3092. “Alguns desafios ao Brasil e à sua política externa: notas de leitura”, Brasília, 11 março 2017, 19 p. Análise crítica dos capítulos conceituais da publicação resumida no trabalho n. 3084:
Spektor, Matias (editor executivo):
10 Desafios da Política Externa Brasileira
(Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Relações Internacionais; Fundação Konrad Adenauer, 2016, 144p.).
Distribuído, em caráter informal, aos participantes do debate organizado pelo IPRI, no Itamaraty, em circuito fechado, no dia 15/03/2017. Disponível na plataforma Academia.edu (23/05/2017; link: https://www.academia.edu/s/fc4d6e3a75/alguns-desafios-ao-brasil-e-a-sua-politica-externa-notas-de-leitura).
Cometi um pequeno erro -- provavelmente sonolento e cansado -- neste trecho:
" Existem vários outros equívocos factuais nos parágrafos que se seguem a este, mas talvez seja mais interessante concentrar-se na afirmação mais ousada, a de um suposto consenso entre tucanos e petistas".
Eu tinha escrito "petistas e lulistas", o que é obviamente uma redundância escandalosa em favor dos companheiros podres.
Paulo Roberto de Almeida
Alguns desafios ao Brasil e à
sua política externa: notas de leitura
Paulo Roberto de Almeida
Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações
Internacionais, IPRI-Funag.
No final de 2016, em iniciativa apoiada pela Fundação Konrad Adenauer, o
Centro Brasileiro de Relações Internacionais divulgou, em sua página na
internet, o seguinte livro: 10 Desafios
da Política Externa Brasileira (Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de
Relações Internacionais; Fundação Konrad Adenauer, 2016, 144p.; ISBN:
978-85-89534-11-6; disponível: http://midias.cebri.org/arquivo/10desafiosdaPEB.pdf e https://www.academia.edu/31753378/10_Desafios_da_Pol%C3%ADtica_Externa_Brasileira).
O historiador Matias Spektor, um dos coordenadores de grupos de trabalho
do CEBRI, atuou como editor executivo da obra, respondendo por um texto introdutório,
propondo uma “nova doutrina de política externa brasileira” (p. 17-25), e um
final, sobre uma “análise estratégica para as relações internacionais do
Brasil” (p. 133-143).
Apenas com a intenção de servir de informação sumária aos participantes
de um seminário-debate sugerido por mim, programado para o dia 15 de março de
2017, no Itamaraty, com apresentações dos respectivos autores dos dez ensaios
incorporados ao livro do CEBRI, preparei uma simples nota-resumo, bastante
objetiva e concisa, de cada um desses capítulos, encaminhada a possíveis
debatedores e comentaristas do Itamaraty no seminário, e postada no meu blog Diplomatizzando (em 11/02 e 6/03/2017; no
link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/02/dez-desafios-da-politica-externa.html).
A intenção agora seria a de discutir com maior grau de detalhe alguns dos
capítulos dessa obra coletiva, para destacar pontos relevantes para a discussão
pública de um trabalho importante. Vou deixar de lado, inicialmente, os
capítulos setoriais, e concentrar-me numa leitura tópica dos textos de caráter
geral, que são os seguintes: 1) “Carta do Editor Executivo”, por Matias Spektor
(p. 11-14); 2) “Por uma nova doutrina de política externa brasileira”, também por
Matias Spektor (p. 17-25); 3) “Análise estratégica para as relações
internacionais do Brasil”, ainda pelo mesmo autor (p. 133- 143). De
forma geral, considero as propostas finais, sobre planejamento estratégico na
política externa, válidas na capacidade de diagnóstico da situação atual e de
prescrição adequada de medidas para sanar as deficiências existentes, sendo a
parte inicial, porém, de proposta de nova doutrina na área, eivada de equívocos
de julgamento, já que as duas políticas externas recentes, do PSDB e do PT,
foram bem diferentes, uma da outra.
1) “Carta do Editor Executivo”, Matias Spektor
O Editor executivo parece atribuir uma importância exagerada à política
externa do Brasil como vetor de crescimento ou até de correção das anomalias
atualmente existentes em diversas áreas das políticas públicas, quando, por
exemplo, afirma que “uma reavaliação da política externa
brasileira que esteja engajada na busca de soluções práticas para os problemas
aqui postos é imperiosa porque o Brasil não pode arcar com os custos de mais um
ciclo de retrocessos” (p. 11). Ele afirma, em seguida, que “Nossa hipoteca
social é tão vasta, os problemas tão arraigados, que a construção de um novo
caminho para as relações internacionais do país é urgente, sob pena de uma
geração inteira ficar condenada ao atraso”. Ainda confirmando essas premissas,
pode-se ler no parágrafo seguinte (p. 11):
Se há uma tese centra a unir os capítulos que seguem é
esta: a política externa é um instrumento essencial para a recuperação do
crescimento econômico com justiça social, pois o sistema internacional afeta em
cheio a capacidade que autoridades nacionais tem [sic] para conduzir políticas
efetivas.
Creio que há um problema conceitual grave nessas afirmações: os
problemas sociais do Brasil, que são reais e muito graves, não são problemas de
política externa, e sim problemas da sociedade brasileira, como um todo,
problemas de políticas públicas, basicamente, essencialmente internas,
domésticas, restritas a medidas que dependem fundamentalmente do próprio Brasil.
