Ao
contrário do que se possa pensar, para a maioria dos burgueses parisienses, a
ocupação nazista que durou quatro anos (1940 /1944) não foi tão má quanto
poderia parecer, afirma Gerassi, o biógrafo mais importante de Sartre.
O metrô
funcionava bem, os teatros faziam sucesso, os bares e os restaurantes viviam
cheios. É bem verdade que o café não era mais o mesmo, que a bebida tinha uma
qualidade discutível, que a suástica drapejava sobre as Tulherias, sobre a
Câmara dos Deputados e sobre o Palácio de Luxemburgo. Também é verdade que a
tropa alemã descia diariamente os Champs-Élysées, sempre ao meio-dia e meia,
marchando a passo de ganso; que a Torre Eiffel amanhecera, num dia de verão de
1940, adornada com um V gigantesco, acompanhado por um cartaz que dizia:
“Deutschland siegt auf Allen Fronten”, ou “A Alemanha vence em todas as
frentes”.
Ainda
assim, os burgueses comiam muito bem, graças tanto às ligações mantidas ente a
cidade e o campo, quanto ao mercado negro, tolerado e mancomunado com a
autoridade de ocupação.
Em Paris,
a “Festa Continuou”, diz Riding, em referência ao círculo intelectual e
artístico daquela cidade então considerada, até pelos ocupantes nazistas, a
capital cultural do mundo. A rigor, não houve nada no mundo do entretenimento e
das artes de Paris que tenha sofrido durante a ocupação; a festa simplesmente
seguira adiante. Os cinemas, por exemplo, viviam cheios, pese o banimento das
películas norte-americanas e do jazz, porque, de acordo com um jornal
colaboracionista, tinham um sabor “negro-judeu”.
E os
comportamentos individuais? Num país onde os intelectuais e artistas eram
reverenciados como “entes superiores”, e no qual a população era educada para
reverenciar suas teorias e atitudes, o mundo cultural teve maiores
responsabilidades pelo colaboracionismo com o nazismo, graças a essa
influência.
Alguns
cantores como Maurice Chevalier e Édith Piaf colaboraram com os invasores,
realizando tournées musicais nos campos de prisioneiros de guerra franceses,
como propagandistas do “bom tratamento” dado a eles pelos nazistas. Escritores
como Célinecolaboraram ativamente na França e na Itália
fascista. As atrizesDanielle Darrieux e Viviane Romance esqueciam as barbáries praticadas
pelos nazistas enquanto, enquanto realizavam turismo através da pátria do
nacional- socialismo hitlerista.
Coco
Chanel vivia em sua suíte no Ritz com um alto oficial alemão. Le Corbusier, canonizado em vida como modernista por
arquitetos do mundo inteiro no pós-guerra, inclusive no Brasil, grudou nas
autoridades de ocupação em busca de verbas para seus projetos; afirmou,
tentando agradar ao governo de ocupação, que “a sede dos judeus por dinheiro
havia corrompido o país”.
O esperto André Gide disse: “Prefiro não escrever nada hoje,
que possa me deixar arrependido amanhã”, o autor que ganharia o Nobel em 1947.
Outros artistas adotaram atitudes semelhantes, calaram-se e procuraram pouco
aparecer. Picasso optou por permanecer
em Paris durante a ocupação, vendendo discretamente seus quadros, e recusou-se,
por covardia, a assinar uma petição pela liberdade de um amigo, o poeta Max Jacob, preso pela Gestapo – documento que até mesmo
colaboracionistas assinaram. Jacob morreu no infame campo de concentração de
Drancy.
O editor Bernard Grasset, o primeiro a editar Proust em 1913,
chegou quase a implorar a Joseph Goebbels o direito de publicar na França a
“obra magistral” do sumo sacerdote da propaganda nazista.
Sacha
Guitry, ator e cineasta de renome no pós-guerra, tornou-se íntimo do
embaixador do III Reich, Otto Abetz; Tino Rossi, um dos
melhores tenores de sua época, interpretou na Ópera de Paris para a alta
oficialidade das tropas de ocupação.
