O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

827) Crônicas de uma Viagem Ordinária (ou quase...), 2

Crônicas de uma Viagem Ordinária (ou quase...)
2) Contrapunteo argentino del tango y de la carne...”


Paulo Roberto de Almeida
Buenos Aires, 9 de janeiro de 2008

Desfrutando de quatro dias em Buenos Aires, onde consegui chegar malgrado temores quanto à falta de gasolina – mas carecemos de banheiros limpos e de paradas decentes – dediquei-me a freqüentar as duas melhores coisas que esta capital federal (ooops) tem a oferecer: restaurantes e, sobretudo, livrarias. Volto ao turismo livresco-gastronômico depois, agora tenho de explicar a razão do meu ooops.
A expressão se aplica porque, segundo aprendi lendo o livro de Felix Luna – Breve Historia de los Argentinos – a Argentina padece de uma fatalidade geográfica que a condena ao centralismo de sua capital, porta obrigatória de entrada e de saída de praticamente tudo, o que pode ser uma maldição para o resto do país. Quem controla Buenos Aires, controla o país, e isso pode não ser bom para as províncias e seus caudilhos locais. O tirano Rosas, a despeito de teoricamente federalista e em luta contra os salvajes unitarios, acabou se rendendo às facilidades do centralismo de Buenos Aires e terminou escorraçado da capital federal pelas tropas do caudilho concorrente Urquiza, with a little help from his Brazilian friends. Felix Luna lamenta que a tentativa de se levar a capital federal para outro local, novo ou existente, tenha sido tão mal conduzida pelo presidente da redemocratização, Raul Alfonsin. Não sei se teria sido uma boa solução: eu estive lá alguns anos atrás e o local escolhido, Viedma (uns 400kms ao sul, na costa), não era nenhuma “Brasilia”: um frio de gelar os ossos, o vento cortante do mar penetrando até a alma. Teria sido uma Vladivostock sem qualquer charme...
Minhas incursões em livrarias tem sido moderadamente frustrantes. Num sebo velhíssimo no centro da cidade – La Libreria de Avila, calle Alsina y Bolivar, casa fundada em 1830, diz a propaganda – não encontrei quase nada de interesse para mim (história econômica, economia internacional, história regional etc.). Nas lojas modernas tampouco fiz a festa: comprei dois livros de história econômica mundial e a edição espanhola de Colossus, um ensaio histórico sobre o império americano, do historiador britânico Neill Ferguson (de quem já estou lendo, simultaneamente, Empire, sobre o império britânico, e The War of the World, sobre as mortandades do século XX). O Colosso também o era no preço: 89 pesos, ou seja, em torno de 25 dólares, quando eu o poderia ter comprado por apenas 4 ou 5 no maior sebo eletrônico do mundo (www.abebooks.com) e mesmo acrescentado 10 ou 12 de frete, ainda sairia mais barato.
As incursões gastronômicas tampouco representaram um prazer insuperável, se ouso arriscar o termo. Já não se fazem mais bifes de chorizo como antigamente, na Argentina, o que comprovei ainda agora à noite numa boa casa de tango tradicional (aliás, por um preço bem salgado). Fui à famosa “esquina Homero Manzi” – Av. San Juan, 3601, tel.: 4957-8488; www.esquinahomeromanzi.com.ar – do nome do famoso autor e compositor, que escreveu o belíssimo tango inspirado nesse local, chamado “Sur” (fui ouvindo no meu iPod, a caminho do local, na bela voz de Nelly Omar, que capturei na trilogia em CDs, The Complete Anthology of the Tango). Bem, o show era bonito, mas o meu bife de chorizo não valia, realmente, nem 10% dos 260 pesos pagos, individualmente, pelo espetáculo.
Lendo o La Nación do mesmo dia pode-se descobrir porque. O governo está empenhado em restringir as exportações de carne, para atender ao mercado local, que continua com preços controlados, ou pelo menos vigiados. “Doloroso adiós a las vacas” trazia a chamada de primeira página do jornal, com direito a matéria principal no caderno de economia. Segundo a matéria, “la crisis de la ganaderia por la intervención del gobierno y el boom de la soja siguen impulsando a los productores a cambiar de rubro. En Buchardo (sur de Cordoba), Benito Sánchez, que en 2003 ganó el Premio La Nación al Mejor Invernador, dejará de producir casi 2000 novillos por ano. Su campo será 100% soja y otros cultivos”.
De fato, a intervenção do governo, aqui na Argentina, como na Venezuela, está expulsando os produtores de suas atividades tradicionais, e eles simplesmente se refugiam em atividades (ainda) não controladas, ou se tornam rentistas, como acontece nesses países que praticam mais a cultura do déficit público do que a dos alimentos. A Argentina que já a maior exportadora mundial de carne e de processados de carne, nesse ritmo deve começar a importar carne do Brasil: a situação dos dois países nos mercados de processados conheceu uma exata inversão nos último anos, de 70 a 20% das exportações mundiais, num sentido e noutro. O mesmo pode estar se passando com outros setores, segundo leio.
Aliás, a inflação oficial, fechada em 8%, parece ser menos da metade da taxa real, segundo economistas. Não sei se foi por causa desse anúncio que encontrei hoje, ao ir a uma livraria, um pelotão de policiais em frente ao Instituto Nacional de Estadísticas y Censo, que parece ter sido obrigado a maquiar alguns de seus índices. O mesmo tipo de prática que parece estar vitimando o setor da carne se estende em outras áreas. O governo diz que não controla preços, apenas faz o seu seguimento. O mesmo jornal trazia a foto de um secretário fazendo a “visita” de postos de gasolina: o governo pretende que os distribuidores “retornem”, voluntariamente se entende, aos preços de outubro último, quando eles atualmente já estão 15 ou 20% mais altos.
Tenho a leve impressão de que vou novamente ficar sem gasolina para viajar, assim como os consumidores de eletricidade e de gás já começam a ficar sem o seu abastecimento habitual. A um calor de 40 graus, normal que alguns queiram ligar seus ventiladores ou o ar condicionado, o que provavelmente não será fácil. O inverno de 2007 em Bariloche foi, literalmente, sob a neve, na temperatura pertinente...
Acho que estamos, de novo, assistindo a um tango na política econômica, com a desvantagem dele ser bem menos vistoso do que aquele a que assisti esta noite, no chamado Boedo. Não posso reclamar das qualidades dos cantores e dos dançarinos, que eram realmente excelente, mas tudo me pareceu tradicional demais, como se a Argentina tivesse parado no tempo. As moças com seus reluzentes vestidos de paetês, com algo mais a mostra do que no passado, talvez, mas os rapazes com aquele ar de filme preto e branco, cabelos gomalinados, bigodinhos finos recortados, sapatos de verniz e ternos ridiculamente antiquados...
O poeta-escritor inspirador do local onde fui ver ao show, Homero Manzi, é homenageado por uma bela frase sob sua foto, na parede: “Tuve que eligir entre ser hombre de letras y escribir letras para los hombres”. Ele escolheu bem, pois deixou tangos inesquecíveis.
Meu problema atual é que não posso escolher deixar de comer carne – que está aquém da qualidade dos tempos de Manzi – para me abastecer de gasolina: uma e outra estão submetidas à tradicional política econômica esquizofrênica de um governo que se pretende reformista e nacionalista.
Acho que minhas férias vão continuar kirkegaardianas, isto é, angustiantes. Por falar nisso, o sucesso do momento nas livrarias locais é o “repeteco” de um exercício de psicanálise dos argentinos, por Marcos Aguinis: El atroz encanto de ser argentinos, 2 (acho que vamos ter muitos volumes mais...)