A tese central, a de que “a política externa é um instrumento essencial para a
recuperação do crescimento econômico com justiça social”, me parece
profundamente equivocada, ou desfocada, uma vez que a retomada de um processo
de crescimento sustentado, capaz de produzir desenvolvimento com transformações
estruturais e aumento do bem-estar, depende em quase tudo de medidas internas,
que, em minha opinião (PRA), poderiam ser resumidas nos seguintes pontos:
1) estabilidade
macroeconômica;
2) competitividade
microeconômica;
3) boa governança;
4) alta qualidade do
capital humano;
5) abertura a comércio
internacional e a investimentos diretos estrangeiros.
Não é preciso repetir que o sistema internacional tem sido, a despeito
de seus muitos problemas de instabilidade política e de protecionismo setorial,
muito receptivo a bons projetos de desenvolvimento, como os casos de China, da Índia,
Chile e alguns outros têm demonstrado amplamente. Ou seja, esses países operam
num ambiente até mais amplo do que o Brasil, e portanto mais exposto a supostos
“problemas”, e no entanto têm exibido taxas altamente satisfatórias de
crescimento e de inserção global. O Brasil fez um esforço consistente de
abertura econômica e de liberalização comercial nos anos 1990, com ou sem o
Mercosul, numa década e meio que foi chamada, muito depreciativamente, de
“neoliberal”, por petistas e assemelhados – isto é, economistas supostamente desenvolvimentistas,
ou heterodoxos –, mas o fato é que a reversão dessas políticas (até antes, mas
essencialmente) com e a partir dos governos lulopetistas e suas políticas
nacionalistas e introvertidas à outrance,
redundaram, com outros equívocos enormes de políticas econômicas (macro e
setoriais), na maior crise de toda a nossa história econômica, um desastre total
e absoluto, que chamei de “A Grande Destruição”.
Outra afirmação do Editor Executivo levanta o mesmo tipo de problema:
A concepção derivada dos dez capítulos ora apresentados
sugere que a atuação do Estado brasileiro no exterior pode ajudar a tirar o
Brasil de seu atraso, seja ele mensurado termos de isolamento comercial,
contrabando e narcotráfico, corrupção endêmica, saneamento básico, violência
urbana e policial. (p. 12)
Ouso dizer, novamente, que tal tipo de afirmação é profundamente
equivocada, pois nenhum dos problemas apontados, sequer o que postula o
“isolamento comercial” – eu até diria protecionismo deliberado, o que é muito
pior – são problemas de política externa, e nada disso tem a ver com o
Itamaraty. Todos eles, ou as soluções de cada um e de todos eles, são afetos a
outros órgãos do poder público: ministérios da Fazenda, da Justiça, Cidades,
Integração Nacional, Procuradoria Geral da República, Polícia Federal e outros
porventura encarregados de questões paralelas a essas. O Itamaraty, por uma
vez, ou pelo menos desta vez, é totalmente inocente nos “crimes” apontados.
Ouso dizer mais ainda – mesmo que isto seja politicamente incorreto do
ponto de vista da diplomacia brasileira, ou dos assuntos que pode ou deve
comentar um mero servidor do Estado –, que a maior parte desses problemas são
justamente causados pela ação interna ou externa do Estado, e que este, longe
de ser um promotor de soluções para cada um daqueles problemas (assim como
vários outros mais), tornou-se, desde vários anos, senão há décadas, um criador
ativo e resoluto dos problemas que afligem, cruelmente, a população brasileira.
O Estado, como já disse alguém, é o problema, não a solução, pelo menos este
Estado de que dispomos atualmente no Brasil, formalmente bem estruturado no
plano puramente institucional, de tipo ideal-weberiano, mas que vem sendo
profundamente deformado pela ação de elites políticas ineptas ou corruptas,
assim como pelo nosso lado de “república sindical”, ou seja, o corporativismo
levado a excessos, um burocratismo e um prebendalismo de tipo “mandarinesco”,
profundamente ofensivos aos olhos (e aos bolsos) da maior parte da população.
Ainda que admitamos que o Estado – mas, preferencialmente, um “outro
Estado possível” – possa vir a ser a solução para alguns daqueles problemas – e
isso parece ser inevitável no plano puramente regulatório, mas preferencialmente
pela via de mercados livres –, mesmo assim esses problemas continuam
soberanamente à margem, alheios a qualquer política externa que se conceba para
atacá-los. Ou, se a diplomacia tiver algum papel na concepção de soluções, na
formulação de políticas atinentes a esses problemas, esse papel só pode ser
marginal, mínimo ou simplesmente acessório.
Matias Spektor passa a barra da solução dos problemas brasileiros pela
via da política externa e adentra no que parece ser seu objetivo principal:
Não há dúvida [sic] de que, nos próximos anos, será
necessário conceber uma doutrina de política externa atualizada, que
sirva como guia para a atuação dos governos vindouros. Uma
construção doutrinária dessa natureza é sempre um esforço coletivo, paciente e
de longo prazo, dadas as dificuldades inerentes à empreitada. Mas gerações
passadas souberam conduzir esse processo com talento, vide a efervescência
intelectual na área da política externa do Segundo Reinado, na República Velha,
no começo da década de 1960 e nos anos FHC e Lula. Agora, cabe a nossa geração
imaginar os contornos da doutrina que virá.
