, fomos treinados, durante 30 ou 40 anos, para imaginar as piores cenas de violência ilegítima assim que o nome é mencionado. Para a maioria de nós, existe uma ligação automática entre o nome e a noção de terrorismo. Disseram-nos isso e naturalizamos isso.
Não é apenas ignorância. É a ignorância aliada a um poderoso preconceito negativo. Nestas circunstâncias, uma vez divulgadas tais notícias, espalham-se com grande facilidade e serão tidas por verdadeiras, na sua pior versão, mesmo que mais tarde se prove que não têm substância.
Os efeitos esperados são produzidos instantaneamente e não podem ser desfeitos por uma futura eventual demonstração de que não havia realidade nas notícias ou acusações.
Provavelmente não sabemos mais sobre o Mossad do que sabemos sobre o Hezbollah, mas também fomos alimentados com uma imagem dele: a imagem de um organismo de inteligência muito capaz, talvez o melhor do mundo, e implacável, que procura e obtém vingança contra seus inimigos em qualquer lugar do mundo.
Quando ouvi que o Mossad era a fonte das investigações – e os israelenses foram rápidos e insistentes em divulgar essa informação – pensei que se deveria pelo menos considerar a possibilidade de termos uma conspiração diferente diante dos nossos olhos. Afinal de contas, uma organização que não se deterá perante nada, assumindo inclusive o crédito por assassinatos em todo o mundo, não se sentiria impedida de criar uma falsa conspiração terrorista por considerações morais. Não hesitaria se visse algum ganho político daí advindo.
Apenas uma hipótese
As partes da investigação que os meios de comunicação optam por tornar públicas – parece que alguns meios de comunicação tiveram acesso pelo menos ao depoimento completo de um dos detidos, mas não sabemos o que não é publicado – dizem-nos algumas coisas: o suspeito teria feito trocas por WhatsApp com número do Paraguai; ele teria recebido algum dinheiro, cerca de US$ 500,00, de algum contato em São Paulo, em bairro conhecido pela grande quantidade de comerciantes árabes que ali operam seus negócios; ele teria então sido levado ao Líbano e sido alojado em hotéis; ele teria tido uma longa reunião com um chefe da organização e lhe teriam dito que seria necessário ter força para matar e sequestrar; ele, nesse momento, teria dito que não tinha essa disposição; só quando já estava de volta ao Brasil o suspeito teria percebido que havia sido alvo de uma tentativa de recrutamento do Hezbollah!! Se esta última afirmação for verdadeira, ele pode ter apenas imaginado que tinha estado em contato com membros do Hezbollah…
Então, considerando apenas o que está ao alcance de todos nós, como informação pública, da qual, no entanto, deve-se sempre duvidar, e considerando o que o suspeito supostamente revelou à Polícia Federal, eu diria que: é perfeitamente possível que o os suspeitos possam ter perpetrado crimes e que estivessem planejando estar outros crimes; pode haver provas de trocas e comunicações entre eles e com outros suspeitos que seriam incriminatórias; alguém pode ter dito, ouvido ou imaginado que estava lidando com membros do Hezbollah. Nenhuma destas coisas seria suficiente para dar credibilidade às teses de um envolvimento real do Hezbollah, isoladamente ou em combinação.
O que foi revelado a partir do depoimento do suspeito à polícia diz-nos que a pessoa não sabe o suficiente sobre o Líbano ou sobre o Hezbollah. Também dá a impressão de que os suspeitos não eram e não são agentes capazes e experientes que seriam escolhidos para operações de inteligência ou sabotagem.
Mais uma vez, tudo o que sei sobre o Hezbollah diz-me que o grupo – o partido político e o movimento de resistência – que representa uma parte tão importante da paisagem social e política libanesa, não está empenhado em organizar ataques contra civis em qualquer parte do mundo. E me diz também que o que fazem, fazem profissionalmente.
Portanto, não estou convencido de que o que quer que seja aquilo em que os suspeitos estivessem envolvidos tenha algo a ver com o Hezbollah.
Sei, porém, que isso e tudo mais cabe à Política Federal e ao Judiciário brasileiro esclarecer e julgar. E a missão dessas instituições é muito vital, por mais de um motivo.
A primeira razão, óbvia e vital, é garantir a segurança e a paz na sociedade brasileira. Qualquer suspeita de atos violentos em preparação deve ser minuciosamente investigada e, se for real, ser prevenida e punida.
A outra importância igualmente vital da missão é esta: temo que tais acusações, dirigidas, de modo imediato, contra o Hezbollah, possam ter o propósito ou a consequência não intencional de ferir uma parte da população brasileira, nomeadamente os brasileiros muçulmanos e especificamente os muçulmanos xiitas e ascendência libanesa.
