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sexta-feira, 3 de abril de 2020

Os veteranos encostados no Itamaraty - Denise Chrispim Marin (Veja, 20/09/2019)

Para quem não tinha lido a matéria de setembro de 2019, eu a reproduzo novamente aqui: 

Os veteranos encostados no Itamaraty

Ernesto Araújo preencheu os principais postos do Itamaraty com diplomatas menos experientes — e deixou sem função definida gente com longa quilometragem

Por Denise Chrispim Marin - Atualizado em 20 set 2019, 09h55 - Publicado em 20 set 2019, 06h30 
PUNIDO - Almeida, que publicou críticas ao chanceler em seu blog: mesa na biblioteca para escapar da sala no porão Daniel Marenco/Agência O Globo

Fazer carreira na diplomacia sempre foi uma empreitada escorregadia, sujeita aos humores do governo e do chanceler de plantão. Um passo na direção errada, ou uma troca de função em momento impróprio, pode render anos no limbo, até os ventos políticos mudarem. Durante décadas o Itamaratyacomodou esses diplomatas “excedentes” no temido DEC — sigla do informal, mas muito movimentado, “departamento de escadas e corredores”. Uma vez exilado lá, o funcionário não tinha sala, nem mesa, nem cadeira e vagava como assombração pelo Palácio dos Arcos, em Brasília, à procura de um colega capaz de abrigá-lo em algum gabinete. O DEC foi extinto quando o Tribunal de Contas da União deu um pito no Ministério das Relações Exteriores por manter funcionários sem cargo e ganhando salário, mas o conceito permanece vivíssimo. Neste governo de política externa heterodoxa e indiferença à hierarquia diplomática, o chanceler Ernesto Araújo já encaixou vários desafetos em áreas pouco nobres do palácio e reservou a sala 203 do Anexo 1 — prontamente batizada de “Parque dos Dinossauros” — para que veteranos sem cargo fixo aguardem a convocação para uma ou outra tarefa eventual (com direito a água e cafezinho).

No total, existem no momento dezesseis diplomatas no ostracismo, e a maioria não sabe direito como foi parar nessa situação e se ainda tem alguma chance de obter um posto de verdade no ministério. O custo desse desperdício de experiência é de cerca de 4,5 milhões de reais por ano.

Há os que sabem, sim, precisamente o motivo da punição. Com passagens pelo DEC original nos anos 2000, durante as gestões de Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães, por causa das frequentes críticas aos governos do PT, o “contrarianista” Paulo Roberto de Almeida chegou a ser reabilitado no governo Michel Temer, quando foi promovido a embaixador — por sinal, na mesma turma de Araújo, dezessete anos mais novo. Mas viu-se deslocado neste ano para a Divisão de Arquivo, no 2º subsolo do Anexo 2 do Itamaraty, o “Bolo de Noiva”, onde celular e wi-fi não funcionam. Almeida, 42 anos de carreira diplomática, dezesseis livros publicados e doutor em ciências sociais pela Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica, responde hoje a um primeiro-secretário — a terceira das seis “patentes” da afunilada hierarquia do Itamaraty.

IDEOLÓGICO - Araújo: quebra da hierarquia na distribuição dos melhores cargos Evan Vucci/AP

Para driblar o vazio tecnológico, o embaixador apossou-se de uma mesa da biblioteca do ministério, onde escreveu Miséria da Diplomacia, obra que trata da ausência de política externa na gestão de Araújo, por ele chamado de “chanceler acidental” e “diplomata utópico”. Almeida foi demitido da diretoria do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri) na Segunda-Feira de Carnaval, sete horas depois de ter republicado em seu blog, o Diplomatizzando, artigos do embaixador aposentado Rubens Ricupero e do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso criticando Araújo e do próprio chanceler desancando os outros dois. “Antes, eu já tinha publicado a nota ‘Olavices debiloides’, com declarações de Olavo de Carvalho, a quem Ernesto Araújo chama de professor”, confessa. O sogro de Araújo, o ex-secretário-geral das Relações Exteriores Luiz Felipe de Seixas Corrêa, ainda tentou interceder em favor do diretor do Ipri, que o convidara para uma palestra na semana seguinte. Não adiantou. Almeida observa quão “tóxico” se tornou quando atravessa o corredor entre os Anexos 1 e 2 do Itamaraty para visitar os “dinossauros” e, nos corredores, recebe no máximo alguns sorrisos disfarçados dos conhecidos. “Queria muito voltar para o Ipri, mas com total liberdade. Como vou me aposentar em 2022, creio que meu futuro é mesmo no porão do Itamaraty”, suspira.

