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quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Que falta faz um chanceler - Elio Gaspari (FSP)

Elio Gaspari comenta episódios da diplomacia profissional do regime militar, e lamenta que o atual chanceler, acidental e improvisado, não atue para controlar – esse é o termo – o presidente mais que improvisado, incompetente em diplomacia e um desastre em política externa, que pode prejudicar terrivelmente as relações com nosso principal vizinho.


Médici, Geisel e Figueiredo tinham suas opiniões, mas sabiam que deviam ouvir os profissionais

A declaração de Jair Bolsonaro de que a derrota de Mauricio Macri na prévia eleitoral argentina pode significar uma vitória da “esquerdalha” de Dilma Rousseff, Hugo Chávez e Fidel Castro, foi coisa inédita, assombrosa.

Ele pode achar o que quiser, mas não tem mandato para meter o Brasil numa disputa eleitoral argentina.

Falando de questões internas, pode se intitular “Capitão Motosserra” ou expor sua teoria da relação do meio ambiente com o cocô. Bolsonaro é assim e sem dúvida prefere ver os brasileiros discutindo cocô em vez do cheiro de uma recessão na economia.

Bolsonaro não gosta dos governos civis que o antecederam. Tudo bem. Ficando-se com os exemplos que lhe deixaram os militares, salta aos olhos uma lição: falta-lhe um chanceler, ou, pelo menos, um ministro das Relações Exteriores com as qualidades profissionais de Mário Gibson Barboza (governo Médici), Azeredo da Silveira (Geisel) e Ramiro Guerreiro (Figueiredo).

Os três descascaram abacaxis nas relações com a Argentina sem criar atritos. Graças aos dois primeiros, conseguiu-se negociar em relativa harmonia a construção da hidrelétrica de Itaipu.

Médici aguentou um desaforo do general-presidente Agustín Lanusse. Numa visita a Brasília, ele enfiou um caco no discurso que fez no Itamaraty, e sua comitiva chegou à grosseria de cortar do comunicado conjunto uma referência à “inquebrantável amizade” dos dois países. Na costura da calma estava Mário Gibson.

Lanusse foi substituído pelo demagogo larápio Juan Perón. Tinha tudo para acabar em encrenca. Ele vivia exilado na Espanha. Em 1964 tentou descer na Argentina mas foi barrado pelo governo brasileiro no aeroporto do Galeão e teve que voar de volta. Ainda por cima, era amigo do presidente deposto João Goulart e assumiu criando dificuldades para a construção de Itaipu.

O general Ernesto Geisel detestava-o e disse ao embaixador brasileiro em Buenos Aires, Azeredo da Silveira, que não negociaria “com quem está de má-fé, sem honestidade de propósitos”.

O diplomata não havia sido convidado para o ministério e sabia que estava numa sabatina, mas disse ao general: “Mesmo assim, é preciso negociar”. Geisel negociou.

Perón morreu sem que a ditadura brasileira encrencasse com seu governo ou com o de sua substituta, a vice Isabelita, uma ex-dançarina de cabaré panamenho.

Coube a Ramiro Guerreiro, o chanceler de João Figueiredo, o melhor lance da diplomacia dos generais com a Argentina. Em 1982, ela era presidida pelo general Leopoldo Galtieri, um cavalariano chegado ao copo, que mantinha boas relações com Figueiredo.

Com a popularidade em baixa, Galtieri resolveu invadir naquele ano a possessão britânica das ilhas Malvinas. Se dependesse de Figueiredo e dos militares que o cercavam, o Brasil ficaria do lado da Argentina.

Coube a Guerreiro tomar distância. Não podia ficar perto da maluquice de Galtieri, mas também não podia se aproximar da inevitável vitória dos ingleses. Algo como tirar a meia sem descalçar o sapato, e Guerreiro conseguiu.

(Meses depois, a diplomacia brasileira conduziu uma gestão para que os ingleses devolvessem o capitão Alfredo Astiz, que se rendeu nas Malvinas. Tremenda sorte a de Astiz, pois recebeu o tratamento que merecem os soldados. Ele havia sido um dos maiores assassinos da ditadura militar argentina que sucedeu Isabelita Perón. Era apelidado de Anjo Ruivo da Morte. Está na cadeia.)

