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quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

1608) Crise financeira: a boa e a verdadeira explicacao de suas causas

Todo mundo acha que a crise financeira que se abateu sobre nossas cabeças como aqueles deuses gauleses sempre temidos pelo Asterix e Obelix representam uma falha do capitalismo. Pode até ser, e assim sintética, curta e grossa, a explicação para a crise fica compreensível, é simpática e agrada a (quase) todo mundo, sobretudo a certas escolas de economistas.
A mim não me convence, e sobre ela escrevi vários trabalhos ao longo de 2008 e 2009 (inclusive neste blog). Pois bem, este diretor do Instituto Adam Smith de Londres também acha que esse simplismo todo não é justificado, e escreveu este ensaio, que a despeito de longo, merece ser lido e servir como base de reflexão e aprendizado.

Crise financeira: culpe os governos, não os banqueiros
Eamonn Butler
Eamonn Butler é diretor do Adam Smith Institute, em Londres.
20 de Dezembro de 2009 - site Ordem Livre

A história popular sobre a crise do crédito é contada da seguinte forma.
Era uma vez um grupo de banqueiros gananciosos, a maioria nos EUA, que fizeram fortunas vendendo hipotecas a pessoas pobres que, na verdade, não tinham condições honrá-las. Eles sabiam que esses empréstimos eram de risco, então eles os fatiaram e os venderam em pacotes ao redor do mundo para outros banqueiros gananciosos que não sabiam o que estavam comprando. Quando a bolha da habitação estourou, os mutuários se omitiram e os banqueiros descobriram que o que eles tinham comprado não tinha valor algum. Eles faliram, os empréstimos secaram e a economia parou. A moral da história, de acordo com essa descrição dos eventos, é que o capitalismo falhou e que precisamos de regras mais duras para frear a ganância dos banqueiros e para ter certeza de que isso nunca mais vai acontecer.

A história é popular porque há muita verdade nela. A crise realmente começou nos EUA. Os mutuantes americanos realmente emprestaram para pessoas que não eram confiáveis, e de fato venderam em pacotes os seus maus negócios “sub-prime”. Outros banqueiros realmente compraram esses pacotes infectados e realmente ficaram sem dinheiro. E, sim, houve muita ganância e estupidez dentro das empresas comerciais.

O que está faltando na história, entretanto, é o fato de que todos esses crimes, loucuras e infortúnios derivam da ação do governo. Suas causas são intervenções políticas nos mercados bancário e de hipotecas; extravagância sem controle das autoridades monetárias oficiais, e legisladores sem foco e ineptos.

As profundas raízes da crise
A verdadeira história tem raízes lá na última grande crise financeira, a Grande Depressão da década de 1930. O crédito estava apertado; hipotecas eram difíceis de se obter, os imóveis não estavam vendendo e a indústria da construção estava em colapso. Então, o governo interviu para tentar reviver o mercado e encorajar a confiança dos mutuantes.

Várias novas agências foram criadas, entre elas, o Administração Federal de Habitação (Federal Housing Administration — FHA), que garantia os riscos dos financiamentos dos bancos, e a Associação Nacional Federal de Hipotecas (Federal National Mortgage Association — FNMA ou Fannie Mae), que na prática assegurava as hipotecas estando preparada para comprá-las dos mutuantes. Essas garantias federais transferiram o risco dos mutuantes — principalmente as instituições de poupança e empréstimo (P&E, semelhantes às sociedades de negócios britânicas) — aos contribuintes americanos.

O governo dos Estados Unidos também interveio profundamente nas operações dos mutuantes. O Ato Glass-Steagall, de 1933, permitiu ao Federal Reserve estabelecer limites sobre as taxas que os bancos poderiam pagar aos seus depositantes (Regulamento Q). Os P&Es se beneficiaram porque eles não tinham tais limites. Mas os P&Es estavam, também, restritos ao mercado das hipotecas de longo prazo; assim, ficavam na posição potencialmente arriscada de se comprometer a financiar empréstimos de 30 anos enquanto seus poupadores poderiam mover seus depósitos em um curto prazo.

