Relações do Brasil com os demais países da América Latina
Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Evolução histórica: da indiferença ou afastamento à integração e engajamento; no Império e velha República, as relações foram erráticas, aos impulsos e sem um conteúdo mais explícito de relacionamento, então concentrado nas grandes potências europeias e nos EUA. Da era Vargas em diante, prosseguimento de uma política de cautelosa aproximação, com objetivos específicos e no contexto da integração comercial, à medida a capacitação própria na área industrial, processo que culmina no projeto do Mercosul, o mais estratégico do Itamaraty desde a IIGM, mas diminuído desde as crises dos anos 1999-2002.
Mudança de conceitos: do conceito vago de AL para o mais focado de América do Sul, desde que o México definiu sua estratégia americana, com ingresso no Gatt (1986) e sua opção pelo NAFTA, com suspensão das suas obrigações sob a Aladi, e do reconhecimento, pelo Brasil, do relativo distanciamento em relação ao Caribe e à América Central. O novo conceito de América do Sul apareceu pela primeira vez de modo explícito na gestão de FHC como chanceler, ao dar posse ao seu SG Luiz Felipe Lampreia, que depois se tornaria chanceler de 1995 a 2000 (sucedido por Celso Lafer, que tinha sido chanceler no breve segundo governo Collor). A nova orientação seria materializada na reunião de presidentes da América do Sul, em 30/08 e 1/09/2000, em Brasília, da qual resultou a IIRSA, Iniciativa de Integração Regional Sul-Americana.
Argentina: vivendo ainda no Plano Cavallo de estabilizada com paridade fixa entre o peso e o dólar, o principal parceiro do Brasil na América do Sul não aderiu ao conceito e Fernando De La Rua continua explicitamente a aderir ao conceito de AL, sem condições de abrigar a segunda reunião, em 2001 (ela foi organizada pelo Equador em 2002; a IIRSA definiu planos de integração física na América do Sul). As relações Brasil-Argentina sempre foram determinantes.
Mercosul: Concebido idealisticamente a partir do momento em que a Comunidade Europeia avança para o Mercado Unificado (1986-1992) e em que os EUA passam do acordo de livre comércio com o Canadá (1986-87) para o projeto do Nafta, unindo o México a um abrangente acordo de livre comércio da América do Norte, o projeto do Mercosul começa com o PICE, Programa de Integração e Cooperação Econômica, entre Brasil e Argentina, em 1986, sob Alfonsin e Sarney, continua com o Tratado de Integração, ainda bilateral, de 1988, já prevendo um Mercado Comum do Sul (Mercosul), em 10 anos, com base em duas dúzias de protocolos setoriais, e ingressa num processo de aceleração e automatização (sem mais protocolos setoriais) da liberalização comercial geral a partir da Ata de Buenos Aires (julho de 1990), quando se reduz o prazo de formação do mercado comum à metade do tempo. Esse processo deslancha o interesse de outros países, e os primeiros a serem aceitos, nas mesmas bases, são Uruguai e Paraguay; daí resulta o Tratado de Assunção de 1991, que nada mais é do que a Ata de Buenos Aires quadrilateral; Bolívia e Chile se tornam dois países associados ao Mercosul.
Chile: Um “aliado pouco natural” do Brasil, desde os tempos em que a Argentina constituía a principal preocupação dos líderes políticos e militares nacionais, sempre ocupou um lugar de prestígio em nossa visão externa, mas por razões que tinham pouco a ver com a intensidade de contatos econômicos, sempre modesta até o surgimento do Mercosul. No passado, ocupou esse papel diplomático de aliança potencial em face da mais poderosa Argentina, e desde os anos 1950 foi uma espécie de celeiro dos economistas brasileiros em ideias desenvolvimentistas, dado o papel da Cepal e de Prebisch na formação intelectual, no receituário de políticas econômicas, de ideias em geral no plano hemisférico e mundial. Na época da Guerra Fria e das ditaduras militares, ocorreu um envolvimento mais ativo do Brasil do regime militar com a destruição da democracia no Chile, muito estimulada por Kissinger. Desde o Mercosul, o Chile vem crescendo sua interface econômica com o Brasil e com o bloco, mas sem a menor intenção de participar de um arranjo ainda protecionista.
Bolívia: Com o Paraguai, um importante vizinho, por boas (comércio) e más razões, entre as quais se destacam a criminalidade e o contrabando. Sempre cultivou uma ambivalência nas suas relações externas, seja com a Argentina, seja com o grupo andino. Sua associação com o Mercosul não mudou muito o seu perfil interno, mas o fato de ter se tornado membro pleno pode começar a mudar sua estrutura econômica e seu perfil político, mas é duvidoso que o país alcance coerência política interna e externa, dadas suas várias contradições sociais, étnicas e políticas.