Médici, Geisel e Figueiredo tinham suas opiniões, mas sabiam que na Presidência deviam ouvir os profissionais. Por sorte, tiveram Gibson, Silveira e Guerreiro.

Elio Gaspari
Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

Stalinismo diplomático em ação no Itamaraty - Clipping de notícias deliberadamente censurado

Sempre leio o Clipping do Itamaraty, uma vez que transcreve as principais matérias de imprensa que têm a ver com a política externa e a diplomacia brasileira, sem precisar ir a cada um dos órgãos que publicaram tais matérias.
Ontem, como transcrevi aqui, foi publicado um artigo meu no Estadão chamado "O Senado e a diplomacia", perfeitamente enquadrado, portanto, nesta seleção dos artigos dessa temática. Aliás, o artigo de Paulo Delgado aparecia ao lado do meu, na p. A2 do Estadão, que foi transcrito devidamente, como aparece nesta relação: 

DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
Seleção Diária da Imprensa Nacional
Quarta-feira, 14 de agosto de 2019

O artigo de Paulo Delgado, antigo deputado do PT por MG, hoje desfiliado do PT, tem a ver apenas marginalmente com a diplomacia e a política externa e tenho o prazer de transcrevê-lo in fine.
Antes, informo sobre a publicação da versão publicada pelo Estadão de meu artigo, e da versão completa, publicada pelo site do Livres, do qual sou membro do Conselho Acadêmico.

3497. “O Senado e a diplomacia”, Brasília, 3 agosto 2019, 3 p. Publicado em versão resumida, no jornal O Estado de S. Paulo (14/08/2019, p. A2; link: https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,o-senado-e-a-diplomacia,70002966504). Publicado em versão completa no site do Livres (link: https://www.eusoulivres.org/artigos/nepotismo-ameaca-credibilidade-da-diplomacia-brasileira/); republicado no blog Diplomatizzando (15/08/2019; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2019/08/o-senado-e-diplomacia-paulo-roberto-de_15.html). Relação de Publicados n. 1319. 

Depois da censura absurda exercida contra um prefácio do embaixador Rubens Ricupero à biografia do Alexandre de Gusmão, escrita pelo embaixador Synesio Sampaio Goes, o Itamaraty confirma sua vocação censória.
Na terça-feira feira, depois que publicaram o anúncio de minha posse no IHG-DF numa versão matinal desse clipping, a mesma nota foi excluída logo em seguida, provavelmente pelas mesmas mãos censórias que se exercem contra mim no Itamaraty.
Não imaginei que o stalinismo diplomático se exercesse com tamanha prepotência no Itamaraty. Nem o prefácio do embaixador Ricupero, que tratava unicamente do século XVIII e do Alexandre de Gusmão, nem o convite à minha posse, na cadeira Tobias Barreto, um jurista do século XIX, têm algo a ver com a atual diplomacia olavo-bolsonarista.
Trata-se apenas de vocação censória e sectária dirigida a pessoas, não à matéria substantiva.
Paulo Roberto de Almeida



PAULO DELGADO SOCIÓLOGO

Blow-up é a ampliação do negativo. Ao revelar a cena e desconfiar da aparência do presidente, que fala em mudança e age como se não a quisesse, o Parlamento entendeu o recado. Partiu para agenda própria e precisa de ímpeto pontual e permanente diante do quotidiano disperso e ambíguo do Executivo.

Tem ainda a temporada no inferno por que passam o Judiciário e o Ministério Público. Seria bom os dois interromperem por um momento a troca de ofensas para explicarem, em nota conjunta, o que é mesmo a justiça para todos.

Convenhamos, não dá mais para alguém dizer essas coisas desse jeito. Sem modos nunca houve sociedade livre. Tem sido comum presidentes desfrutarem uma perigosa liberdade de expressão visando a dirigir os sentimentos da Nação para si próprios. Opiniões e atitudes nesse cargo deveriam ser fatos políticos extraordinários, e não o retrato dos princípios pessoais que estão por trás deles.