Aumentos agudos e voláteis nas taxas de juros no final dos anos 1960 e início dos anos 1970 significam que os P&Es de fato enfrentaram dificuldades quando os depositantes retiraram seu dinheiro para colocar em poupanças que pagavam uma taxa de juros maior. No início dos anos 1980, os S&Ls estavam tecnicamente insolventes. O Congresso desregulamentou, mas muito tarde: em 1995 o número de S&Ls tinha diminuído para apenas 1.645. Duas outras criações do governo dos anos 1930, o Federal Savings & Loan Insurance Corporation (FSLIC) e o Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC), pegaram a conta, a um custo de 150 bilhões de dólares aos contribuintes americanos.

Essa longa lista de intervenções do governo fez com que o mercado de financiamento parasse de funcionar corretamente. A competição estava restringida. As regulamentações impediram as instituições de se adaptarem às condições de mercado. Empréstimos ruins e más decisões administrativas foram subscritas pelos contribuintes.

Como os políticos forçaram os banqueiros a conceder empréstimos ruins
O ingrediente final desse coquetel venenoso foi o Ato de Reinvestiment na Comunidade (Community Reinvestment Act — CRA), que o Presidente Jimmy Carter assinou em 13 de outubro de 1977. Seu objetivo era louvável — promover a aquisição da casa própria para as minorias. Ele tornou ilegal a prática do redlining, na qual os mutuantes simplesmente recusavam hipotecas para áreas pobres (geralmente bairros negros e hispânicos) porque os moradores locais não eram tão atraentes como mutuários devido às suas moradias de baixa qualidade e seus altos níveis de desemprego e de dependência dos programas governamentais.

A partir de então, esperava-se que os mutuantes fizessem negócios em toda a área geográfica que serviam. Eles não poderiam favorecer as partes mais ricas em detrimento das mais pobres. Para ter certeza de que eles assim faziam, o Ato de Divulgação das Hipotecas Imobiliárias (Home Mortgage Disclosure Act — HMDA), de 1975, forçou os mutuantes a fornecer relatórios detalhados sobre as pessoas a quem eles estavam emprestando. E o governo Carter também fundou vários grupos "da comunidade”, como a Associação de Organizações Comunitárias pela Reforma Já (Association of Community Organisations for Reform Now — ACORN), para ajudar a monitorar seu desempenho com as regras do CRA.

Em 1991, as regras do HMDA foram fortalecidas para incluir uma exigência específica pela igualdade raciall nas instituições de empréstimo. Em 1992, o Federal Reserve Bank of Boston publicou um manual para mutuantes que foi ainda mais longe. O manual aconselhava que a falta de histórico de crédito para aqueles que requeriam o financiamento não deveria ser vista como um fator negativo na sua avaliação para um empréstimo; que os mutuantes não deveriam recuar se os mutuários usassem empréstimos ou doações para o depósito inicial; e que o seguro-desemprego seria uma fonte válida de renda para as decisões de empréstimo. O manual também os lembrava que não cumprir os regulamentos do CRA poderia ser uma violação das leis de igualdade de oportunidade, o que exporia as instituições a indenização por danos materiais e morais de US$500.000.

O governo foi ainda mais longe, “racionalizando” os regulamentos do CRA 1995 para permitir, e de fato forçar, que os mutuantes ignorassem a maioria dos critérios tradicionais para decidir se concederiam ou não o empréstimo. Os financiamentos poderiam, agora, ser qualquer múltiplo da renda; o histórico de poupanças das pessoas era irrelevante; a renda dos requerentes não precisava ser verificada; e a participação em programas de aconselhamento de crédito poderia ser considerada prova da capacidade do requerente de administrar um empréstimo. Em outras palavras, o governo estava agora forçando as instituições a conceder empréstimos a pessoas que eles sabiam não iriam honrá-los.