Até lá, urge diagnosticar de maneira clara e em linguagem
direta os problemas centrais de política externa. É precisamente isso que este
exercício de reflexão estratégica pretende fazer: uma análise de dez problemas
candentes da posição do Brasil no sistema internacional, seguida de
recomendações práticas, de baixo custo e fácil implementação. (12)
Independentemente de minha concordância, de princípio, com a constatação
de que o Brasil carece, dramaticamente, de uma concepção geral quanto à sua
inserção na região e no mundo, e também a de que os governos recentes,
quaisquer que tenham sido eles, não formularam, claramente, a política externa
mais adequada a esse objetivo muito simples – a inserção do Brasil na economia
global e seu papel na política internacional – vale um registro pessoal quanto
aos objetivos apontados acima, ou seja, a concepção e a implementação de uma
“doutrina de política externa atualizada, que sirva como guia para a atuação
dos governos vindouros”. Não creio que tal tarefa possa ser conduzida por
candidatos a “conselheiros do Príncipe”, uma vez que projetos desenhados nesse
âmbito sempre revelam mais ambições teóricas, ou práticas, de quem os formula,
do que produzem os “tijolos construtores” de uma tal doutrina, a partir de uma
visão clara sobre os fundamentos operacionais dos principais elementos de uma
doutrina, ou estratégia, de política externa.
Curiosamente, Spektor coloca a existência de uma eventual doutrina de
política externa apenas nos períodos indicados, e parece acreditar que os governos
do regime militar não tiveram nenhuma doutrina, ou estratégia, de política
externa, quando isso manifestamente não corresponde à realidade puramente
objetiva dos fatos. Em qualquer hipótese, a pretensão de formular uma proposta
de doutrina de política externa em bases acadêmicas, para uso dos burocratas da
política externa que são os diplomatas, parece-me corresponder a uma atitude
típica desses meios, que geralmente redundam em uma acumulação de conceitos e
hipóteses com frágeis conexões com a realidade da agenda diplomática. Tal não é
o caso, obviamente, dos estudos setoriais – não todos, apenas alguns – que se
ocupam de questões concretas da pauta externa, ou geralmente interna, do
Brasil, pois eles tendem a formular “soluções” com base em estudos fortemente
apoiados em base empírica adequada.
Com isso não quero dizer que não seja legítima tal demonstração de “arrogância
intelectual” da parte de um acadêmico, qual seja, de pretender oferecer uma
“doutrina” de política externa para o Brasil. Digo que tal tipo de exercício
deveria ser precedido por um avaliação técnica dos problemas reais do Brasil –
não os proclamados por sua elite política, ou até diplomática –, alguns dos
quais efetivamente tratados nos capítulos setoriais desta obra coletiva, a
partir da qual seriam separados os problemas “made in Brazil”, que mereceriam,
portanto, um tratamento puramente doméstico de seu equacionamento prático e
possível solução, daqueles problemas que derivariam de um suposto “sistema
internacional”, um conceito ambíguo, geralmente desprovido de um significado
mais preciso. Tais problemas poderiam merecer um encaminhamento de tipo
“diplomático” (ainda que a diplomacia seja mera técnica a serviço de objetivos
mais gerais de política governamental, externa ou “exterior”), a partir da
mobilização do engenho e arte do Itamaraty (com o apoio de outros agentes
públicos, ou seja, de órgãos do Estado responsáveis pelos “problemas
externos”).
Um desses problemas é justamente o da “resiliência da democracia na
região”, objeto de um dos capítulos, assinado por Oliver Stuenkel, que tem a
ver com valores e princípios de ordem constitucional, ou até de solidariedade
moral com povos hoje submetidos a tiranias ou regimes ditatoriais, o que
representa um problema político (a partir de compromissos assumidos
multilateralmente ou regionalmente) e mesmo de ordem moral, como já referido. Dito
isto, vejamos os referidos capítulos de caráter geral, ambos assinados pelo
Editor Executivo desta obra coletiva.
2) “Por uma nova doutrina de política externa
brasileira”, Matias Spektor
O texto se abre por uma afirmação pelo menos surpreendente:
O Brasil vive um momento de emergência nacional. Em três
anos, acumularam-se a crise política inaugurada com os protestos populares
(2013), o início de uma longa recessão econômica (2014), a expansão da operação
Lava Jato (2015), a queda de Dilma Rousseff e a implosão eleitoral do PT
(2016). Depois do ciclo virtuoso de mais de uma década, a trajetória do Brasil
é negativa. O Brasil vive um momento de emergência nacional. Em três anos,
acumularam-se a crise política inaugurada com os protestos populares (2013), o
início de uma longa recessão econômica (2014), a expansão da operação Lava Jato
(2015), a queda de Dilma Rousseff e a implosão eleitoral do PT (2016). Depois
do ciclo virtuoso de mais de uma década, a trajetória do Brasil é negativa. (17)
Os protestos de 2013 não foram exatamente “populares”, pelo menos não em
seu início, suscitados por uma demanda absolutamente irrealista de “passe
livre” e de recusa de um aumento de 20 centavos em tarifas de transportes
urbanos, que na verdade escondiam mal uma agenda totalmente política, por parte
de “movimentos populares” que eram meras correias de transmissão de partidos de
tendência totalitária, mas que acabaram atraindo a atenção de uma classe média já
enfadada de tanta corrupção nos meios políticos e por altos impostos pagos ao
Estado para serviços abaixo de qualquer critério de qualidade, sobretudo nas
áreas de saúde, educação, segurança e transportes, justamente. Mas este é o
aspecto menor da questão, pois esses protestos – iniciados, como se disse, por
movimentos políticos de esquerda – atraíram a classe média de forma muito
difusa, logo retraída novamente aos seus lares pela ação criminosa dos chamados
Black blocs, que os conspurcaram,
provocando a saída da classe média.