Ninguém é herdeiro das lutas do povo por ganhar uma eleição. Especialmente numa época em que milhões de mensagens angulam a percepção do eleitor numa determinada direção, violando sua privacidade. O escondido embaralha os critérios da pessoa, o flagrante esconde o principal. O truque da eleição continua.

Perder o equilíbrio da aparência para ser notícia contém uma carga de orgulho que, contrariada, pode desabar em violência. O insulto é uma forma de defesa. Nomear os outros para segregá-los, simplificando o sentido de tudo, revela um Brasil gigante anêmico.

Nada do que só fecha a porta ao entendimento é liberalismo. Tudo esconde seu oposto, especialmente venenosas atitudes cênicas. E ao deixar a economia se conduzir liberal, enquanto deixa claro que o que vale são acertos de contas, o presidente revela um mal inconsciente em sua compreensão das coisas. Explica a seus eleitores o que quer condenar supondo a rendição do País, que não gosta. Mais rígido, mais se enrola no paradoxo.

Se o Executivo não encara a imensidão de possibilidades que são a liberdade e a diversidade humana, sendo ela a única que pode realmente produzir o resultado econômico e cultural que faz qualquer governo dar certo, melhor o Congresso dar as cartas.

Querer prosperar economicamente sob um governo liberal e ao mesmo tempo ampliar o sectarismo sobre a sociedade é uma equação inexistente. A estagnação econômica permanecerá se não for enfrentada com a árdua missão de governar com autoridade, discernimento e sacrifício. Aqui é assim: a dificuldade no poder ampara o emocionalismo retrógrado do populismo brasileiro.

O coração do povo é mais vasto do que se supõe. Mira o futuro. Polêmicas políticas são piadas velhas. Provocam emoção num tipo de mercado paralelo onde opera uma cabeça de negócios superada.

Polêmicas morais, de querer costurar a letra escarlate em pessoas e instituições, nenhum governo transitório pode se pretender senhor assim. O erro nessa área será devastador se a razão que vê em tudo uma desordem inexistente preparar a justificativa para uma ordem indesejada. É risco na veia governar por antagonismos.

Muitos equívocos entre nós são fruto do esquecimento, que vem depressa. Sempre ficamos sabendo tarde demais que a oportunidade criada pela idiossincrasia das autoridades costuma ser cozida e comida para ser entregue em endereço certo. Assim, tudo pode começar a deturpar o comércio de bens democráticos e ampliar a fragilidade da vida política.

O Parlamento é a principal instituição do País. Existe uma afinidade vocacional e originária no bom parlamentar que é ser responsável sem precisar ser governista em tudo. Sua urgência é romper o despreocupado estado de espírito com os grandes desafios da hora e exercer o papel de organizar o debate nacional compondo interesses conflitantes e legítimos.

Em relação à ordem econômica, é mantra dizer que as economias bem-sucedidas se diferenciam pela duração dos períodos de crescimento. Já é consenso que a boa economia nem deve ser tratada como uma peça de moralidade, nem deve ser imoral.

O País está paralisado por uma espécie de “fada da confiança” vestida pela incerteza que é a natureza do estilo do presidente. E continua dividido entre os economistas sociais, certos de que é a desigualdade que está refreando a demanda, esmagando nossa recuperação e mantendo a crise permanente; e os economistas liberais, convencidos de que a ideia do crescimento é uma onda, traduzida na velha imagem de que é a maré alta que levanta todos os barcos.

Há expectativa e temor no Congresso de que a recuperação do País não seja compatível com o calor que emana do controle político desse presidencialismo de atritos. Só esfriando os ânimos se diminui o potencial da combustão que está no ar.

Outro desafio para a ação parlamentar é deter a tendência de mais um presidente querer inventar uma política externa. Fato que mais nos afasta da hipótese de termos algum papel na balança de poder mundial. Situação possível se o Senado não impedir que o Itamaraty continue a acumular desequilíbrios. É um erro político centrar o debate da ocupação do posto de Washington como problema familiar.

Não se trata de ofender o presidente, mas salvá-lo do risco de sonhar com grandezas que não nos dizem respeito, que é embarcar na encruzilhada em que Trump meteu os EUA com essa ideia de reconstruir o “Sistema de Yalta”, redividir o mundo em áreas de influência e apostar em conflitos regionais.

