Recentemente, alguém ainda desenterrou um antigo texto meu, da época e da série dos mini-tratados. Creio que este foi o primeiro, depois vieram muitos outros mais.
Puro divertissement...
Paulo Roberto de Almeida
5) É possível viver
sem reticências...? - Paulo Roberto de Almeida
Minitratado das reticências
(em defesa de uma inutilidade necessária…)
Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org)
Pouca gente dotada de uma certa familiaridade
com a palavra escrita consegue atribuir real importância às reticências,
inclusive este cidadão que aqui escreve. Quero falar das reticências stricto
sensu, isto é, os famosos três pontinhos ao final de alguma frase ou
expressão da linguagem diária (elas parecem ser menos usadas nos textos ditos
“sérios”, nos quais a necessária precisão “científica” deixa pouco espaço para
as dúvidas ou indecisões que são (e estão) inevitavelmente associados aos três
pontinhos). No mais das vezes, elas passam despercebidas, quando não são
solenemente ignoradas e deixadas num espaço menor das figuras de linguagem. Os
cientistas, francamente, parecem considerá-las uma total inutilidade no
processo de elaboração do seu discurso “realista”.
No entanto, as reticências são fundamentais, sobretudo naqueles casos –
agora lato sensu – de duplo sentido, nos muitos subentendidos
das conversas vagas, nas promessas indefinidas, nas situações pouco claras, nas
esperanças falsamente criadas, nas aberturas ao contraditório, nos convites a
“algo mais”, enfim, em todas as circunstâncias nas quais a precisão e o cuidado
com o verdadeiro não figuram entre as prioridades do autor do discurso ou de
seu eventual interlocutor. Não é apenas no teatro ou na literatura que elas
aparecem, pois eu, que sou dado a escritos sociológicos, encontro amplo espaço
para reticências nas minhas elocubrações pretensamente acadêmicas. Nem preciso
lembrar seu amplo uso nas estatísticas oficiais, com tabelas cheias de três
pontinhos para dados inexistentes ou incompletos (sobretudo naquelas áreas
chamadas, apropriadamente, de “terras incógnitas”, geralmente referidas na
expressão em latim).
Minha intenção é fazer aqui uma defesa circunspecta das reticências (daí o
título de “mini-tratado”), além de ressaltar-lhes a importância discursiva,
como a própria essência do discurso humano. Eu, pessoalmente, gosto de
reticências, sobretudo pela liberdade que elas permitem, mas entendo
perfeitamente os que as abominam e querem vê-las extirpadas da face da terra
(ou pelo menos da superfície do papel, atualmente, mais bem da tela do
computador…).
Voilà, acabo de usar reticências pela primeira vez depois de muitas
frases e dois parágrafos inteiros sem necessidade de empregá-las. Isto é uma
prova, justamente, de que as reticências são úteis e necessárias e por mais que
queiramos evitá-las. Pois eu falava daqueles que detestam reticências e são a
favor das situações totalmente definidas, do correto discurso tipo “pão, pão,
queijo, queijo”, mas que, em algum momento, também tropeçam com alguma
reticência que se imiscuiu no discurso aparentemente correto e totalmente
claro.
Admito, preliminarmente, que as reticências parecem incompatíveis com a lógica
formal, aquela que deriva uma consequência necessária de duas afirmações
anteriores, tipo “todo homem é mortal, Sócrates é um homem, logo… etc., etc.”.
Mas, mesmo aqui, como acaba de constatar o preclaro leitor, fui levado a usar
reticências, pois eu não precisava terminar a frase, por uma dedução lógica do
imediatamente precedente.
Eu poderia, nesta minha defesa pouco reticente das reticências, empregar uma
derivação do famoso moto cartesiano: “penso, logo sou reticente…”, mas não
pretendo abusar do meu direito a ser reticente, nem da paciência do leitor.
Prefiro ater-me a um discurso coerente, ainda que algo impressionista, sobre a
importância das reticências na atividade argumentativa e até na organização da
vida diária. Serei breve, como convém a um “mini-tratado”, marcado por algumas
reticências terminológicas, vários duplos-sentidos e outras tantas dúvidas
conceituais.