O que, sim, tivemos, a partir de 2014 (logo após as eleições
presidenciais), e sobretudo em 2015 e 2016 foi a mobilização da cidadania
consciente e ativa, em novos movimentos totalmente inéditos no plano nacional –
e é esse aspecto que precisaria ser ressaltado –, não de esquerda, obviamente,
e que certa forma foram responsáveis, junto com a tremenda crise econômica já
em curso, pelo impeachment finalmente realizado em meados de 2016. Mas, este,
como disse, é o aspecto menos importante desse parágrafo; o aspecto mais
relevante a ser destacado é o trecho que se refere a um suposto “ciclo virtuoso
de mais de uma década”.
O que isso quer dizer? Que o Brasil vinha vindo muito bem, com seu ciclo
virtuoso – à base de alta demanda chinesa por nossas commodities de exportação
e altos preços dessas matérias primas – que se estendeu durante quase toda a
década de 2000, e de repente, por inépcia na gestão, ele se vê engolfado numa
“longa recessão econômica” e na revelação de um imenso lodaçal de corrupção
generalizada, com todas as suas consequências na esfera política? Seria isso?
Pois ouso mais uma vez dizer que tal tipo de afirmação é profundamente
equivocada, seja no plano mais geral das políticas econômicas, seja no âmbito
mais restrito da política externa. Não vejo nenhum “ciclo virtuoso” de “mais de
uma década”, mas o que vejo, sim, é uma deformação de várias políticas públicas
durante mais de dez anos, desde o início, mas mais acentuadamente a partir de
2005, e o aprofundamento de uma política externa, dita “ativa e altiva”, feita
expressamente para servir ao regime lulopetista e suas políticas equivocadas,
interna e externamente. Não vou me estender neste momento sobre todos os
motivos pelos quais eu considero a década e meia de dominação lulopetista sobre
nossas instituições um fenômeno profundamente nefasto, prejudicial, um tremendo
retrocesso em todos os aspectos, até justamente descambar na Grande Destruição.
Quanto aos aspectos propriamente diplomáticos do “avanço do retrocesso”, já me
estendi bastante em meu último livro – Nunca
Antes na Diplomacia...: a política externa brasileira em tempos não
convencionais (2014) – para retomar novamente todas as minhas críticas a tais
deformações deliberadas de uma das mais importantes de nossas políticas
públicas.
Mas, as surpresas quanto à caracterização dos processos que nos levaram
a essa “emergência nacional” continuam no segundo paragrafo desse capítulo, a
partir do qual se desdobra o projeto de “modernizar a doutrina brasileira de
política externa”:
O pano de fundo dessa transformação para pior foi uma
economia global de baixo crescimento, o aumento de nossa dependência econômica
em relação à China e a onda global de neopopulismo, que venceu o voto pela
saída da União Europeia no Reino Unido e levou Donald Trump à presidência dos
Estados Unidos.
Esse é o contexto no qual se impõe a necessidade de
modernizar a doutrina brasileira de política externa. Tal esforço é essencial porque
a estratégia internacional dos últimos anos, com seus êxitos e fracassos,
encontra-se esgotada. (17)
Essa economia global de baixo crescimento já vinha de longe, e se
estendeu praticamente desde os choques do petróleo dos anos 1970, para
justamente iniciar um ciclo de crescimento vigoroso nos 2000, a taxas que não
se viam desde o primeiro choque do petróleo, o que favoreceu muitos países
emergentes, mas pouco a América Latina e muito pouco o Brasil, que ficou abaixo
do crescimento da região, com taxas inferiores à média do crescimento mundial e
três vezes menores do que as dos países emergentes de economia mais dinâmica. Incidentalmente,
não houve aumento da “dependência econômica em relação à China”, mas
intensificação do comércio bilateral, com o gigante asiático assumindo a
primeira posição individualmente, à frente, desde 2009, dos EUA. Ora, maior
fluxo de comércio – o que justamente tivemos com os EUA e a UE em seu conjunto
durante décadas – não quer dizer “dependência econômica”, sob risco de enfraquecermos
o sentido desse conceito. Por fim, a tal “onda global de neopopulismo” não tem
absolutamente nada a ver com os problemas do Brasil, assim como os resultados
de plebiscito e votações no Reino Unido e nos EUA. Trata-se, aliás, do mesmo
velho populismo já conhecido em outras regiões ou outros tempos, e não é
exatamente global, pois as questões em países da Europa e nos EUA se colocam em
bases históricas e de política nacional totalmente diferentes em cada situação.