Buenos Aires, 9-10 de janeiro de 2008

3 comentários:

Anônimo disse...

Paulo, uma correção, o Rosas era federalista, e "mueran los salvajes unitarios" era o slogan de sua ditadura.

Paulo Roberto de Almeida disse...

Meu caro anônimo,
Muito grato pelo seu comentário inteiramente pertinente, pois corrige um erro banal meu, derivado da pressa com que escrevi esse texto, alta madrugada. Você tem totalmente razão e o Felix Luna não é nada culpado por esse meu cochilo. Fui buscar no fundo da memória essa expressão sobre os "salvajes unitsrios" e acabei colocando-os como aliados do ditador Rosas, o que obviamente é incorreto. Ele era apenas um caudilho federalista que se deixou encantar pelo charme da ditadura.
Já corrigi esse trecho, que ficou assim:
"O tirano Rosas, a despeito de teoricamente federalista e em luta contra os salvajes unitarios, acabou se rendendo às facilidades do centralismo de Buenos Aires e terminou escorraçado da capital federal pelas tropas do caudilho concorrente Urquiza, with a little help from his Brazilian friends."
Voilà, acho que a verdade histórica está salva na minha "crônica" de costumes, sem que eu possa agradecer nominalmente ao simpático anônimo, mas fica aqui consignado e registrado meu reconhecimento.
Buenos Aires, 10 de janeiro de 2008

Anônimo disse...

Coincidência...Estive há alguns dias em Buenos Aires e igualmente adquiri dois livros sobre História Econômica Mundial:)) Além desses, comprei as seguintes obras: 1- Tokatlian, Juan. India, Brasil y Sudáfrica. ISBN 978-987-599-039-5
2-Stanganelli, Isabel. Las Fuentes de Energia en el Cono Sur.Caviar Bleu (2006).
Abraço,
Max