Uruguai e Paraguai: Características próprias a cada um, com perfis diferentes no relacionamento, mas ambos dependem muito do Brasil e da Argentina para vários aspectos de suas políticas econômicas e diplomáticas. A penetração humana de brasileiros no Paraguai é muito mais intensa do que no Uruguai, assim como a interpenetração de atividades criminosas, com grandes efeitos sobre a criminalidade na costa atlântica do Brasil. O fato de ambos pertencerem ao Mercosul não impede o fato de terem características próprias, e em parte incongruentes com as políticas econômicas protecionistas dos dois membros maiores do bloco, o que se choca com o perfil mais aberto dos dois menores. Há um enorme espaço para a cooperação e a projeção dos interesses econômicos e culturais do Brasil em ambos, talvez pouco aproveitado. Itaipu representa um casamento pouco natural, mas que precisa ser administrado pelo Brasil, nem sempre com coerência e consistência nas políticas.
Colômbia: Um vizinho distante, pela barreira amazônica, mas que também é um escoadouro pouco controlado na conversão do Brasil a grande exportador e consumidor de cocaína. As relações bilaterais estiveram aquém das possibilidades, justamente devido a esses fatores e parece pouco provável que a situação se altere significativamente nos próximos anos. O petróleo é uma nova interface no perfil externo de cada um deles, mas por razões próprias a cada um, não por qualquer convergência de políticas ou de projetos.
Venezuela: Só se tornou um vizinho mais relevante sob o chavismo e o lulismo, nem sempre por razões isentas de cálculos políticos e diplomáticos nas duas lideranças. Mas, a Venezuela se tornou um problema para si mesma e para a região, Brasil inclusive, dadas as políticas desastrosas do chavismo nos últimos 20 anos e continua sendo. Brasil parece dispor de uma falta de visão e de ausência de políticas para lidar com esse fenômeno destruidor de equilíbrios internos e externos, dada a exportação de emigrantes e ameaças à estabilidade dos vizinhos, Guiana e Colômbia.
Peru: A barreira amazônica também limitou a possibilidade de maior expansão e aprofundamento das relações bilaterais, como também a descontinuidade de grandes projetos integracionistas (IIRSA, Unasul, CAF-Banco de Desenvolvimento e outros). A OTCA poderia ser um foco de projetos mais consistentes, mas ainda não possui capacidade para sê-lo, a despeito das possibilidades.
México: O grande competidor pela liderança política e diplomática na AL, e também no ranking econômico na região. As geografias econômicas empurram os dois países para objetivos e direções diferentes, a despeito dessa vaga identidade latino-americana.
Equador: Pouca expressão nas relações bilaterais, mas acolhimento de negócios do Brasil na construção. Foi, durante os tempos áureos do chavismo e dos petrodólares venezuelanos, um aliado da causa bolivariana, tendo acolhido não só a sede da Unasul, como do Conselho de Defesa Sul-Americana, mas tornou-se um elo preocupante na cadeia da criminalidade latino-americana ligada ao comércio de cocaína. O Brasil poderia ser o organizador de uma ação internacional para combate à criminalidade regional, mas não se pode prever que o será, pois isso implica cooperação ampliada com americanos e europeus, os principais consumidores e atores do lado da demanda.
América Central e Caribe: Pouca expressão em nossas relações bilaterais ou regionais, a não ser por motivos tópicos e conjunturais – Haiti, Honduras – e sempre com a presença sobressalente dos EUA, ator de relevo durante toda a história contemporânea desses países.
Estados Unidos: Incontornável personagem da história de cada um desses países e presença inevitável nas suas relações externas, mas na parte norte da região, do que no Cone Sul, também cabe contar com eles na nossa diplomacia regional, por vezes de maneira convergente, em outras vezes com divergência de visões e de propósitos: no campo das prescrições de políticas econômicas, por exemplo, ou no enfrentamento aos problemas mais prementes, alguns deles criados ou alimentados pelo Grande Irmão (na Guerra Fria, por exemplo, como o estímulo a governos de direita, mesmo ditaduras militares, ou no atual “guerra” contra as drogas e a criminalidade transfronteiriça).
Paulo Roberto de Almeida
Brasília- São Paulo, 4563, 15-17 janeiro 2024, 4 p.
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