Trump responde a outros critérios de escolhas políticas, diferentes do voto
conservador em países da Europa, ainda que os fenômenos da rejeição à imigração
descontrolada e dos temores de atentados terroristas de origem fundamentalista
islâmica possam ser (e são) reconhecidos como relativamente coincidentes.
Em face desses “problemas” é que se “se impõe a necessidade de
modernizar a doutrina brasileira de política externa”? Seria isso correto?
Seria isso possível? Seria isso factível? Para modernizar algo, seria antes
preciso saber, com certo grau de exatidão, o que é se pretende “modernizar”. Ou
seja, aperfeiçoar uma suposta doutrina que não foi ainda sequer definida. Pelo
que se leu, se parte do pressuposto de que houve um “ciclo virtuoso de mais de
uma década”, e esse ciclo contaria, ao que parece, com uma doutrina que seria
preciso “modernizar”: “Tal esforço é essencial porque a estratégia
internacional dos últimos anos, com seus êxitos e fracassos, encontra-se
esgotada” (17). Ou seja, houve uma estratégia, ou doutrina, e essa teria sido a
do lulopetismo diplomático, talvez até igual à do neoliberalismo dos tucanos.
Em seguida, registra-se uma nota de desconfiança em relação à capacidade
do atual governo – que não hesito em classificar como de “transição”, embora
não se saiba ainda para o quê, exatamente – de efetuar esse passo ousado:
O governo Temer iniciou seu mandato revisando as ênfases
diplomáticas do PT, e o novo presidente promete inaugurar um novo estilo na
condução dos negócios estrangeiros. Nada indica, porém, que ele vá atualizar os
conceitos básicos que embasam a atuação do país no mundo. (18)
Antes de qualquer comentário a respeito dessa
“incapacidade”, seria preciso, primeiro, saber quais eram esses “conceitos
básicos” anteriormente existentes, e que necessitariam rejuvenescimento, ou
modernização. A tarefa não parece fácil, como se registra logo em seguida:
A adaptação da política externa aos novos tempos internos e
externos, quando ocorrer, será uma tarefa dificílima: não há consenso sobre o
que fazer, nem recursos disponíveis para grandes empreitadas. Além disso, há
boa dose de inércia - a tendência natural da comunidade responsável por pensar
o lugar do Brasil no mundo a manter-se escorada nos velhos paradigmas. (18)
Pode-se concordar com o exposto, ou seja, ninguém sabe bem o
que fazer, pois os diplomatas, como sempre, apenas esperam instruções ou ordens
superiores; os políticos, por sua vez, não parecem estar em condições de
formular quaisquer instruções claras e adequadas aos problemas internos e
externos do Brasil. Os acadêmicos, finalmente, fazem o que sempre fizeram:
quando não são capazes de interpretar a realidade existente, fazem o que já
disse uma vez o escritor Mario Vargas Llosa, eles “inventam uma teoria”. De
fato, é o que eles mais sabem fazer: inventam teorias, o que não
necessariamente é o que praticam as outras duas categorias, e as teorias são um
pouco o substituto de uma profunda ignorância sobre coisas práticas da vida (a
política externa é uma coisa profundamente prática, antes de responder a
grandes conceitos de política internacional, vista pelos olhos e escritos dos
intelectuais).
Antes de adentrar na substância de sua exposição, ou seja, a
formulação de uma nova doutrina de política externa, o autor explica as bases
de seu trabalho analítico:
Este capítulo argumenta que é necessário iniciar o
processo de concepção de uma nova doutrina de política externa. Para isso, o texto está dividido em quatro partes. Primeiro,
explico as diferenças e semelhanças das estratégias internacionais adotadas por
tucanos e petistas durante os últimos vinte anos, e o fim do consenso entre os
dois partidos a respeito da política externa brasileira. Segundo, avalio as
condições que tendem a moldar qualquer nova concepção doutrinária de política
externa. Na sequência, ofereço uma interpretação sobre os parâmetros que
deveriam embasar esse exercício de reflexão estratégica no atual momento de
revisão do gasto público e da estrutura fiscal do país. Por fim, sistematizo
algumas recomendações sobre os processos que poderiam facilitar o debate
público nesse campo. (18)
Nada a reparar quanto a seu plano de trabalho, e entendo que a primeira parte
deveria ser dedicada a um diagnóstico realista sobre o que foi a política
externa no período recente. Mas soa bizarro ler, logo em seguida, que teria
havido um “fim de consenso” entre tucanos e petistas a respeito da política
externa (ou seja, existiu um consenso, em algum momento), quando estes últimos
condenaram vigorosamente a orientação dada pelos primeiras à diplomacia
brasileira nos dois (ou mais) governos anteriores, e fizeram de tudo para se
demarcar do “neoliberalismo” tucanês, se empenhando em proclamar que sua
política externa era “ativa e altiva”, supostamente o contrário da linha
“submissa”, “alinhada a Washington”, conservadora ou coisas do gênero. Se
existiu um consenso, em algum momento, foi contra a vontade, totalmente
involuntário, e passou despercebido dos petistas puros, que se esforçaram para
mostrar que sua política externa era a única capaz de preservar a soberania
nacional, garantir os famosos “espaços de políticas públicas” guiadas para
acelerar o crescimento e produzir um “desenvolvimento social inclusivo”,
objetivando consolidar o Mercosul, fazer o Brasil ingressar no Conselho de
Segurança e concluir com êxito as negociações comerciais multilaterais. Como se
sabe, esses eram os três objetivos prioritários da política externa “ativa e
altiva” (e soberano) do lulopetismo diplomático.