Enquanto aceitarmos acriticamente a demonização do Hezbollah e virmos com suspeita qualquer pessoa que se diga ter “contatos” com o Hezbollah, corremos o risco de criminalizar todo e qualquer libanês e todo e qualquer muçulmano xiita.
*Salem Nasser é professor da Faculdade de Direito da FGV-SP. Autor de, entre outros livros, Direito global: normas e suas relações (Alamedina). [https://amzn.to/3s3s64E]
O problema de Gaza foi resolvido: resta um outro, bem mais dramático
Paulo Roberto de Almeida
Os brasileiros-palestinos saíram, finalmente. Mas os mesmos problemas continuam: uma diplomacia que se esforça para dar conta dos recados, múltiplos, complexos, em contraposição a uma política externa errática, hesitante, improvisada, feita mais de arroubos e de retórica mal pensada do que de reflexões ponderadas, mas que pende para um dos lados na disputa geopolítica global, em total descompasso com os interesses nacionais e sem que nenhum deles esteja contemplado no jogo que não é nosso, mas no qual se insiste em meter o bedelho.
O único que é verdadeiramente nosso, a ameaça de uma invasão armada ilegal da Venezuela contra a Guiana, permanece carente de qualquer manifestação ou tomada de posição, em que pese o registro da História — arbitragem Brasil-Reino Unido pelo território do Essequibo — e os reclamos do Direito Internacional.
O convite partiu do embaixador da Espanha. Perguntou-me se eu aceitaria ser incluído no grupo. Concordei sem hesitar. A ideia era celebrar em Kuala Lumpur o "Dia do Idioma Espanhol". O cenário seria o pequeno palco da livraria Eslite Spectrum, inaugurada há pouco tempo e pertencente a uma cadeia de Taiwan. Cada participante leria um texto em espanhol, de sua escolha, por não mais do que cinco minutos.
Fiquei pensando sobre o que selecionar. Lembrei de um soneto de Jorge Luis Borges que é, de certo modo, um tributo à língua portuguesa, cuja data se celebraria dois dias depois da leitura na Eslite.
O embaixador da Argentina leu o prefácio de Ernesto Sabato (1911-2011) para seu livro de recordações, seu “testamento”, Antes del fin, publicado em 1998. A frase este complejo, contradictorio e inexplicable viaje hacia la muerte que es la vida de cualquiera, foi dita no tom certo, sem entonação melodramática.
O embaixador do México optou por “Hombres necios que acusáis”, de Sor Juana Inés de la Cruz (1651-1695), cuja primeira estrofe é:
Hombres necios que acusáis a la mujer sin razón, sin ver que sois la ocasión de lo mismo que culpáis
Chile escolheu o poema de Nicanor Parra (1914-2018) em homenagem à sua irmã, “Defensa de Violeta Parra”; Colômbia, parágrafos de uma das novelas de Empresas y tribulaciones de Maqroll el Gaviero, de Álvaro Mutis (1923-2013). Cuba leu o conto “Francisca y la muerte”, de Onelio Jorge Cardoso (1914-1986); Peru, o poema “Hallazgo de la vida”, de César Vallejo (1892-1938).
A embaixadora do Uruguai selecionou parágrafos de La insumisa, autobiografia romanceada, publicada em 2020, de Cristina Peri Rossi (1941- ), único autor vivo escolhido. Teria sido uma felicidade poder escutar a obra por mais do que cinco minutos.
Nascida em Montevidéu, Cristina Peri Rossi exilou-se em 1972 na Espanha. Autora prolífica, é também tradutora, inclusive de literatura brasileira: Clarice Lispector, Osman Lins, Ignácio de Loyola Brandão, Graciliano Ramos e Fernando Gabeira. Ganhou o Prêmio Miguel de Cervantes em 2021. Havia, aliás, concentração de ganhadores do prêmio entre os autores selecionados: Borges o recebeu em 1979, Sabato em 1984, Álvaro Mutis em 2001, Nicanor Parra em 2011.
O trecho lido pela embaixadora uruguaia incluía a seguinte frase: Al exiliarnos juntas, fue, en realidad, como si no nos hubiéramos exiliado, como si transportáramos con nosotras todo aquello que amábamos hasta entonces. Na lista das coisas amadas em comum estavam las canciones de María Bethânia. Sobre a ruptura dessa relação amorosa, um ano depois, a autora diz: comprendí que el exilio no era solo cambiar de espacio, el exilio era separarse de la persona amada.
Assim vivi eu entre 2020 e 2022, por causa da pandemia e o fechamento das fronteiras no Sudeste asiático, sem nunca poder ver a mulher amada, eu morando na Malásia, ela em Singapura. No dia seguinte, telefonei para minha colega uruguaia e pedi emprestado seu exemplar do livro.