Admito, antes de mais nada, que as reticências passam quase despercebidas nos
manuais de estilo e mesmo nos livros de gramática. Meu dicionário Aurélio, por
exemplo, na introdução relativa às instruções da Academia Brasileira de Letras
(de 1943) para a organização do vocabulário ortográfico da língua portuguesa,
passa solenemente por cima, quando não à côté, desses simpáticos sinais, objeto
de meu tratado, ignorando-os por completo. Com efeito, na parte relativa aos sinais
de pontuação, a douta Academia, zelosa guardiã da boa expressão e da correção
de linguagem, registra apenas e tão somente as aspas, os parênteses, o
travessão e o ponto final, assim, não mais do que isso. Mas o MEC foi
vigilante, e na portaria nº 36, de 28 de janeiro de 1959, registrou na
Nomenclatura Gramatical Brasileira os seguintes sinais de pontuação: aspas,
asterisco, colchetes, dois-pontos, parágrafo, parênteses, ponto-de-exclamação,
ponto-de-interrogação, ponto-e-vírgula, ponto-final, reticências, travessão,
vírgula.
Voilà, aí estão nossas simpáticas reticências, cuja definição
“científica”, constante do mesmo dicionário Aurélio, apresenta-se como a
seguir: “[Pl. de reticência.] S. f. pl. Sinal de pontuação: série de três ou
mais pontos que, num texto, indicam interrupção do pensamento (por ficar, em
regra, facilmente subentendido o que não foi dito), ou omissão intencional de
coisa que se devia ou podia dizer, mas apenas se sugere, ou que, em certos
casos, indica insinuação, segunda intenção, emoção. [Sin.: pontos de
reticência, pontos de suspensão e (fam.) pontinhos. Cf. reticencias, do v.
reticenciar.]” (p. 1229, da 15ª impressão da 1ª edição da Nova Fronteira, sem
data).
Pois eu acabo de ficar sabendo da existência do verbo reticenciar, que passarei
a utilizar agora, em toda a extensão do que me for permitido pelos bons
costumes e reais necessidades de expressão. Trata-se de um verbo transitivo
direto, que tem o significado, justamente, de colocar reticências em algo ou
exprimir de modo reticente, incompleto, como em: “A testemunha reticenciou os
fatos”. Mas, não pretendo reticenciar meu mini-tratado sobre as
reticências.
Dito isto, retenho da definição aureliana sobretudo a última parte, pois que a
interrupção de pensamento é tão evidente que nem precisaria ser explicada. A
última parte refere-se à omissão intencional, que pode querer dizer insinuação,
segunda intenção ou emoção. Aqui estão a essência, o caráter fundamental, o
âmago e a alma profunda, se ouso dizer, das reticências, que parecem ter sido
trazidas ao mundo para acomodar todas as situações ambíguas e os propósitos não
declarados.
Aliás, o singular da palavra em questão já trazia essas “más intenções”
inscritas em sua definição original. O substantivo vem do latim reticentia, que
quer dizer “silêncio obstinado”. O enunciado remete a uma “omissão intencional
de uma coisa que se devia ou podia dizer”, o que nos confirma o caráter de
subterfúgio do conceito em questão. E o que é subterfúgio?: segundo o mesmo
dicionário, trata-se de “ardil empregado para se esquivar a dificuldades;
pretexto, evasiva”. Pois todos nós, na vida diária, nas atividades literárias,
no jogo da política (sobretudo) e nas coisas do amor (aqui parece fundamental)
necessitamos, em algum momento, de utilizarmo-nos de algum subterfúgio. Para
evitar confrontar o interlocutor com alguma mensagem muito direta, fazemos
apelo a essas figuras de linguagem pouco claras e a esses conceitos ambíguos
que brotam, justamente, da complexidade natural do ser humano e do mundo que o
cerca (estou sendo muito antropocêntrico, talvez, mas é que os animais, por
exemplo, não precisam de reticências, pois eles costumam ir direto ao assunto,
sobretudo os predadores carnívoros).