O autor reconhece, em primeiro lugar, na seção “O fim do consenso”, que
a política externa tinha virando um dos principais “campos de batalha entre PT
e PSDB”, isso porque este último partido concebia a política externa como
“instrumento de adaptação à globalização”, ao passo que o PT imaginava “a
diplomacia como instrumento de resistência” (19). Ele expõe detalhadamente as
posturas defendidas por uns e outros, mas não esclarece que, enquanto a
política externa dos tucanos, guiada fundamentalmente pelos próprios diplomatas
(com alguns poucos elementos introduzidos pelo próprio presidente, mas após uma
consulta ponderada a seu chanceler, um diplomata de carreira, como aliás o dos
petistas), estava embasada em dados concretos da agenda internacional, a dos petistas,
a partir daquela concepção bizarra de que “um outro mundo é possível”, era
razoavelmente errática, conduzida por diversas cabeças nem sempre pensantes,
com inúmeros elementos utópicos, ou simplesmente irrealistas, sem grandes
conexões com a realidade (e por isso ineficiente quanto aos seus grandes
objetivos).
Uma das frases dessa seção soa pelo menos estranha: “O ativismo
internacional do PT começou com visitas de altíssimo
perfil (sublinhado PRA) a Cuba, Irã, Líbia e Síria, além de numerosos
périplos pela África e pela América Latina” (20). Como assim? O “altíssimo
perfil” se refere ao visitador, ou aos países citados?
Logo em seguida, comparece uma inversão cronológica de vários anos: “Em
seguida, vieram a criação do Brics (...), do Ibsa (...) e na formação do G20”
(20). Cabe retificar: o Ibas foi constituído no início do primeiro mandato do
demiurgo, logo no primeiro semestre de 2003, seguido de um esquizofrênico G20
comercial, a partir da conferência ministerial da OMC, em novembro daquele ano em
Cancun (mas que desapareceu sem grandes traços, dadas suas grandes contradições
internas, e que não deve ser confundido com o G20 financeiro, só surgido a
partir de 2008). O Bric, por sua vez, foi oficializado a quatro membros apenas
em 2009, a despeito de alguns contatos preliminares a partir de 2006, mas se
tornou Brics apenas em 2011, com o ingresso forçado pela China da África do Sul
(um país muito distante do conceito original).
Uma outra imprecisão factual comparece logo em seguida: “O PT optou por
um estilo negociador maximalista na Rodada Doha, nos embates da Alca e na
tentativa de reformar o Conselho de Segurança da ONU” (20). Na verdade, o
“estilo” poderia ser considerado, antes, minimalista, pelos seguintes motivos:
o Brasil continuava a se opor à agenda ambiciosa dos países desenvolvidos – em
especial nos chamados “novos temas”, ou na agenda de Cingapura (compras
governamentais, propriedade intelectual, etc.) – e não tinha outra intenção em
relação à Alca senão implodi-la desde o início, o que traduz também uma vocação
minimalista, novamente pela recusa de engajamentos muito explícitos quanto a
compromissos de abertura econômica e de liberalização comercial. No que se
refere ao CSNU, o ativismo foi realmente erga
omnes, mas se traduziu, contraditoriamente, na formação do G4, que pode ser
considerado minimalista e contraproducente, ao unir o Brasil –que teria chances
reais de ser aceito como um candidato credível a uma cadeira permanente – a
três outros países (Alemanha, Índia e Japão) confrontados a opositores muito
poderosos em suas próprias regiões.
Existem vários outros equívocos factuais nos parágrafos que se seguem a
este, mas talvez seja mais interessante concentrar-se na afirmação mais ousada,
a de um suposto consenso entre tucanos e petistas:
Em política externa, ao longo desses vinte anos [ou seja
abarcando as administrações a partir de 1995], tucanos e petistas tiveram muito
em comum. Ambos apostaram na construção de coalizões regionais, concebendo o
Mercosul como instrumento para resistir à integração hemisférica proposta pelos
Estados Unidos e como instrumento para alavancar a regionalização do
capitalismo brasileiro. (...) Juntos, PT e PSDB rejeitaram as demandas dos
países vizinhos por instituições regionais densas, preferindo compromissos
minimalistas que permitissem ao Brasil reagir de modo unilateral quando fosse
útil ou necessário. (21)
O Mercosul, na verdade, foi concebido com outros objetivos, entre eles o
de inserir os países membros na economia global, ainda que inicialmente segundo
um modelo mercantilista e protecionista, que aliás só se reforçou ainda sob os
tucanos e se expandiu fortemente sob os lulopetistas. Foram os ativistas e
soberanistas da diplomacia lulopetista que aceitaram inserir o Brasil numa nova
rede de instituições regionais – primeiro a Casa, depois a Unasul, depois o
Parlamento do Mercosul, o Conselho de Defesa Sul-Americana, a Celac, com suas
derivações erráticas, diversos institutos ditos “sociais” ou políticos, no
Mercosul, e diversos outros arranjos exclusivos da região – o que,
contraditoriamente, reduzia o espaço de atuação unilateral do Brasil, ou seja,
de alguma maneira reduzia a sua soberania (seria a lei das consequências
involuntárias?).