La insumisa já começa de maneira surpreendente, com a frase: La primera vez que me declaré a mi madre, tenía tres años. É a história de uma infância e uma adolescência anticonformistas. Com ironia, Cristina Peri Rossi descreve um mundo soturno. Um hospital é palco de um estupro. O pai mantém com ela uma relação conflitiva; ele é agressivo, e sua vida, nos diz a autora, foi una larga, única y sostenida depresión. Um capítulo quase nos ilude, parecendo ser a poética descrição de uma estação de trem provinciana, no campo, chefiada por um tio-avô. A narradora tem agora quatro anos e atravessa um período feliz, correndo livre entre animais domésticos e avestruzes: El pueblo se llamaba Casupá, en honor a un cacique indio especialmente resistente a la Conquista.
Pesquiso e vejo que o povoado fica em terras que pertenceram ao avô do General Artigas. Chego a lamentar, a essa altura do livro, que, tendo vivido três anos em Montevidéu na infância, nunca tenha ido a Casupá, não tenha conhecido aquele cenário idílico.
Mas o tom logo muda. As vias ferroviárias são fechadas, os vagões abandonados no campo, alejados de cualquier camino y sin destino. Na ditadura militar uruguaia, serviram de campos de concentração, pois las cárceles y los cuarteles no fueron suficientes para encerrar a todos los presos políticos. Lemos detalhes do que significava viver trancado, amontoado, sem luz, sem banheiro, no ar rarefeito dos vagões. A narrativa, encantadora e bucólica poucos parágrafos atrás, torna-se agora terrível. Afinal, como observa a autora, los seres humanos tenemos una capacidad extraordinaria para hacer sufrir a los demás.
O príncipe Segismundo, esse Hamlet espanhol, teria também algo a nos contar sobre o sofrimento de viver, e na verdade contou-nos, aos ouvintes na livraria em Kuala Lumpur. Personagem principal da peça mais conhecida de Calderón de la Barca (1600-1681), La vida es sueño, ele foi interpretado pelo Embaixador da Espanha. Versos de suas duas falas mais famosas, habilmente mesclados, foram declamados, no pódio, com verdadeiro talento teatral.
Herdeiro do trono da Polônia, Segismundo cresce, por ordem do rei Basilio, seu pai, preso em uma torre nas montanhas. O rei é também astrólogo; os astros lhe comunicaram, ao nascer seu filho, que este — víbora humana del siglo — causaria grandes dores ao país e a ele próprio, o pai. O nascimento, de fato, dá-se sob algum signo infeliz: a rainha morre no parto, e isto coincide com um eclipse apocalíptico, descrito por Basilio em versos que me fazem pensar mais em outro fenômeno natural, as erupções vulcânicas que testemunhei em Quito:
Los cielos se oscurecieron, temblaron los edificios, llovieron piedras las nubes, corrieron sangre los ríos.
Com a consciência inquieta diante da longa prisão a que submeteu o filho, o rei decide um dia testar se os astros estavam certos. Manda trazerem Segismundo ao palácio real. Ao descobrir-se príncipe, e que apesar disso fora criado de maneira solitária, como um animal capturado, Segismundo torna-se violento, o que parece confirmar a profecia. É enviado de volta à torre. Convencem-no de que a ida ao palácio, o encontro com o rei, a revelação de sua verdadeira condição foram apenas cenas de um sonho.
Uma revolta de soldados, que querem aclamá-lo, liberta-o, no entanto, do enclausuramento. No final, pai e filho se reconciliam, Basilio abandona o trono, Segismundo se torna rei, deduzimos que governará com moderação, e seu casamento com a prima Estrella é anunciado.
La vida es sueño causou-me impacto quando a li pela primeira vez, aos 21 anos. Meu objetivo era familiarizar-me com o texto antes de assistir, em Londres, a uma produção da Royal Shakespeare Company, no The Pit, sala menor do Barbican Centre, teatro onde a companhia naquela época se apresentava na capital, em alternância com Stratford-upon-Avon. No meu programa da peça, anotei ter gostado das atuações e da produção, mas considerei o texto em inglês mais uma adaptação do que uma tradução. Nunca esqueci essa montagem.
Este ano, em abril, outra companhia de teatro, a fenomenal Cheek by Jowl, fez quatro apresentações da peça, em espanhol, e com atores espanhóis, na sala grande do Barbican. Essa produção, muito comentada, fora primeiro mostrada na Espanha, em turnê, nos últimos meses de 2022, e terminou no Festival de Edimburgo, em agosto. Uma das resenhas menciona que, na torre, o único consolo de Segismundo é ouvir Carmen Miranda cantando “Cuanto le gusta”, em uma gravação com as Andrews Sisters.
Se eu não tivesse, no começo de junho, rompido dois ligamentos no tornozelo direito, teria sonhado em tirar férias e viajar a Edimburgo em agosto. Fundada por Declan Donnellan e Nick Ormerod, Cheek by Jowl é uma companhia que apresenta peças em diversos idiomas, em diferentes países. Há muitos anos, assistimos à sua produção de Macbeth, em inglês, em Namur, e a Andromaque, em francês, em Bruxelas. A montagem da peça de Racine era particularmente notável.