O recurso aos três pontinhos é por vezes absolutamente necessário para evitar
algum conflito maior, e parece estranho que as reticências sejam tão pouco
usadas no vacabulário diplomático, na letra dos tratados, nos discursos
oficiais (justamente os que mais necessitariam de alguma “ambiguidade
construtiva”). Não sei se existe espaço para o uso de reticências no curso de
“linguagem diplomática” do Itamaraty, mas deveria haver, para acomodar todas
essas situações difíceis nas negociações internacionais: parece evidente que as
conferências terminariam mais cedo se todos pudessem ir para casa sobraçando o
seu exemplar de algum tratado, cheio de pontos suspensivos…
O único problema (aparente) das reticências é que elas não aparecem de modo
claro na linguagem oral, só naqueles “balõezinhos” acima da cabeça das pessoas
nos desenhos de revistas ou diretamente nos textos escritos. Na linguagem
coloquial elas são imperfeitamente traduzidas nas hesitações da expressão, nas
frases não acabadas, nas terminações muito lentas, que se arrastam ao longo de
um sorriso por vezes embaraçoso. Vamos deixar, justamente, um espaço aberto à
criatividade e à imaginação humanas, que não podem ficar só na lógica binária
dos programas de computador ou na rigidez das fórmulas matemáticas que
pretendem encerrar o mundo numa única expressão: E=mc2.
O mundo não é feito só de cartesianismos, muito menos de fórmulas einsteinianas
ou newtonianas totalmente abrangentes, que funcionam no estrito limite dos
fenômenos identificados pelas forças conhecidas da natureza. Existem outras
forças que ainda não foram devidamente mapeadas pela ciência moderna (ou
antiga, ou medieval, ou de todos os tempos), a começar, obviamente, pelo amor.
Pois eu pergunto: o que seria do amor sem as reticências? O que seria dos
namorados se eles precisassem dizer tudo de forma clara, absolutamente sem
ambiguidades, sem essas “sugestões construtivas”, sem essas omissões
convenientes, sem os subentendidos de linguagem? Certamente haveria muito mais
brigas, e as taxas de separação (e de divórcio) seriam infinitamente
superiores…
Tomemos, por exemplo, o caso de Penélope, interminavelmente a fiar e a tecer a
sua tela, ela mesma uma permanente reticência, pois que desfeita a cada noite
para evitar o confronto indesejado com os pretendentes ao trono de Ulisses. O
que mais ela poderia fazer na ausência do seu amado, ele mesmo preso nas
reticências dos troianos, que hesitaram um pouco antes de arrastar para dentro
da fortaleza o cavalo de madeira que ele tinha sugerido aos gregos? O próprio
herói não ficou quase retido nas reticências dos montros marinhos, nos encantos
reticentes e nas promessas enganosas das lindas sereias? Se Penélope não fosse
reticente, Ulisses ainda teria de enfrentar uma nova odisséia para garantir o
seu lugar original no comando da ilha de Ítaca. Poderíamos, assim, dizer que a
situação de Ulisses foi salva pelo uso das reticências…
Assim, mesmo concordando em que o discurso “científico” precisa livrar-se de
toda e qualquer ambiguidade explicativa, sou franca e resolutamente a favor das
reticências e de seu uso da forma mais ampla possível nas circunstâncias
cambiantes que são as da vida humana. Reticências nos ajudam, nos confortam,
nos salvam de situações embaraçosas. Elas, sobretudo, nos permitem construir
relações que podem frutificar de modo amplamente satisfatório mas que só
sobreviveriam, em face de adversidades e dos muitos imponderáveis da vida
humana, caso a flexibilidade por elas permitida seja efetivamente empregada
para estender os limites do entendimento até esses situações limites de
acomodação de contrários. A vida é contraditória e cheia de surpresas: não
podemos tolher as possibilidades infinitas do nosso interário futuro com frases
cortantes que encerram apenas as limitações do presente.
As reticências significam, essencialmente, liberdade de escolha. Nisso elas
estão inteiramente de acordo com a “economia” do nosso modo de ser, sobretudo
nas situações intensamente relacionais. Vivam as reticências…
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 28 de novembro de 2004