O autor também acredita que os petistas e tucanos “evitaram abrir o
comércio a ritmo acelerado” (21), mas o fato é que foram os petistas que
fecharam o Brasil ao comércio regional e internacional, ao impulsionar uma
série de mecanismos de indução à oferta nacional – permitindo preço maior, em
até 25%, nas compras nacionais, políticas de conteúdo local, mesmo em
detrimento da qualidade e dos custos, regime automotivo totalmente
discriminatório, e por isso mesmo condenado na OMC – e ao proclamar
repetidamente a “defesa do emprego nacional”, o que na verdade escondia um
gigantesco esquema de corrupção – um dos maiores vistos no hemisfério, talvez
no mundo – que tinha pouco a ver com a promoção dos interesses nacionais, e
tudo a ver com o enriquecimento criminoso de grão-petistas e seus aliados entre
os capitalistas promíscuos selecionados para receber aportes generosos dos
bancos estatais, o que era feito justamente para desviar imensos recursos
públicos para o PT e seus líderes.
A frase mais surpreendente desse capítulo figura pouco adiante: “Em
questões de política externa, o longo ciclo socialdemocrata [sic] sob as
insígnias PT-PSDB assistiu a um consenso fundacional entre as elites
governistas” (21). Não se sabe bem quais elites governistas eram essas, pois
muitos membros da classe política de fato sucumbiram à hegemonia petista – e
agora se sabe como, ou por quê – mas não temos uma explicação sobre o que
significaria esse “consenso fundacional”. Que as chamadas “oposições” – na
verdade, um punhado de excluídos do poder, mais por sectarismo petista do que
por oposição verdadeira – tenham sido especialmente relapsas, ineptas, no
limite estúpidas, incapazes de exercer sua missão institucional de “oposição”,
isso é um fato, mas não se tem uma ideia clara de qual tipo de “consenso
fundacional”, seria esse, ou como e por que as duas forças teriam bebido de um
“poço comum”.
A interpretação desses vinte anos de lutas políticas surpreende mais ainda:
“Foi aquele consenso geral entre tucanos e petistas que produziu vitórias
eleitorais em 1994, 1998, 2002, 2006 e 2010. (...) Perdeu o atraso, ganhou o
progresso” (22). As afirmações surpreendem porque tanto o PSDB quanto o PT
tiveram de governar, o primeiro por sectarismo do segundo, este por escolha
deliberada, com as forças mais retrógradas e conservadoras (além de corruptas)
da política brasileira. O que houve, na verdade, foi o avanço do retrocesso,
ainda que os tucanos tenham conduzido reformas importantes nos arranjos
constitucionais e legais para inserir o Brasil na economia mundial, ao passo
que os petistas fizeram-no retroceder a extremos de nacionalismo exacerbado, o
que não se via desde o final do regime militar (modelo, aliás, apreciado pelos
petistas).
Na sua seção propositiva – “Condições para uma nova doutrina” –, Matias
Spektor acredita que a “construção de uma nova doutrina de política externa
demandará algum tipo de consenso suprapartidário” (22), mas não se sabe se este
é um desejo do ensaísta ou uma tendência natural do sistema político na área da
política externa. Há nesta seção menções a supostas “doutrinas” de política
externa em épocas históricas anteriores: no império, no desenvolvimentismo dos
anos 1950 e 1960, e durante o “autoritarismo industrializante do regime militar
de Médici e Geisel”. O fato é que tivemos inflexões doutrinais nesses dois
últimos períodos, embora elas tenham correspondido bem menos a elaboradas
posturas teóricas e mais a considerações de caráter prático elaboradas por
diplomatas e alguns líderes políticos.
O que segue é visivelmente ainda mais duvidoso:
FHC, quando era acadêmico, desenvolveu uma teoria de
relações internacionais [sic] para explicar a posição do Brasil no mudo e dela
derivar, já na presidência, proposições coerentes de política externa. Lula,
por sua vez, adicionou ao ideário de seu antecessor numerosas teses típicas do
pensamento de esquerda latino-americana. (22)
FHC talvez não tenha pretendido que sua tristemente famosa “teoria da
dependência” fosse “esquecida”, mas o fato é que essa construção do marxismo
light da esquerda acadêmica não influenciou em absolutamente nada sua política
externa, que foi essencialmente uma produção de diplomatas, feita por
diplomatas, conduzida pelos mesmos, com pequenos toques pessoais do presidente
(a retardada aceitação do TNP, por exemplo, ainda assim, largamente discutida
com seu chanceler diplomata). Lula, por sua vez, um “ignorante enciclopédico”
(como poderia dizer Millor Fernandes), seria, como foi, incapaz de agregar
qualquer tipo de tese a qualquer pensamento sobre a política externa, o que ele
nunca teve pessoalmente, a não ser sua “dívida” em relação a companheiros
castristas e bolivarianos, que ele zelosamente pagou ao longo dos anos. O seu
retrocesso a exageros retóricos e excessos infantis de terceiro-mundismo
explícito e de desenvolvimentismo cepaliano ultrapassado se deveu inteiramente
a ideólogos do PT e do próprio establishment diplomático, saudosistas de
doutrinas que já eram desde a sua origem anacrônicas, e que continuaram
anacrônicas durante toda a duração de seus dois mandatos, para serem ainda mais
aprofundadas no anacronismo pueril durante o mandato e meio de uma sucessora
particularmente inepta (talvez pour cause).