Mas voltemos a Kuala Lumpur, onde o embaixador da Espanha declama versos do primeiro solilóquio de Segismundo na torre, no início de La vida es sueño:
Apurar, cielos, pretendo, ya que me tratáis así qué delito cometí contra vosotros, naciendo; aunque si nací, ya entiendo qué delito he cometido; bastante causa ha tenido vuestra justicia y rigor, pues el delito mayor del hombre es haber nacido.
Para emendar, em seguida, com as igualmente célebres linhas do regresso à prisão. Convencido por Clotaldo, seu tutor e cortesão do rei, de que as experiências que viveu no palácio foram apenas uma miragem, Segismundo conclui:
Es verdad, pues: reprimamos esta fiera condición, esta furia, esta ambición, por si alguna vez soñamos. Y sí haremos, pues estamos en mundo tan singular, que el vivir sólo es soñar; y la experiencia me enseña, que el hombre que vive, sueña lo que es, hasta despertar. Yo sueño que estoy aquí, de estas prisiones cargado; y soñé que en otro estado más lisonjero me vi. ¿Qué es la vida? Un frenesí. ¿Qué es la vida? Una ilusión, una sombra, una ficción, y el mayor bien es pequeño; que toda la vida es sueño, Y los sueños sueños son.
Borges menciona Calderón com alguma frequência em suas obras, e até Segismundo uma ou outra vez. É, porém, em uma entrevista concedida a Fernando Sorrentino e publicada por este em 1974 no livro Siete conversaciones con Jorge Luis Borges que encontro a opinião mais contundente, e surpreendentemente negativa: En cuanto a la versificación de Calderón, la encuentro excesivamente pobre y será, quizá, porque no lo he leído bien. Quem sou eu para condenar Borges? E no entanto, eu o faço.
La vida es sueño é uma peça filosoficamente complexa, e a qualidade poética do texto não é menos sofisticada. Relendo-a no amarelado exemplar comprado em Londres há tantos anos, duas ideias me capturam. Primeiro, a beleza estética que encontro na linguagem:
que hoy he de dar la batalla, antes que las negras sombras sepulten los rayos de oro entre verdinegras ondas.
Parece-me extraordinário que a língua espanhola possa acomodar um vocábulo específico, verdinegro, para definir uma cor indefinida, aquela tonalidade verde, quase negra que, de fato, o mar adquire, em um entardecer ensolarado, logo antes de ficar completamente escuro.
A segunda ideia é o dilema metafísico vivido por Segismundo. É curioso que Borges, cuja obra ilumina nossa leitura atual de Calderón, minimize o dramaturgo espanhol.
Mesmo Manuel Bandeira, em geral tão clarividente, oferece em Noções de História das Literaturas (1942) uma interpretação meramente moralista, ou talvez cristã, de La vida es sueño. Considera uma fala de Clotaldo a Segismundo — aun en sueños no se pierde el hacer bien — a síntese da peça, e comenta: “realidade ou sonho que seja a vida, o que importa é voltarmo-nos para o que é eterno”. Essa visão se aproxima daquela de Borges sobre a peça. Na entrevista de 1974, o escritor argentino afirma que, para Calderón, a frase la vida es sueño possui um sentido teológico, e não metafísico. Estima que, para o dramaturgo espanhol, a vida é apenas una breve parte de la realidad, pois lo verdadero son el cielo y el infierno. La idea de Calderón es una idea cristiana. Creo que Calderón le daba el énfasis a la idea de lo transitorio de la vida, comparado con lo transitorio de un sueño.
Na verdade, a peça do "Siglo de Oro", montada pela primeira vez por volta de 1635, coloca em questão, de uma maneira muito borgiana, a própria realidade da realidade. Segismundo é um prisioneiro que sonha em ser príncipe? É um príncipe resgatado do pesadelo de uma prisão? A vida é real? Ou é um sonho? “Uma sombra”? “Uma ficção”?
O que significa estar vivo, existir? Os versos pues el delito mayor / del hombre es haber nacido são citados com reverência por Arthur Schopenhauer, que por sua vez foi uma forte influência intelectual sobre Borges. Este aliás opina, na entrevista supracitada, que Calderón es una invención de los alemanes. A resolução edificante do enredo — Segismundo vira um bom rei, pai e filho se reconciliam — era apropriada para a Espanha do século XVII, e em nada diminui a profundidade das questões metafísicas suscitadas.
Se Jorge Luis Borges tinha reticências em relação a Pedro Calderón de la Barca, eu nenhuma tenho quanto a seu soneto “A Luis de Camoens”, da coleção El hacedor (1960). É esse o poema que decidi ler, em 3 de maio, ao público presente na livraria em Kuala Lumpur.