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Ao contrário do calejado Almeida, outros diplomatas na geladeira da atual gestão jamais haviam passado por tal situação. Dois deles foram chamados de Bruxelas e de Viena no fim de 2018 para assumir subsecretarias do Itamaraty e, no dia da posse de Jair Bolsonaro, se viram sem cargo em Brasília nem indicação para outras posições no exterior. Nesse caso, foram vítimas da decisão de Araújo de mudar o organograma da casa e reservar os principais postos a embaixadores tão novatos quanto ele. “A hierarquia, que era a coluna vertebral do Itamaraty, virou uma salada. O chanceler quer trabalhar só com quem diga amém a suas ideias e decisões”, afirma um diplomata congelado.

ALIADO - Serra, embaixador em Paris: defesa do governo na crise da Amazônia Marcos Oliveira/Ag. Senado

Enquanto os bons cargos no ministério são ocupados pela ala júnior, os embaixadores seniores lutam pela sobrevivência. Antes mesmo da posse de Bolsonaro, alguns mais espertos, antecipando a transformação do Itamaraty em um dos ministérios ideológicos do novo governo, trataram de buscar postos em embaixadas menos relevantes e em consulados, evitando assim ter de defender causas que consideram constrangedoras. Três diplomatas veteranos conquistaram cargos em outras áreas do governo — na Presidência, na Vice-Presidência e no Gabinete de Segurança Institucional —, conseguindo ao mesmo tempo livrar-­se dos ditames do ministério e adicionar 5 000 reais ao salário.

Há veteranos, porém, alinhados com o bolsonarismo desde a campanha eleitoral. O embaixador em Paris, Luís Fernando Serra, que chegou a ser cogitado para o cargo de chanceler, pôs mais lenha na fervura dos incêndios na Amazônia ao defender veementemente o governo em entrevistas à imprensa francesa. No último grupo militam os vira-casacas, que fizeram carreira nos governos petistas e hoje são só elogios à diplomacia da era Araújo. A embaixadora Maria Nazareth Farani Azevêdo, ex-­chefe de gabinete de Amorim, que criou para ela a missão brasileira na ONU em Genebra, tanto se empenha agora em combater a diversidade de gênero que protagonizou um memorável bate-boca com o ex-deputado Jean Wyllys na Suíça. Fasci­nado pelo chavismo na década passada, Antônio Simões, embaixador do Brasil em Montevidéu, pediu recentemente à organização de um festival de cinema na cidade que vetasse a exibição do documentário Chico — Artista Brasileiro, sobre o compositor Chico Buarque de Hollanda.

Os diplomatas exilados por Araújo, seja em ambientes pouco salutares do ministério, seja no Parque dos Dinossauros, recebem 23 000 reais brutos para trabalhar muito pouco e reclamam da subutilização de seus talentos — encontram-se nessa ingrata condição especialistas em meio ambiente, desarmamento, relações com a União Europeia, negociações políticas, assuntos de Oriente Médio e África, entre outros. “Agora, fazemos bico”, queixa-se um congelado. O embaixador Flávio Macieira, 67 anos, 42 de carreira, desembarcou em Brasília no fim de 2018, vindo do Panamá, a economia que mais cresce na América Latina, depois de cumprir dez anos no exterior. Não tinha cargo reservado e caiu no Parque dos Dinossauros, mas não perdeu a esperança de ainda fazer algo útil antes da aposentadoria compulsória, aos 75 anos. “Creio que, com o tempo, todo esse grupo experiente vai acabar sendo aproveitado”, diz, otimista. O Palácio do Itamaraty, hoje sede do Escritório de Representação no Rio de Janeiro (Ererio), abriga cinco veteranos sem funções. Na representação de São Paulo (Eresp), três embaixadores estão na mesma condição.