E para ter certeza de que isso aconteceria, mais dinheiro dos contribuintes foi dado para grupos de monitoramento como o ACORN. Conforme aumentava o escrutínio público das fusões e aquisições dos bancos, após a desregulamentação Riegle-Neal, de 1994, esses grupos foram realmente capazes de manter os bancos como reféns. Sob o CRA, se um mutuante quer mudar de alguma maneira a sua operação de negócios — fundindo com outro banco, abrindo ou fechando ramos, ou desenvolvendo novos produtos —, ele deve convencer o regulador de que continuará a fazer empréstimos suficientes aos grupos de mutuários preferidos do governo. O ACORN e outros podem requerer petições junto com os reguladores para parar os planos dos bancos.

Maus empréstimos e os mercados em expansão
Não surpreendentemente, os bancos pagaram o resgate. E agora que a solvibilidade não era mais um requisito para se conseguir um empréstimo, o número de empréstimos de risco aumentou. Aumentou de 65% para 69% entre 1995 e 2004 a percentagem de casas que eram propriedade de seus moradores, representando um número em torno de 4,6 milhões de novos proprietários. Isso pressionou os preços das habitações, que também se elevaram bruscamente de sua posição estável no início dos anos 1990.

Enquanto isso, uma lei de 1992 que empurrava o Fannie Mae e seu gêmeo mais jovem, a Companhia Federal de Hipotecas sobre Casas (Federal Home Loan Mortgage Company — Freddie Mac), a empregar mais esforços para concretizar os objetivos mais amplos quanto à aquisição da casa própria. Havia empréstimos de alto risco por toda a parte. Até o FHA deu mais créditos aos mutuários pobres ao oferecer empréstimos de depósito baixo. E o Freddie Mac é que na verdade desenvolveu o processo de titularizar o pacotes de maus empréstimos e vender esses débitos ruins pelo mundo. Esse negócio se expandiu após 1995, também.

Fannie e Freddie lucraram com esse sistema, passando a maior parte dos riscos para os contribuintes. Para garantir, eles contribuíram pesadamente para escritórios do Congresso e gastaram centenas de milhões de dólares com lobby e com os grupos de pressão. Outros mutuantes sem escrúpulos também sabiam que Freddie e Fannie — e, em última análise, os contribuintes — garantiriam seus empréstimos ruins, portanto, estavam felizes em conceder ainda mais deles.

Enquanto os preços das habitações continuavam a subir, parecia que tudo corria bem. Mesmo os mutuários de maior risco estavam honrando seus pagamentos. Algumas pessoas refinanciaram na volta do aumento dos preços das casas e embolsaram bons lucros. E outras intervenções governamentais mantiveram o crescimento da bolha. Regulamentos para o uso da terra, limitando a oportunidade para a construção de casas, empurraram os preços ainda mais para cima. As deduções do imposto de renda para os financiamentos favoreceram o setor da habitação sobre outras poupanças.

Entretanto, o Federal Reserve — assistido pelo Bank of England — tinha inundado os mercados mundiais com crédito após a quebra da bolsa de 1987. Eles fizeram novamente o mesmo toda vez que havia a ameaça de alguma recessão — a quebra dos dotcom, e espetacularmente após o 11 de setembro, quando as taxas de juros caíram de 6,25% para apenas 1% —, o que apenas estimulava os empréstimos ainda mais. Assim, o preço das casas continuou a subir e os proprietários aproveitaram a expansão.

Parecia haver um monte de razões para comprar casas, e nenhuma para não comprar. Em 2006, talvez um quinto dos compradores eram apenas especuladores — não apenas especuladores de classe média, mas de classes mais baixas, também. Em estados como a Califórnia, onde os mutuantes não podiam ir atrás dos ativos dos mutuários, não havia nenhum risco: se as coisas dessem errado, você simplesmente devolvia as chaves para o mutuante e saía. Eles chamavam isso de jingle mail, "correspondência tilintante".

O inevitável estouro
Mas, em 2006, a bolha estourou. Era inevitável, já que estava muito inflada devido à política monetária frouxa do Federal Reserve. Os preços das casas desmoronaram e os mutuários ficaram inadimplentes. Um ano mais tarde, os bancos se deram conta dos títulos de má qualidade que haviam comprado. Apesar de terem 236 reguladores no seu caso, Fannie e Freddie — fiadores de metade das hipotecas dos Estados Unidos — mergulharam em um enorme déficit e se arruinaram.