Expliquei à plateia que o "Dia da Língua Portuguesa" seria logo em seguida, em 5 de maio. Mencionei ser Camões o poeta nacional de Portugal, e um dos pilares das literaturas de língua portuguesa. Comentei que a colonização do Brasil começara simultaneamente à derrocada pelos portugueses do Sultanato de Malaca (1511), quando Portugal se instalara naquela área da Península Malaia, primeira potência europeia a fazê-lo. Como consequência, o malaio contém vários vocábulos derivados do português. O próprio Luís de Camões vivera em Malaca. Apontei os versos em que Borges lembra ter o poeta voltado à patria nostálgica para morir en ella y con ella, já que em 1580, mesmo ano de sua morte, Portugal e suas colônias passaram sob o domínio espanhol.
É este o soneto:
Sin lástima y sin ira el tiempo mella las heroicas espadas. Pobre y triste a tu patria nostálgica volviste, oh capitán, para morir en ella y con ella. En el mágico desierto la flor de Portugal se había perdido y el áspero español, antes vencido, amenazaba su costado abierto. Quiero saber si aquende la ribera última comprendiste humildemente que todo lo perdido, el Occidente y el Oriente, el acero y la bandera, perduraría (ajeno a toda humana mutación) en tu Eneida lusitana.
Os últimos versos são uma celebração do ofício poético e, por extensão, da literatura como um todo, e da arte. Os grandes autores e artistas fazem perdurar, em nossas mentes, a experiência humana ao longo da história, e dão sentido ao que, sem eles, talvez não tenha sentido algum. Essa é uma constatação sempre presente para mim. Em 1580, Portugal perdeu el Occidente y el Oriente, a glória da espada e da bandeira. Mas tudo isso é resgatado, e magicamente sobrevive, em Os Lusíadas.
O evento na livraria chegava ao fim. Faltava contudo algo. Seria inconcebível que Dom Quixote, no "Dia do Idioma Espanhol", não fosse lembrado. Uma aluna universitária malásia levantou-se, subiu ao pódio e leu parágrafos da obra de Cervantes, primeiro em castelhano, depois em malaio. Como convinha, um dos grandes mitos da literatura universal, o leitor de romances medievais que resolveu atacar moinhos de vento, surgira para encerrar a sessão.
Este texto foi primeiro publicado, em 5 de agosto de 2023, no jornal de literatura Rascunho
A foto da atriz Goizalde Núñez no papel de Clarín, na produção do Cheek by Jowl de La vida es sueño, é de Javier Naval
*Marcos Troyjo: “O Brasil pode ser o Vale da Água do planeta”*
AgroRevenda
Revista Edição 101
Entrevista
8 de novembro de 2023
Não é fácil encontrar um servidor público no planeta inteiro com a competência, objetividade, o conhecimento e a humildade de Marcos Prado Troyjo. Nascido no bairro paulistano de Perdizes. Pai com ascendência espanhola. Graduado pela Universidade de São Paulo (USP) em Economia e Ciências Políticas, realizou o doutorado na mesma instituição, na área de Sociologia das Relações Internacionais. Em 2005, apresentou tese de doutorado com o título: ‘Poder e a prosperidade: cenário mundial e nova economia’. Também foi aluno do Instituto Rio Branco e serviu durante dez anos como diplomata licenciado, em cargos como Secretário de Imprensa da Missão do Brasil junto às Nações Unidas e como parte da delegação do país no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), no biênio 1998 – 1999. Chefiou o gabinete do Departamento de Cooperação Científica e Tecnológica do Ministério das Relações Exteriores. Deu aulas em três universidades e palestras em vários países. Escreveu para jornais impressos e internet. E foi comentarista de sites nacionais e internacionais. Tem mais. Foi diretor do BRICLab, um centro de estudos sobre o Brics na Universidade de Columbia (Estados Unidos), onde também foi professor adjunto na School of International and Public Affairs (SIPA); Secretário Especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do Ministério da Economia do Brasil.
Troyjo ainda foi um dos principais interlocutores das negociações da finalização do Acordo Mercosul e União Europeia, considerado por especialistas em política externa como um dos maiores tratados entre blocos econômicos da história do comércio mundial. Foi eleito por unanimidade para liderar o banco multilateral de desenvolvimento pelo Conselho de Governadores do NBD. Em fevereiro deste ano, por obrigação legal, deu lugar à ex-presidente cassada Dilma Rousseff. Um homem que é um show de elegância, conhecimento, competência e clareza. A Revista AgroRevenda encontrou o corintiano Marcos Troyjo durante o Syngenta One Agro 2023, em Campinas (SP). Não há como desperdiçar uma oportunidade assim. Confira.
AgroRevenda – Quem é Marcos Troyjo?