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Para o Ministério das Relações Exte­riores, o gelo de diplomatas não passa de “rodízio e renovação de chefias”. “Como ocorre em todas as instituições, públicas e privadas, há profissionais que podem não estar inteiramente satisfeitos com as posições que ocupam ou que considerem não ter sido atendidas suas expectativas”, declarou o ministério em nota a VEJA. O embaixador Mário Vilalva, demitido da Agência de Promoção de Expor­tações e Investimento (Apex) em abril passado, depois de ter denunciado um “golpe” de Araújo para mudar o estatuto do órgão, é dos poucos insatisfeitos que resolveram quebrar o gelo: está fechando contrato com uma empresa privada e vai abandonar a diplomacia. Dinossauro, nem pensar.

Publicado em VEJA de 25 de setembro de 2019, edição nº 2653

Embaixador vai à Justiça contra assédio moral e perseguição no Itamaraty - Edoardo Ghirotto (Veja, 3/04/2020)

Embaixador vai à Justiça contra assédio moral e perseguição no Itamaraty

Paulo Roberto de Almeida alega ser alvo de "retaliação financeira" por criticar a forma como Ernesto Araújo tem guiado a política externa brasileira

Por Edoardo Ghirotto - 3 abr 2020, 15h00

O embaixador Paulo Roberto de Almeida ingressou nesta semana com uma ação na Justiça Federal do Distrito Federal para responsabilizar a União por ações de assédio moral e de perseguição no Ministério das Relações Exteriores. Almeida afirma que tem sofrido “retaliações financeiras” desde que começou a criticar publicamente o trabalho do chanceler Ernesto Araújo.

Com 42 anos de carreira, o diplomata foi demitido em março de 2019 do cargo de diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI) e acabou alocado na Divisão de Comunicações e Arquivo, onde são exercidas funções de caráter burocrático. Na ação judicial, Almeida afirma que está há quase um ano sem receber nenhuma incumbência.

Em setembro de 2019, VEJA contou a história de Paulo Roberto de Almeida e de outros colegas de vasta carreira no Itamaraty que estavam no ostracismo por serem considerados desafetos de Ernesto Araújo. Há ao menos dezesseis diplomatas nessa situação. O custo desse desperdício de experiência é de cerca de 4,5 milhões de reais por ano.

Almeida decidiu entrar na Justiça após o Itamaraty lhe imputar “dez faltas injustificadas” em março, o que reduziria o pagamento a que tem direito. Situação semelhante já havia ocorrido no início do ano, quando o embaixador recebeu apenas 210 reais de salário no mês de janeiro. O desconto de 99% da remuneração se deu sob a alegação de que ele teria de indenizar o Itamaraty por outras 20 faltas injustificadas entre maio e agosto de 2019.

O diplomata alega que não foi informado de que faltas estavam sendo computadas e que apresentou os motivos para as ausências nas datas marcadas, que incluíam dois finais de semana. Entre as razões estavam participações em bancas de mestrado e doutorado, programas de pós-graduação e eventos políticos e diplomáticos, incluindo um cerimonial do Comando Militar em que o próprio Ernesto Araújo estava presente. O Itamaraty, no entanto, indeferiu todas as justificativas.

Ao ingressar com a ação de tutela de urgência, a fim de impedir novos descontos sumários em sua folha salarial, Almeida pede para que a Justiça obrigue o Itamaraty a apresentar documentos relacionados à lotação, ao controle de frequência e ao abono de faltas e atrasos de outros embaixadores. “Com efeito, a ré poderá provar que a situação do autor não é isolada e que o tratamento que ele recebe é o mesmo dos seus colegas”, diz a defesa do diplomata.

Almeida também solicita “a anulação das faltas indevidamente imputadas” e, quando for o caso, “o ressarcimento dos respectivos descontos”. Cobra ainda que seja anulada a sua lotação na Divisão de Comunicações e Arquivo e que o Itamaraty o transfira para um posto de acordo com seu grau hierárquico. Segundo ele, a falta atribuições e a função incompatível caracterizam ato de improbidade administrativa e de desperdício de recursos públicos.

Por fim, Almeida exige que a União arque com o pagamento de uma multa de 50 mil reais por danos morais. “Essas humilhações impostas ao autor, de forma discriminatória, servem, ainda, à intimidação de colegas de carreira que possuam reservas quanto à adequação da atual política externa aos padrões profissionais da diplomacia brasileira”, diz a defesa do embaixador.

O Itamaraty foi procurado para se manifestar a respeito da ação, mas não se posicionou até a publicação desta reportagem.

