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domingo, 14 de abril de 2024

Tudo o que o Itamaraty não desejava: a paralisação da agenda multilateral - Paulo Roberto de Almeida

Tudo o que o Itamaraty não desejava: a paralisação da agenda multilateral 

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Nota sobre o estado fragmentado do sistema internacional e sobre a capacidade limitada da diplomacia brasileira de imprimir sua marca nas agendas multilateral, regional e bilateral.

  

Uma das consequências indesejáveis para o Brasil do recrudescimento dos conflitos externos — Rússia-Ucrânia, Hamas-Israel, Venezuela-Guiana, e agora Irã-Israel — é a completa paralisação das agendas de debates nas instâncias multilaterais (Bretton Woods, OMC, ONU), nas regionais (coordenação na América Latina e integração no Cone Sul) e até bilaterais (Brasil-Argentina, por exemplo).

Esse capítulo, o multilateral, da política externa brasileira e da sua diplomacia, tem sido prejudicado desde antes da inauguração do governo Lula 3, tanto pela deterioração das relações interimperiais, digamos assim, como pelo distanciamento de posições entre o chamado Ocidente e os seus grandes contestadores (basicamente Rússia e China, mas também Irã e alguns outros), o que repercute igualmente numa ampla série de temas que têm a ver tanto com o terreno clássico da paz e da segurança internacionais, quanto na área do desenvolvimento e do meio ambiente. O diálogo entre esses “parceiros” tem sido afetado pelas grandes discordâncias básicas sobre como deve ser organizada a própria agenda internacional, o que afeta, por exemplo não só o G7 como o próprio G20.

Pensemos, por exemplo, nas três grandes prioridades do Brasil para as reuniões setoriais e a de cúpula do G20 no Brasil: crescimento dos países em desenvolvimento, combate à fome e às desigualdades sociais e regionais; desenvolvimento sustentável e limitação do aquecimento global, o que atinge a todos; e, finalmente e mais importante, a reforma das instituições internacionais de governança. Tudo isso, mas especialmente este terceiro domínio, terá imensas dificuldades para recolher um consenso mínimo em torno de propostas concretas. O Brasil poderá sempre argumentar que a responsabilidade pelos atrasos, impasses e até fracassos de quaisquer avanços decorre da situação de desentendimentos entre os grandes atores e seus prepostos regionais.

Mais difícil é a situação no plano multilateral regional, no qual a inabilidade e os improvisos da diplomacia presidencial personalista de Lula respondem pelos impasses e até pelos desentendimentos entre “parceiros” sul- e latino-americanos nos encontros promovidos no Brasil. Tanto a cúpula de chefes de Estado e de governo dos países sul-americanos, presidida por ele, em Brasília em maio de 2023, quanto a dos dirigentes do Pacto Amazônico e da OTCA, em agosto seguinte, fugiram completamente ao resultado esperado pela diplomacia brasileira (que no caso pode ter sido atropelada pelo personalismo do chefe). A primeira reunião começou dando errado quando Lula recebeu, um dia antes, com honras de visita de Estado, o ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, e o incensou com panegíricos como se fosse um campeão da democracia. Até líderes de esquerda protestaram contra o absurdo. Lulu não obteve o que pretendia: reconstruir a Unasul, que tinha sido dominada pelos chavistas desde o início (inclusive a luxuosa sede em Quito, construída com petrodólares chavistas).

Da mesma forma, a reunião com os membros do Pacto Amazônico não resultou no consenso previsto por Lula, seja em torno do desmatamento e da preservação dos recursos florestais, seja no que respeita à exploração de jazidas petrolíferas na própria Amazônia ou na faixa marítima adjacente do Atlântico. Assim como o presidente Gabriel Boric do Chile havia protestado, naquela primeira reunião, contra os elogios feitos por Lula ao ditador venezuelano, o presidente Gustavo Petro da Colômbia, crítico Lula, nesta segunda reunião, criticou a intenção de Lula de continuar explorando petróleo na Amazônia e na franja marítima. 

Parte da agenda multilateral passa por reuniões de cúpula em escala mais restrita do que as grandes conferências diplomáticas da ONU, ou os debates na Assembleia geral. G7, G20, Brics (agora no formato de Brics+), reunião ministerial da OCDE, summits da OTAN, Conselho da UE, Mercosul, Celac, todas essas são instâncias de consulta, coordenação e tomadas de posição e para declarações solenes, são todos momentos de exercícios de diplomacia multilateral, ainda que em escala mais restrita. 