Marcos Prado Troyjo – Sou brasileiro. Paulista e paulistano das Perdizes, da Rua Franco da Rocha. Sempre gostei de fazer esportes, fui estudar Economia e Ciência Política, entrei no Instituto Rio Branco, em um concurso para seguir carreira diplomática, fiz mestrado na área de relações internacionais e sociologia, fiz doutorado lá também e pós-doutorado na Universidade de Colúmbia. Uma trajetória que combina estudo com atividade diplomática e internacional. E, depois, acabei indo para o setor privado. Mas sem deixar de lado os estudos, dar aulas.
AgroRevenda – Sua família teve influência em sua formação?
Marcos Prado Troyjo – Sempre. Eles insistiram para que eu frequentasse boas escolas, estudasse línguas, morasse no exterior e me especializasse. Assim, acabei dando aulas lá fora.
AgroRevenda – E depois?
Marcos Prado Troyjo – Mais tarde, quando o Paulo Guedes estava montando sua equipe econômica, fez um convite para eu integrar sua área externa e a gente criou a Secretaria Especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais, que cuidaria das importações e exportações, mas também das relações com os bancos multilaterais, como o Banco Mundial e o Banco dos Brics.
AgroRevenda – Você, então, é um homem de sorte?
Marcos Prado Troyjo – Digamos que o apoio da família foi importante. Porém, o ditado diz que sorte é o encontro da competência com a oportunidade. Só que para ter competência é preciso trabalhar muito.
AgroRevenda – O que achou de participar de um encontro promovido por um gigante privado internacional do segmento?
Marcos Prado Troyjo – Agradavelmente admirado e satisfeito. Fiquei impressionado com o alcance, o número e a qualidade dos participantes. Muitos dados de pesquisa e desenvolvimento, produção, distribuição, logística. Gente de altíssimo nível, de diferentes setores do agronegócio. Comercialização externa, gerência, governança do agro. Foi uma honra participar.
AgroRevenda – Quais os desafios futuros do Agro Brasil?
Marcos Prado Troyjo – A trajetória do Brasil no Agro nos últimos cinquenta anos foi magnífica. Tanto que éramos um importador líquido de alimentos e hoje somos exportadores mundiais. Agora, o que tem de diferente para fazer do país um local de renda mais alta, empurrar o Brasil para frente, temos que ficar atentos. Se pegarmos as sete maiores, tradicionais e convencionais economias do mundo, o G7, (França, Canadá, Itália, Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha e Japão), estaremos falando de um Produto Interno Bruto, medido pela paridade de compra, no valor de US% 50 trilhões. É o PIB combinado. Porém, se fizermos a mesma conta ao pegarmos os países emergentes mais crescem (China, Brasil, Índia, Indonésia, Rússia, México e Arábia Saudita), o que gosto de chamar de E7, teremos um PIB combinado de US$ 60 trilhões, 20% a mais do que os tradicionais G7. E isso é relevante para a produção de alimentos no Brasil porque quando você tem países com crescimento tão vertiginoso, uma população tão grande e rendas per capita razoavelmente baixas, em geral, a renda a mais vai para o consumo de alimentos, multiplica o consumo de calorias, nutrientes. Isso significa que essa demanda mundial numa área em que temos uma vantagem comparativa mudou muito.
AgroRevenda – E como aproveitar esse momento?
Marcos Prado Troyjo – Fazer frente à demanda externa, diversificar nossa produção de alimentos, agregar valor, melhorar nossa armazenagem, distribuição e operação portuária de comida, conquistar o consumidor internacional, que agora quer ofertas mais sofisticadas e, obviamente, nos fazer valer do fato da dicotomia da competência dentro da porteira e ineficácia da porteira para fora.
AgroRevenda – Como se dá isso?
Marcos Prado Troyjo – Num momento em que a demanda mundial por alimentos é tão forte, a falta de infraestrutura no Brasil não é mais só um entrave brasileiro e sim mundial. Temos que ficar atentos às oportunidades de atração de investimentos de infraestrutura de longo prazo, pois aumentarão ainda mais nossa produtividade. Logo, ter dificuldades com custos de investimentos e demora cronológica para erguer grandes obras precisam nos levar diretamente ao mercado internacional. Produzir um bem em Mato Grosso e chegar com ele ao litoral era um problema só nosso. Agora não. No ano passado estive em reuniões no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na reunião do clima no Egito, no congresso anual do Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial, e o tema da segurança alimentar estava em todo lugar, o tempo inteiro. De modo que, se a segurança alimentar é um tema no topo das preocupações, precisamos ver nossa postura como grande produtor de alimentos como mais uma chance de resolver nossa defasagem estrutural. Até pelo divórcio entre oportunidade de investimentos que remunerem o capital de forma adequada e a necessidade de infraestrutura básica. Mais uma vez, temos uma grande chance de resolver nossos problemas mais contundentes nas duas próximas décadas.