Kafka no Itamaraty - Paulo Roberto de Almeida

Kafka no Itamaraty

 

Paulo Roberto de Almeida

  

Na madrugada da segunda-feira de Carnaval de 2019, depois de ler a imprensa do domingo recém findo, de ter selecionado dois artigos que reputei relevantes para a política externa – meu terreno de atuação nas últimas quatro décadas –, um do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, outro do ex-ministro Rubens Ricupero, e de ter a eles agregado um artigo-resposta do atual chanceler, fui dormir, após ter postado os três textos no blog Diplomatizzando, convidando a um debate sobre a diplomacia do governo Bolsonaro. Fui acordado poucas horas depois pelo chefe de gabinete do chanceler, que comunicou minha exoneração, “com efeito imediato”, do cargo de diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do Itamaraty, que exercia desde agosto de 2016, por acaso depois de uma longa travessia do deserto durante todos os governos lulopetistas, quando não tive nenhum cargo na Secretaria de Estado das Relações Exteriores, tendo sido relegado ao que os colegas diplomatas chamam desdenhosamente de DEC, Departamento de Escadas e Corredores.

Encarei com certo estoicismo o lazer forçado, passando a maior parte do tempo na Biblioteca do Itamaraty, transformada em meu escritório quase permanente, onde aliás redigi livros sobre a política externa, entre eles Nunca Antes na Diplomacia (2014). Resignei-me a um novo limbo naquele ambiente de saber, e lá fiquei durante dois meses, quando também aproveitei para escrever e publicar um novo livro, que aliás não tinha nada a ver com o governo em curso: Contra a corrente: Ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do Brasil (2014-2018). Em maio, fui comunicado que estava sendo lotado na Divisão do Arquivo, passando a estar sob a chefia de um Primeiro Secretário, mas que eu não deveria me preocupar com isso, pois tudo era apenas “formalmente”.

A despeito de ter consultado a própria alta chefia da Administração sobre as minhas novas atribuições, numa me foram atribuídos quaisquer encargos ou tarefas naquela unidade, de onde deduzi que eu estava, uma vez mais, relegado a um novo limbo na carreira. Dei continuidade, pois, às minhas atividades de estudos e pesquisas, e aproveitei para escrever um novo livro, desta vez sobre a política externa do atual governo, livremente disponível em meu blog: Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty. Imagino que o mesmo deva ter causado certa comoção no Gabinete do chanceler, mas só fui descobrir como meses depois, no final de novembro, por meio de uma transparente publicação no Boletim de Serviço do Itamaraty, lido por todos os funcionários do Serviço Exterior, em todo o nosso planetinha redondo, segundo a qual eu teria incorrido em “vinte faltas injustificadas” entre maio (quando de minha lotação nos Arquivos) e agosto. Procedi à imediata justificação de todas aquelas faltas, sendo que duas eram de um sábado e domingo, uma terceira de um evento oficial no Comando Militar do Planalto, onde compareci a convite do Ministério da Defesa, no qual se encontrava o próprio chanceler (que deve ter ficado muito irritado ao me ver na sala VIP, conversando com generais, almirantes e brigadeiros; sou professor eventual nos cursos da ESG); as demais faltas correspondia todas a eventos acadêmicos: bancas de mestrado e doutorado no Uniceub, onde sou professor, e cursos ou seminários a convite de outras instituições acadêmicas.

Minhas justificativas foram “indeferidas” em menos de três dias, e no dia 1/01/2020 fui contemplado com seu reflexo no meu contracheque: exatos R$ 210,16, ou seja, menos de um quinto de um salário mínimo. Conclui que o chanceler estava mesmo com muita raiva de mim, a ponto de me deixar sem um mínimo recurso alimentar naquele mês. Os descontos se referiam apenas a três distantes meses de 2019, assim que fui novamente contemplado em 13 de março com nova publicação acintosa no Boletim de Serviço, registrando “dez faltas injustificadas” entre setembro e outubro, o que deve prenunciar novas publicações do mesmo teor nos próximos meses. Mais uma vez justifiquei cada uma delas, fornecendo inclusive as provas de cursos e seminários, ademais de uma atividade da cadeira Jean Monnet, a convite da própria Delegação da EU no Brasil (tudo documentado no blog Diplomatizzando: link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/04/uma-trajetoria-diplomatica-do-limbo-ao.html). Um processo kafkiano tinha começado contra mim, orientado pela alta cúpula.