O Brasil participa oficialmente de algumas, é convidado para outras (o G7, por exemplo) e se julga no direito de opinar e de manifestar sua posição diplomática em cada uma das oportunidades. Mas cabe reconhecer que, com a evolução deletéria do sistema internacional desde o início dos anos 2000 – ascensão de Putin ao poder na Rússia, ingresso da China na OMC e seu fulgurante crescimento econômico e comercial desde então, a tentativa americana de "contenção" da China, a agressividade de Putin no seu entorno, Georgia, Moldova, Ucrânia, etc. –, assim como a deterioração dos processos de integração na América Latina – crise do Mercosul, e em diversos outros países internamente, do próprio chavismo – minaram a base de atuação do Brasil, enquanto potência média, sem capacidade real de projeção de poder, grande economia, mas comerciante medíocre (sem qualquer marca internacional, fora da Embraer, exportando quase só commodities), dispondo de uma diplomacia profissional de excelente qualidade, mas deformada pela "diplomacia" presidencial personalista, impressionista e improvisada do chefe de Estado, que pensa administrar processos complexos, com base em meia dúzia de frases simples ("quando um não quer, dois não brigam", "resolvemos isso numa mesa de bar, com uma cervejinha", etc.).

Como, nessas condições, fazer aprovar um programa de Fome Zero Universal e de distribuição de renda (via “taxação dos super ricos”), fazer todos convergirem para as mesmas metas ambientais (sendo que cada país possui uma matriz energética diferenciada), ou "transformar as estruturas da governança mundial", sendo que cada país tem os seus próprios objetivos nacionais? Tudo leva a crer que os resultados do G20 de 2024 serão necessariamente modestos, limitados ou praticamente inexistentes. 

Como, nas condições regionais – brigas entre presidentes latino-americanos, paralisia dos processos de liberalização comercial –, fazer com que o Brasil exerça uma suposta "liderança regional" para levar a América Latina a falar de uma só voz nos grandes conclaves mundiais, se o presidente Lula não consegue imprimir sua marca em face das demais prioridades nacionais, nem se mostra à altura dos desafios (nas ameaças da Venezuela contra a Guiana, por exemplo, ou na condução de seu próprio processo eleitoral) ou das demandas das grandes potências globais? 

Como, em qualquer hipótese, imaginar que o presidente Lula consiga se fazer respeitar de "gregos e troianos", de ocidentais e contestadores, se ele demonstra, por um sem-número de declarações ambíguas, que já escolheu o seu campo, que é claramente o das potências revisionistas da atual ordem global (que é, sim, claramente ocidental, aliás a mesma que venceu o socialismo sem dar um tiro). 

O Itamaraty talvez tivesse condições de conduzir processos e negociações diplomáticas com seus dotes de profissionalismo testado numa preparação técnica de excelente qualidade, mas ele vem sendo cerceado, manietado, tangido pela impulsividade do chefe de Estado e pelas preferências ideológicas de seu assessor preferencial nessa área. Como se trata de um corpo disciplinado, o Itamaraty se dobra à vontade do presidente e depois precisa ficar colmatando as brechas e feridas abertas pelos improvisos impensados do presidente, suas frases deslocadas de objeto, seus adjetivos claramente inadequados para certos interlocutores. Uma tarefa de Sísifo, essa de corrigir palavras ofensivas a um determinado público.

Não estranha, assim, que nas mais recentes pesquisas de opinião pública, a política externa contribuiu com certo peso para a rebaixa da popularidade presidencial, tanto junto ao corpo político, como para o público em geral: as avaliações da política externa – Ucrânia, Israel, Venezuela – foram todas negativas para o presidente.

Os argumentos acima me levam a repetir o julgamento do título: o ativismo do presidente, a excelência da diplomacia profissional, a escolha de objetivos razoavelmente aceitáveis para o exercício da política externa brasileira em 2024 não conseguirão remediar uma característica já evidente no cenário internacional: há uma paralisia da agenda multilateral, um acirramento de dissensões, a emergência de conflitos velados e abertos, o crescimento da anarquia no sistema internacional.

Infelizmente é o que vejo neste início do segundo trimestre de 2024. Veremos se meus prognósticos pessimistas se confirmam nos próximos meses, mas muitos dos problemas não se devem exclusivamente ao Brasil – que só tem o G20 ao seu encargo, neste ano –, mas a condições objetivos do cenário mundial na presente conjuntura. Mas ajudaria se a diplomacia presidencial fosse menos personalista e mais baseada na experiência do Itamaraty no trato de agendas bilaterais, regionais e multilaterais bem mais complexas do que pode supor a "sapiência" do chefe de Estado e de seus assessores já dotados de opções pré-concebidas.

Voltarei no início do segundo semestre para renovar minha avaliação do segundo trimestre transcorrido e para fazer um novo balanço dos sucessos e fracassos da diplomacia brasileira.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4631, 14-15 abril 2024, 3 p.


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