Os
escritores Drieu de La Rochelle e Robert Brasillack viajaram a Nuremberg para
aplaudirem Goebbels. Os artistas plásticos Derain,Vlaminck e Maillot cruzaram
o Reno para receberem medalhas por seus trabalhos, outorgadas pelos invasores
da França.
A censura
era feroz. Em 1941, nada menos que duas mil obras e mais de oitocentos e
cincoenta escritores haviam sido banidos e todos os editores, com exceção de Emile-Paul, o aprovaram. O Presidente da Associação dos
Editores Franceses, René Philippon disse
“que essas disposições (listas de proibições), não criam grande problema para a
atividade editorial, pelo contrário, possibilitam o desenvolvimento do
pensamento autenticamente francês… e estimulam a união dos povos.”
Gallimard, o editor
de Sartre, nomeou Drieu de La Rocheleeditor da
prestigiada revista Nouvelle Revue Française,
a qual editou traduções de escritores nazistas. É verdade que se livrou de
editar Les Décombres, um lixo literário de exaltação aos “heróis do nazismo”,
escrito por Lucien Rabanet, que terminou
publicada por Denoel.
É bem
verdade que muitos intelectuais e artistas recusaram-se a trabalhar na França
ocupada. Foi o caso do indignado Jean Renoir, diretor
de obras-primas como “A Regra do Jogo”, que preferiu se refugiar nos Estados
Unidos a filmar na França, no que foi seguido pelos seus colegas René Clair, Max Ophalus e Duvivier, assim como pelos atores Michele Morgan, Aumont e Dalio.
Uns
poucos, bem poucos, como o ator Jean Gabin e o
escritorAlbert Camus,
incorporaram-se aos maquis, e colaboraram na resistência armada. Do mesmo modo
que Jean Guehenno e Jean Brullerpassaram
a escrever na clandestinidade fundando as clandestinasEditions de Minuit. Disse o filósofo Politzer, amigo de Sartre, em 1941:“Hoje, na França, literatura legal significa literatura de
traição.”
No entanto,
a grande maioria dos artistas e dos intelectuais, como o fez quase toda a
burguesia francesa, simplesmente continuou sua vida normal, tentando ganhar o
pão de cada dia, como se os alemães não existissem, e assim o fizeram
escritores como Simenon, Paulhan e Aragon.
A divisão
clássica sobre a conduta dos franceses durante os anos da ocupação, entre
heroísmo e covardia, que permanece em vigor até hoje em romances e filmes, a
começar pelo inevitável “Casablanca” é pura ficção. De um lado estariam os
cidadãos decentes e patriotas, que optaram pela Resistência e vão combater o
invasor na clandestinidade; no outro ficariam os colaboradores ou traidores,
que continuam levando sua vida de sempre, convivendo em paz com o ocupante e
ajudando-o a governar. Riding, entretanto, assim como Gerassi, recusam-se a
aceitar essa divisão. Seus livros revisitam a vida real da gente real na Paris
ocupada – e aí entramos numa zona de sombra onde é inútil procurar respostas em
preto e branco.
Depois da
guerra, Sartre tentaria explicar: “Durante quatro anos, nosso futuro nos foi
roubado”. “Todos os nossos atos eram provisórios, seu significado limitado ao
dia em que eram cometidos”. É verdade que havia uma Resistência, mas ela
“afetava muito pouco a História, tinha mais um valor simbólico; é por isso que
tantos resistentes entravam em desespero: sempre os símbolos! Uma rebelião
simbólica numa cidade simbólica- só que as torturas eram reais”. E ainda: “O
que era terrível não era sofrer e morrer, mas sofrer e morrer em vão… durante esse
período, pouca gente se comportou na França com coragem e precisamos
compreender que a Resistência ativa estava limitada a uma minoria que se
oferecia deliberadamente e sem esperanças ao martírio, o que basta para
resgatar nossas fraquezas.”
NUNCA
BASTOU!
Fontes:
1. Gerassi, John. Talking with Sartre:
Conversatios and debates.
2. Gerassi John. Sartre a consciência odiada de
seu tempo.
3. Riding, Alain. Em Paris a Festa Continuou.
Companhia das Letras, 2012.
4. Sartre, J.P. O que é um colaborador?