Se isso acontecer, o Brasil assumirá contornos que podem esfacelar nossa ordem continental, enfraquecer nossa força de poder brando em temas transnacionais, pôr em dúvida nossa legitimidade em operações de paz e quebrar nossa agricultura na OCDE ao ampliar a repercussão desse proselitismo ambiental equivocado. Um Brasil big stick e antieuropeu é um contrassenso cultural e um irrealismo político-militar inédito em 130 anos de História da República.

Só esfriando os ânimos se diminui o potencial da combustão que está no ar

O Senado e a diplomacia - Paulo Roberto de Almeida (versão original)

Eis abaixo a versão completa de meu artigo publicado de forma resumida na edição de ontem, 14/08/2019, no jornal O Estado de S.Paulo


O Senado e a diplomacia


Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, lotado na Divisão do Arquivo; professor no Uniceub, Brasília; organizador, com o embaixador Rubens Barbosa, do livro: Relações Brasil-Estados Unidos: assimetrias e convergências (São Paulo: Saraiva, 2012);
Publicado, em versão resumida, no jornal O Estado de S. Paulo (14/08/2019, p. A2; link: https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,o-senado-e-a-diplomacia,70002966504). Publicado em versão completa no site do Livres (link: https://www.eusoulivres.org/artigos/nepotismo-ameaca-credibilidade-da-diplomacia-brasileira/). Relação de Publicados n. 1319. 