Uma observação quanto à meticulosidade burocrática desse sistema de registro de faltas: ela é seletiva, ou propriamente míope. Nenhum dos vários outros embaixadores colocados em disponibilidade pelo esforço de “saneamento etário” empreendido pelo chanceler Ernesto Araújo foi jamais contemplado com tal distinção honorífica de ter o seu nome publicado no Boletim de Serviço como sendo um reles funcionário “relapso”, passível, portanto, de sofrer todo o furor da Lei. Antigamente, nos tempos em que os animais falavam, como gosta de lembrar o ex-chanceler Celso Lafer, os intelectuais que se exerciam nas lides intelectuais eram até admirados e encorajados pelo Itamaraty, como registrado na belíssima obra que ele publicou em 2001, sob a direção do acadêmico diplomata Alberto da Costa e Silva: O Itamaraty na Cultura Brasileira, uma coleção de ensaios cobrindo a vida e a obra de algumas dezenas de representantes das letras e das humanidades que eram ou se tornaram diplomatas, desde o século XIX até o grande intelectual José Guilherme Merquior. 

O embaixador Rubens Ricupero, por sua vez, a quem comuniquei a nova postura do Itamaraty, transformado em bedel severo de diplomatas pertencentes a certas “tribos”, escreveu-me o seguinte: “estou de fato convencido de que uma administração que se recusa a empregar o funcionário em trabalho útil implicitamente reconhece que abriu mão dos serviços que ele poderia prestar. Em tais condições, não parece admissível que essa administração exija presença física como se se tratasse do cumprimento de pena de reclusão em regime fechado. E veja, hoje em dia em direito penitenciário, se considera que a administração penal tem o dever de oferecer trabalho até aos condenados! Desejo a Você muita sorte nesta luta pelo Itamaraty e em defesa de sua própria dignidade.”

A julgar pela imagem atual da diplomacia brasileira no exterior, as piores faltas do Itamaraty não são exatamente as do seu corpo profissional.


Paulo Roberto de Almeida, é embaixador e professor no Uniceub

 

[Brasília, 2 de abril de 2020]

 

quinta-feira, 2 de abril de 2020

O isolamento internacional do Brasil - Mariana Sanches (BBC Brasil)

Ao deixar de recomendar quarentena, Bolsonaro se isola de líderes globais

Retrato de Jair BolsonaroDireito de imagemAFP
Image captionA revista americana The Atlantic afirmou que Bolsonaro 'é o líder negacionista do coronavírus'

Apesar de pela primeira vez reconhecer a gravidade da pandemia de coronavírus no mundo, em seu último pronunciamento à nação, na noite desta terça-feira (31), o presidente brasileiro Jair Bolsonaro seguiu sendo o único líder de grandes economias a não recomendar à sua população que fique em casa para evitar que a doença se espalhe pelo país.

Ao recusar as recomendações sanitárias adotadas mesmo por governantes que antes as rejeitavam, como o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, e os presidentes americano, Donald Trump, e mexicano, Andrés Manuel Lopez Obrador, ele chegou ao ápice do seu isolamento internacional.

"Jamais, numa história de quase 200 anos, o Brasil e sua diplomacia tinham assistido a tal grau de isolamento internacional, jogando as elites dirigentes num descrédito nunca antes igualado, mesmo nas piores crises econômicas ou nas graves violações de direitos humanos. Não creio que existam precedentes para a atual situação", afirmou o embaixador Paulo Roberto de Almeida, atualmente lotado na divisão de comunicação e arquivo do Itamaraty e professor do Uniceub.

Nos últimos dias, a imprensa internacional tem criticado duramente a postura de Bolsonaro. "O presidente coloca os brasileiros em risco", afirmou o jornal britânico The Guardian em editorial na terça (31). A revista americana The Atlantic afirmou que Bolsonaro "é o líder negacionista do coronavírus". A britânica The Economist o chamou de "Bolsonero", em referência ao imperador romano Nero que teria mandado incendiar a capital de seu império, Roma.

"Há muita concorrência, mas o líder mundial mais ineficaz em responder ao coronavírus agora é o presidente Bolsonaro. Prejudicará seriamente seu mandato", afirmou o analista político, Ian Bremmer, fundador da consultoria Eurasia, uma das mais importantes e prestigiadas no mercado. Bremmer tem dito a seus clientes — algumas das mais poderosas empresas do mundo — que o comportamento de Bolsonaro diante da epidemia pode lhe render um impeachment.