Foi uma expansão, e um estouro, causados inteiramente pelo governo. E a expansão e o estouro na Inglaterra tiveram muitas das mesmas características e causas. As contínuas afirmações de Gordon Brown de que a era da expansão e do estouro já tinha acabado, nos fizeram acreditar que a expansão que estávamos vivendo era real e nos fez desconsiderar os riscos do colapso. Os preços das casas se moveram em uma espiral ascendente; novamente as pessoas refinanciaram e auferiram lucros da alta dos preços; outros compraram casas para fazer especulações; e o green belt, ou "cinturão verde", e outras restrições ao planejamento mantiveram o abastecimento das casas baixo, enquanto a imigração de pessoas vindas de novos membros da União Europeia pressionava cada vez mais a demanda.

Mas a política monetária não estava concentrada no controle dessa expansão do crédito. De fato, Gordon Brown mudou o índice de preços que o Bank of England tinha como meta para o índice de preços ao consumidor (IPC). Isso exclui os custos da habitação, ao contrário do índice de preços ao varejo, assim, os elevados custos da habitação não são considerados pelo comitê de política monetária (CPM). Ao mesmo tempo, a China e outros países em desenvolvimento estavam produzindo bens comerciáveis mais baratos, então o crescimento do IPC permaneceu relativamente baixo. Consequentemente, é claro, o CPM teve problemas até para atingir sua meta de crescimento de 2% dos preços. Como o Federal Reserve, o Bank alimentara uma enorme inflação.

Quando Gordon Brown deu ao Bank a independência na política monetária, ele também deslocou seu papel na regulamentação dos bancos para a nova Autoridade de Serviçoe Financeiros (Financial Services Authority — FSA). Mas o Bank teve uma melhor compreensão do que estava acontecendo nos mercados. Seus papeis no ajuste das taxas de juro e na atuação como mutuante de última hora foram complementares ao seu antigo papel de regulamentar os bancos. O FSA provou que não poderia se manter a par com o mundo acelerado dos derivativos e das trocas de crédito.

O Bank of England alertou o FSA que o Northern Rock estava operando em risco, em outubro de 2006, muito antes de seu colapso; mas nenhuma ação efetiva foi tomada. Quando os problemas do Northern Rock apareceram, o velho Bank of England nunca o autorizaria a abrir para negócios na próxima segunda-feira, até que seus problemas estivessem resolvidos. Mas o Northern Rock abriu, e a visão de milhares de depositantes formando filas para remover seus fundos incitou o chanceler a ajudá-lo. E tendo garantido o mutuante de maior risco, o governo não podia simplesmente assistir, meses mais tarde, quando outros bancos começaram a ter dificuldades — assim, mais dinheiro dos contribuintes foi colocado em risco.

A regulamentação internacional aumentou o problema. As regras Basel II enfocavam o capital, ao invés do problema imediato quando a bolha do financiamento estourou, que era a liquidez. Os bancos se viram obrigados a vender ativos em um mercado decadente para manter suas margens em alta. De fato, pode-se dizer que as regulamentações do capital internacional talvez tenham tornado o problema pior.

A moral: é falha do governo, não do mercado
Agora, os políticos do mundo estão nos dizendo que nós precisamos de mais regulamentações financeiras para nos salvar das falhas do capitalismo. Mas a moral dessa história é que a crise na verdade representa uma grande falha do governo. Suas causas são um catálogo de falhas políticas, legislativas e regulatórias desde décadas atrás. Onde havia cobiça e inépcia, pelos bancos e mutuários, tem sido apenas possível properar no mundo irreal da expansão que a ação do governo criou.

Nós estamos em um cassino onde o governo estava entregando fichas grátis e os legisladores estavam nos comprando bebidas e nos dizendo em quais números apostar. Não surpreendentemente, nós todos fomos deixados mais pobres do que quando entramos.

Tradução de Gustavo Reis.

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