Historicamente, durante décadas, chanceleres brasileiros foram selecionados dentre os parlamentares, na verdade por mais de um século, no Império e na maior parte da República. Eram recrutados mais na Assembleia Geral – a Câmara do Império – do que no Senado. Mas os senadores vitalícios prestavam relevantes serviços quando no Conselho de Estado, cuja área diplomática teve papel decisivo, ainda que meramente consultivo, no encaminhamento de processos decisórios que marcaram época nos anais de nossa diplomacia, com ênfase nos assuntos regionais – sobretudo no Prata – e nas relações com as grandes potências. Vale consultar os pareceres do Conselho, vários assinados por senadores, todos eles publicados.
Quando não eram parlamentares eram grandes tribunos, juristas, ou jornalistas e professores. O Visconde do Rio Branco combinava todas essas qualidades: chefe de governo, várias vezes ministro, instituiu o cargo de consultor jurídico na antiga Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, iniciativa retomada por seu filho no Ministério das Relações Exteriores da República. O Parlamento preservava inteira autonomia e controlava de perto os atos do ministro, como na recusa do acordo que o primeiro chanceler republicano, Quintino Bocaiúva, fez com a Argentina, pelo qual ela abocanharia boa parte do atual território de Santa Catarina. Ruy Barbosa, antigo membro do Conselho de Estado, primeiro ministro da Fazenda da República, senador, não foi chanceler, mas desempenhou funções diplomáticas, a mais famosa delas como delegado na segunda Conferência da Paz da Haia, em 1907.
O sucessor do Barão do Rio Branco, Lauro Muller, era parlamentar, assim como Nilo Peçanha e também Epitácio Pessoa, senador, designado chefe da delegação às negociações de paz de 1919, aliás, eleito presidente mesmo estando em Paris. Oswaldo Aranha (embaixador em Washington antes), Afonso Arinos de Mello Franco, San Tiago Dantas, foram brilhantes parlamentares que serviram como chanceleres, assim como, mais recentemente, os senadores Fernando Henrique Cardoso, José Serra e Aloysio Nunes.
Chefes de missões diplomáticas, embora mais raramente, podiam ser designados dentre notáveis nomes da política ou da magistratura. No Império e na República velha, os diplomatas no exterior formavam uma carreira distinta da dos funcionários da Secretaria de Estado, e ambas da dos cônsules, que eram considerados simples negociantes de “secos e molhados”. As carreiras foram unificadas nos anos 1930; desde então, missões permanentes no exterior foram tradicionalmente ocupadas por funcionários de carreira. Ainda assim, tivemos um “barão” da imprensa – Assis Chateaubriand, em Londres –, e um banqueiro, Walter Moreira Salles, duas vezes embaixador em Washington. Mas sempre sob o rigoroso escrutínio da Comissão de Relações Exteriores do Senado Federal. Esta chegou a recusar uma ou outra designação – sequer chamou para sabatina um preferido do general Ernesto Geisel – e, mais recentemente, recusou aprovação a um outro nome, justamente por considerar que havia abuso de parentesco (era irmão do ministro da vez, diplomata).
A tendência de se designar diplomatas de carreira como chanceleres – limitada nos regimes anteriores – se ampliou durante o período militar, com uma sobrevida temporária durante os governos do PT. No período de transição voltaram os senadores, e outros haveria para o exercício do cargo, mas o governo Bolsonaro preferiu um diplomata de carreira, aliás, um que jamais foi embaixador – ou seja, chefe de missão permanente – ou que tenha exercido relevantes serviços na diplomacia. Agora, cogita nomear alguém totalmente sem experiência nas lides internacionais como representante diplomático junto à mais importante embaixada do Brasil no exterior. A Comissão de Relações Exteriores jamais se defrontou com um caso desse tipo, tanto mais inédito por se tratar de nepotismo explícito, ou de claro “filhotismo”.
Não existem precedentes na carreira, ou fora dela, embora filhos de presidentes ou de ministros tenham exercido chefias de postos. Um – Rodrigues Alves Filho –, foi admitido depois da morte do pai; outro – Afonso Arinos, filho –, sem conexão com as funções eletivas do pai e a despeito delas: como é a norma desde 1946, ele e todos os outros têm de passar no concurso do Instituto Rio Branco. Alguns, educados no exterior, nunca lograram êxito nos exames, notoriamente difíceis, talvez por deficiências no Português. Seria de se presumir que o atual indicado seja um exímio conhecedor das relações internacionais, tenha domínio perfeito do inglês e de várias outras matérias, além de uma boa familiaridade com a agenda diplomática brasileira e mundial, que é o que se exige nos concursos de admissão. Ele já tentou alguma vez?
Não considerando o aspecto moral da indicação – segundo a senadora Simone Tebet um “erro estratégico” do presidente –, resta a questão, a ser cuidadosamente examinada pelos senadores, da capacidade do indicado para tal função. Cabe registrar seu notório apreço pelo atual presidente americano – visível em visitas com o boné da reeleição –, o que já seria um impedimento substantivo a um seguimento isento, independente, das políticas daquele país. Não se trata apenas da hipótese de um opositor ser eleito em novembro de 2020, mas do diálogo que se deve manter com amplos setores da sociedade americana, cuja maioria urbana e mais educada esmagou, com milhões de votos, o vencedor no colégio eleitoral.
Que tipo de informação objetiva – que é o mínimo que se espera de um embaixador – poderá oferecer à chancelaria brasileira, contendo uma análise equilibrada das políticas de um governo com o qual está empaticamente identificado? Como seria ele visto na Câmara, atualmente dominada por uma maioria de oposição ao presidente? Como vai ser com os diplomatas profissionais, dotados de maior experiência em assuntos internacionais do que ele mesmo? E o que farão os ministros, conselheiros, secretários mais antigos, ao se defrontar com um chefe de posto notoriamente despreparado para tratar dos mais diversos assuntos da agenda bilateral, hemisférica e internacional, financeira, política e cultural, como é o caso dessa embaixada que vale quase por uma chancelaria inteira?
A CREDN-SF tem um imenso desafio pela frente, uma vez que o que está em causa é a própria credibilidade da diplomacia brasileira junto ao país com o qual já tínhamos relações ainda antes da independência, e laços formais desde 1824. O primeiro embaixador do Brasil, designado por Rio Branco em 1905, se chamava Joaquim Nabuco, elevado a essa categoria sem precedentes na diplomacia brasileira justamente para servir em Washington.

Brasília, 3/08/2019; publicado, em versão resumida, no jornal O Estado de S. Paulo (14/08/2019, p. A2; link: https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,o-senado-e-a-diplomacia,70002966504). Publicado em versão completa no site do Livres (link: https://www.eusoulivres.org/artigos/nepotismo-ameaca-credibilidade-da-diplomacia-brasileira/). Relação de Publicados n. 1319.