"Bolsonaro é hoje o único líder que ignora completamente a recomendação científica e tem sido tratado como um pária por causa disso", afirma o professor de política internacional da Fundação Getúlio Vargas, Guilherme Casarões.

O percurso do isolamento global

Tanto Casarões quanto Almeida concordam que a atual posição insular do Brasil é o aprofundamento de um processo que tem se desenrolado nos últimos 16 meses, quando Bolsonaro assumiu o cargo e passou a adotar uma série de guinadas nas condutas do país em fóruns internacionais.

O Brasil passou a se alinhar a um grupo minoritário de países, liderados por Estados Unidos e Israel. Se manifestou pela primeira vez a favor do embargo econômico americano contra Cuba, prometeu levar sua embaixada em Israel para Jerusalém, o que fere as relações com países árabes, e abandonou a neutralidade diante do conflito entre Irã e EUA.

Donald Trump em pronunciamentoDireito de imagemREUTERS
Image captionDonald Trump mudou de tom e postura diante da pandemia e seu avanço nos EUA

Tais mudanças foram gradativamente minando a postura brasileira como um possível negociador ponderado no ambiente internacional. "O pico anterior nessa espiral de descrédito global que vivemos foi a crise das queimadas na Amazônia", afirma Casarões.

Diante de um aumento significativo do desmatamento na floresta tropical, em agosto do ano passado, Bolsonaro culpou indígenas e ONGs pelos incêndios que devastavam a área. Seu ministro de relações internacionais, Ernesto Araújo, passou a fazer discursos relativizando a importância da ação humana sobre o aquecimento global e dizendo que os europeus deveriam reflorestar seus territórios em vez de falar sobre a Amazônia.

O presidente francês, Emmanuel Macron, afirmou que Bolsonaro "não estava a altura de seu cargo". A Alemanha e a Noruega cortaram o fundo de proteção bilionário que destinavam à conservação do bioma.

Naquele momento, no entanto, o Brasil pôde contar com a intercessão dos Estados Unidos para baixar o tom crítico ao país entre os mandatários do G-7 e impedir que a tensão derivasse para sanções à produção brasileira.

O mesmo não deve acontecer agora. Na noite de terça, enquanto Bolsonaro se esquivava de recomendar quarentena aos brasileiros, Trump afirmava que mesmo com as medidas de distanciamento social aplicadas, os EUA devem perder entre 100 mil e 240 mil cidadãos para epidemia.

O presidente americano tem evitado criticar publicamente o colega brasileiro, com quem tem boa relação, mas afirmou que estuda o banimento total de voos do Brasil aos Estados Unidos.

Na quarta-feira (1), os dois líderes se falaram pelo telefone para reafirmar a solidariedade entre os povos e comentar a situação diante da pandemia.

Segundo Ernesto Araújo, os modelos de isolamento para conter o espalhamento do vírus não foram tema da conversa. Em coletiva na Casa Branca, Trump foi questionado mais uma vez sobre a postura de Bolsonaro. Repetiu que ele tem feito "um grande trabalho" e afirmou: " Ele (Bolsonaro) tem um problema com o vírus. Ele tem um grande problema. Nós conversamos sobre isso hoje. Eles não iam parar, mas precisaram parar. Então, o Brasil está paralisado. O mundo está paralisado".

Por um curto período, na semana passada, tanto Trump quanto Bolsonaro pareciam inclinados a adotar a solução conhecida como isolamento vertical: restringir a circulação apenas de pessoas dos grupos de risco para covid-19 e manter a economia funcionando normalmente.

Trump, que concorrerá à reeleição em novembro, afirmou que o país voltaria ao normal na Páscoa. Tudo mudou antes do fim de semana, quando os médicos que o assessoram mostraram a ele que a curva de mortalidade nos Estados Unidos ficava mais íngrime a cada dia. No fim de semana, um navio hospital da Marinha americana atracou em Nova York para ajudar no atendimento a vítimas de covid-19.

Nem mesmo o ex-assessor de Trump, Steve Bannon, guru dos Bolsonaro e da extrema direita pelo mundo, é a favor da estratégia defendida pelo brasileiro.

Para o embaixador Almeida, "Bolsonaro se coloca voluntariamente na contramão de tendências globais, inclusive demonstradas agora no caso de Trump, a quem considera seu principal aliado externo, e se refugia num pequeno círculo de ideólogos supostamente antiglobalistas que só conseguem expressar preconceitos e ignorância, recusando os dados básicos da ciência e da pesquisa".