AgroRevenda – Como devemos agir para atrair investimentos com base em sua atuação no exterior?
Marcos Prado Troyjo – Nós temos uma equação política que deve funcionar a serviço da atração de investimentos e a promoção do Brasil no exterior. Essa é a lição que temos que aprender com países que tiveram grande êxito nesse sentido. Mostrar uma imagem, prosseguir nas reformas estruturais e se integrar com os grandes mercados internacionais. Minha experiência no Banco de Desenvolvimento foi muito interessante. Primeiro, fui Presidente do Conselho e depois Presidente Executivo. O banco surgiu em 2015, é como uma criança. De 2015 a 2019, aprovou US$ 600 milhões de dólares em financiamentos ao Brasil. De 2019 para cá, foram mais US$ 5,4 bilhões. Logo, neste período, foi multiplicado por nove o número de projetos para o nosso país. Agora, se levar em consideração o que o banco pode fazer e o tamanho das necessidades estruturais que o Brasil tem, a contribuição é modesta. Por outro lado, esses bancos multilaterais funcionam como indutores de financiadores institucionais, fundos soberanos, isto é, aumenta o número de atores numa atividade de financiamento a nosso favor.
AgroRevenda – E o futuro?
Marcos Prado Troyjo – Meu copo está meio cheio. Vejo a situação como se fosse um jogo de cartas e o mundo estivesse passando por um terremoto. A gente volta à mesa, as cartas são distribuídas novamente e o Brasil entra no jogo. Somos uma potência do agronegócio, da energia e do meio ambiente. A confluência dessas três características destaca o Brasil. Vai ocorrer o crescimento virtuoso. E ele será mais rápido se o Governo ajudar e resolver seus dilemas políticos internos. Digo mais uma vez: as características superam as divergências políticas ocasionais e eleitorais. Seremos um dos principais destinos de investimentos diretos na próxima década.
AgroRevenda – Se você fosse o Presidente da República do Brasil, o que faria daqui para frente?
Marcos Prado Troyjo – Para qualquer presidente, penso que nos próximos anos temos que continuar o processo de reformas estruturais. Em viagem recente à Singapura, ouvi diversas vezes que o nosso país está no sétimo ano consecutivo de reformas. Afinal de contas, essa é a maneira de absorvermos parte importante dessa recolocação de cadeias globais de suprimentos, que está saindo um pouco da China, buscando alternativas. O Brasil já foi o maior parque industrial do hemisfério sul. Para isso precisa das reformas. Entre elas, a tributária, que representa demais ao empreendedor. Nossa média de tributos é 10% superior a dos países emergentes. Se nos aproximarmos deles, vai sobrar muito mais dinheiro para ações em educação, tecnologia e ciência, que são os grandes multiplicadores de produtividade, que é nosso grande problema. Isso só ocorre com a economia de mercado, com o setor privado.
AgroRevenda – Podemos sofrer com a concorrência internacional?
Marcos Prado Troyjo – Isso já ocorre em diversos setores. China e Índia estão entre os quatro maiores produtores de alimentos do planeta, por exemplo. Porém, os chineses têm uma população enorme e precisam importar. E a Índia necessita fazer reformas de natureza social. Entre as maiores economias do mundo, aquela que tem acesso aos recursos hídricos, solo, meteorologia, trabalho duro e capacidade de produção é o Brasil.
AgroRevenda – Por que você citou a água?
Marcos Prado Troyjo – É o insumo mais básico para produção agrícola. Veja o caso mais grave, que é o da Índia. De cada 10 litros de água naquele país, 8,5 litros vão para as lavouras. Logo, eles precisam racionar para o uso pessoal, higiene, energia, etc. Aqui não. Outra comparação que gosto de fazer é com o Vale do Silício, berço da tecnologia no Estado americano da Califórnia. O silício é um elemento fundamental para a construção de inúmeros equipamentos eletrônicos. O Brasil pode ser o ‘Vale da Água’ do planeta. Lembro-me de um congresso de que participei na Índia. Um professor me falou sobre o comércio do futuro como o comércio de água do mundo. E também recordei uma explicação de um grande economista que conheci. Ele dizia que a China importa tanta soja porque o grão exige muito mais água do que o milho, que eles produzem bem até hoje. A água tecnológica brasileira será o grande fator de nova agregação de valor para nossa economia e nossa sociedade.
AgroRevenda – Por que o alimento é um tema que assusta tanto?