O governo não pode fazer tudo

Almeida se refere à influência sobre as decisões do governo do escritor Olavo de Carvalho, radicado nos Estados Unidos, que já negou a existência da epidemia de coronavírus e gosta de repetir que a causa do problema é "um vírus chinês".

Em meio à crise de saúde pública, o filho de Bolsonaro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, ex-aluno de Olavo de Carvalho, abriu uma crise diplomática com os chineses ao acusar o país, via Twitter, de espalhar a doença globalmente.

"Mais uma vez uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor, tendo desgaste, mas que salvaria inúmeras vidas. A culpa é da China e liberdade seria a solução", escreveu Eduardo. O embaixador da China no Brasil Yan Wanming exigiu um pedido de desculpas e disse que o povo chinês foi insultado.

Jair Bolsonaro ao lado do ministro Paulo GuedesDireito de imagemREUTERS
Image captionNem mesmo o ex-assessor de Trump, Steve Bannon, guru dos Bolsonaro, é a favor da estratégia defendida pelo presidente brasileiro

Carvalho é também uma das referências políticas e teóricas das diretrizes adotadas pelo chanceler Ernesto Araújo.

"Bolsonaro tem deixado de ouvir o (ministro da saúde Luiz Henrique) Mandetta e se aconselhado mais de perto com Ernesto Araújo. Araújo vem ajudando Bolsonaro a criar uma narrativa de que não existe nada de diferente no que essa gestão faz em relação ao resto do mundo. Para o público internacional, é evidente que não cola. Mas para os eleitores brasileiros pode funcionar", diz Casarões.

Parte dessa estratégia teria sido colocada em prática na manhã de terça, quando Bolsonaro sugeriu que a própria OMS estaria voltando atrás em sua orientação de quarentenal total diante das perdas econômicas aos mais pobres.

O argumento é falso. As orientações do órgão são para que o distanciamento social seja mantido e para que os governos minimizem, por meio de ajudas emergenciais, os efeitos negativos sobre a população de baixa renda. O Congresso Nacional aprovou na última segunda-feira a renda emergencial de R$ 600 por mês a brasileiros em condições de vulnerabilidade.

O Ministério da Cidadania afirmou, em um primeiro momento, que a verba só seria disponibilizada aos necessitados depois de meados de abril. A morosidade tem gerado crítica de falta de vontade política do presidente para viabilizar o auxílio e, em consequência, a quarentena. "Não é esperar que o governo faça alguma coisa. O governo está fazendo, mas não pode fazer tudo que acham que o Estado tem que fazer". afirmou o presidente, no dia 26.

Em coletiva de imprensa na quarta, Araújo respondeu indiretamente às críticas de isolamento do país no cenário internacional e disse que as discussões no G-20 "estão muito em linha com o que pensa o presidente Bolsonaro" e que o grupo se tornou um meio de trabalho em conjunto entre as nações.

Via Twitter, o chanceler disse ainda, no dia 27, que nem todos os países do G-20 tem mantido compulsoriamente suas populações em confinamento, embora não mencione a recomendação geral entre esses governantes de que sua população fique em casa. "A informação pura e simples é de que 6 países do G20 aplicam quarentena mandatória em todo o seu território, enquanto 2 a aplicam em alguns Estados federados e outro já a aplicou também em parte do território, mas não aplica mais".

Araújo concluiu: "Essa informação parece incomodar aqueles que insistem em construir uma certa narrativa — uma ideologia — acima tanto da saúde das pessoas quanto da sua subsistência." A BBC News Brasil pediu uma entrevista com o ministro Araújo, mas o Itamaraty informou que a agenda do chanceler estava cheia.

A recente moderação do discurso de Bolsonaro não significa, dizem os especialistas, que ele irá mudar sua orientação sobre o combate ao coronavírus no curto prazo. Mas a pressão sobre ele, não só doméstica, mas internacional, deve aumentar.

"O risco dessa vez", diz Casarões, "é que negar a questão é muito mais complicado do que negar o aquecimento global, que vai levar gerações para mostrar seus estragos, ou mesmo negar o desmatamento, que é pouco visível para as pessoas. Em semanas, Bolsonaro vai ter que manter suas palavras sobre uma pilha de corpos. Pode ser que aí ele esteja disposto a recuar."