Marcos Prado Troyjo – Em 2050, a população mundial chegará a 10 bilhões de pessoas. Hoje, são oito bilhões. No período entre o nascimento de Jesus Cristo e 1927, a população mundial chegou a dois bilhões de pessoas. Nos próximos 27 anos, vamos ter um incremento populacional igual a uma nova China e uma nova Europa somadas. Outros dois bilhões. Um aumento que vai ocorrer essencialmente pelo crescimento líquido de apenas poucos países. Uganda, República Democrática do Congo, Índia, Paquistão, Indonésia, Etiópia, Tanzânia e um pouco dos Estados Unidos. É uma mudança muito dramática. É grave. Porque na confluência da participação do E7 no PIB mundial com essa explosão demográfica, o motor do crescimento mundial virá, sobretudo, dos emergentes, com grandes contingentes populacionais. Veja o caso da China. Em 2023, eles devem crescer em torno de 5%. Porém, vinte anos atrás cresciam 10% ou 11% ao ano. Só que eles têm hoje um PIB nominal de U$ 19 trilhões. Em 2001, era um PIB de US$ 2 trilhões. Naquela época, a base era uma contribuição para o PIB Global de US$ 40 bilhões. Hoje, a contribuição será de US$ 950 bilhões. Vinte vezes mais.
AgroRevenda – E o Brasil?
Marcos Prado Troyjo – Vamos pensar. A Índia deve crescer 5% ou 6% neste ano. Mais do que a China desde 2015. E valor igual à Indonésia. Duas nações com grande contingente populacional. É o mesmo que dobrar a renda per capita num período de doze anos. Num país rico, incremento assim é usado para comprar carro novo, casa nova. Nos emergentes, que crescem sobre bases muito deprimidas, as pessoas usam o dinheiro para comer mais e melhor. Logo, não podemos mais falar em super ciclos de commodities. É uma mudança estrutural da demanda mundial por alimentos, jogando lá para cima. É algo que não tem volta. Não é produzir, ser sustentável. É produzir mais. Aumento brutal da produção de alimentos. Agora, se isso é verdade, quem vai produzir esse alimento é o Brasil. Pois, dos quatro maiores produtores, o único que não tem problemas de importação ou recursos naturais é o Brasil. E isso tem sido demonstrado muito bem nos últimos anos.
AgroRevenda – E os resultados financeiros vão compensar?
Marcos Prado Troyjo – Em 2001, o comércio entre Brasil e China era de US$ 1 milhão por dia. Hoje, é de US$ 250 milhões por dia. Estamos estabilizando essa performance sem muito esforço. Somos uma fatia de 4% de tudo o que os chineses compram do mundo. Eles importam US$ 2,5 trilhões. Nós exportamos US$ 100 bilhões sem muito esforço. São R$ 500 bilhões. Quando participei do Governo Bolsonaro, na equipe do Ministro Paulo Guedes, sei do esforço para economizar R$ 1 bilhão na Previdência Social para não termos uma quebradeira. Tenho convicção de que seremos mais ricos em apenas uma geração, com renda per capita acima de US 20 mil ao ano. Podemos enriquecer bastante nos próximos 27 anos.
AgroRevenda – O senhor aposta em acordos bilaterais, como China e Mercosul?
Marcos Prado Troyjo – Não vejo isso como tão importante. Penso que devemos ter novos mercados e para produtos específicos e agregados. Frutas, carnes, derivados de leite. Como o Uruguai faz. Produtos de qualidade, bem embalados, estrategicamente colocados. Todos os países que viveram milagres econômicos depois da Segunda Grande Guerra Mundial, mesmo em diferentes regiões, com culturas distintas, regimes abertos ou fechados, usaram um intenso comércio exterior. Os países fechados ficaram para trás. Como Rússia, Turquia e um pouco o Brasil. Nossa dinâmica de abertura foi forte somente nos últimos quatro anos. Atingimos em 2022 uma corrente comercial de US$ 600 bilhões, batendo vários recordes. Se continuarmos nessa dinâmica traremos bastante benefícios à sociedade.
AgroRevenda – E os europeus?
Marcos Prado Troyjo – Com a União Europeia seria importante uma ligação por causa do fluxo de investimentos diretos. Grandes investidores encontram-se lá. Na Alemanha, França, Itália e Espanha. Apesar de atualmente exportarmos mais para Tailândia e Singapura. Sem falar que os europeus também perdem grandes oportunidades por estarem fechando ou ameaçando fechar o mercado para nós. Agora, estou muito impactado por um estudioso do Goldman Sachs que analisou o mercado de commodities e concluiu que o importante não é a explosão de preços e vendas dos grãos ao longo do tempo e sim de investimentos em capital que se segue aos dois primeiros fenômenos. O Brasil precisa estar atento para receber esse dinheiro.
MARCOS PRADO TROYJO
• Nasceu em São Paulo – Capital
• Graduado em Economia e Ciências Políticas | USP
• Empresário, cientista social, diplomata, escritor e economista
• Presidiu o New Development Bank (Banco dos Brics)
• Pessoa do Ano em Comércio Exterior – Fundação Brasileira de Estudos de Comércio Exterior