Uma visão externa do processo decisório em política externa do
lulopetismo, tal como expressa nessa seção de estabelecimento das “condições
para uma nova doutrina”, chega a este
tipo de afirmação:
Lula... concentrou a reflexão [sic] sobre política
externa em seu círculo mais íntimo, sobretudo em conversas com velhos colegas
de partido, como Marco Aurélio Garcia, José Dirceu, Luiz Dulci e Antonio
Palocci. Ainda no primeiro mandato, porém, ganhou ascendência o chanceler Celso
Amorim, dando forma diplomática – e por vezes disciplinando àquilo que emanava
do círculo do presidente. (23)
A afirmação é igualmente surpreendente, pelo que ela sobrestima o papel
de Dulci e de Palocci na política externa, e deixa completamente em silêncio o
papel várias vezes decisivo de seu amigo Luiz Gushiken – chefe da propaganda
política do governo, líder de um mal denominado “Núcleo de Assuntos
Estratégicos” e um dos promotores da aventura haitiana – e sobretudo do
principal guru ideológico da diplomacia lulopetista, o diplomata e
secretário-geral do Itamaraty (depois em outros cargos), Samuel Pinheiro
Guimarães, o único, aliás, a escrever abundantemente sobre as principais opções
em política externa dos companheiros. Junto com o chanceler, ele constituiu um
dos principais sustentáculos “teóricos” do lulopetismo diplomático (if any), uma vez que o longevo assessor
presidencial para a política externa – várias vezes chamado de “chanceler para
a América do Sul” – se revelou incapaz de traçar uma rationale para a política
externa sectária operada, a não ser o fato de ter trabalhado consistentemente
em favor de seus mestres cubanos e outros aliados regionais (entre eles as Farc
e outros grupos pertencentes ao Foro de São Paulo, uma construção dos comunistas
cubanos para controlar os, e se aproveitar dos aliados políticos na região,
tarefa cumprida com o zelo exemplar de um apparatchik stalinista).
O próximo passo do ensaísta consiste em perguntar como pode ocorrer o
processo de “geração de ideias e conceitos” para uma “reflexão estratégica”
voltada à formulação dessa nova “doutrina” de política externa. Na penúltima
seção do capítulo comparecem os “parâmetros para a reflexão”. Existe aqui uma
tentativa de induzir essa reflexão na direção de uma pesquisa empírica sobre os
“efeitos redistributivos” da política externa, e o convite é formulado
explicitamente:
É chegada a hora de entender de que forma a política
externa impacta sobre as trajetórias de pobreza e desigualdade com base em
estudos empíricos bem embasados. Uma iniciativa dessa natureza é totalmente
viável, pois há recursos humanos e materiais para implementá-la. Além disso, as
novas tecnologias permitem exercícios antes impensáveis.
Basta escolher algumas áreas da agenda externa para
começar. (24)
Parece duvidoso que uma agenda de política externa possa ser modulada
pelo país em função de seus supostos efeitos redistributivos, mas ainda que
isso pudesse ocorrer, cabe reconhecer que não se trata de algo transportável
para a prancheta do estrategista acadêmico, desvinculado do trabalho concreto de
condução operacional da diplomacia, num contexto em que grande parte dessa
agenda vem impulsionada – quase imposta, na verdade – de fora, com pouca margem
de manobra ou espaços de liberdade para o país exercer qualquer capacidade de
liderança (exceto, em escala reduzida, em nível regional). Parece ter sido uma enorme
ilusão da diplomacia lulopetismo, com uma grande dose de irrealismo no seu
ativismo pirotécnico, achar que o Brasil seria capaz de moldar a política de
sócios improváveis como podem ser os do Ibas ou os do Brics (e mais ainda a de
alguns dos seus aliados “aloprados” da própria região).
Nas suas “Recomendações” (p. 25), o autor sugere que:
... chegou a hora de a sociedade brasileira conceber
novas ideias e conceitos que possam, no futuro próximo, contribuir para um
processo de renovação doutrinária da política externa brasileira. Afinal, a
doutrina de atuação internacional desenvolvida durante os últimos vinte anos de
socialdemocracia tucano-petista caducou, devido a transformações políticas
domésticas e globais.
Recomenda-se que esse processo de revisão comece de
imediato, com a promoção de estudos empiricamente embasados e de debates em todos
os setores da vida pública nacional. Uma empreitada desta natureza não pode nem
deve ficar confinada ao governo ou à academia, mas ter capilaridade em toda a
comunidade brasileira de política externa.
Recomenda-se também que esse esforço leve em conta o
impacto redistributivo da política externa. (...) ... para um país com nossos
índices de pobreza e desigualdade, e num cenário de escassez orçamentária e
aperto fiscal intenso, tal preocupação precisa ser cada vez mais explicitada.
Independentemente do fato
de se considerar tal chamamento ao grande esforço de inspiração tarefa
essencialmente autoaplicável, ou, ao contrário, uma proposta de formulação de
novas posições em círculos bem mais amplos, virtualmente nacionais, o que se
sugere, na verdade, é um esforço coletivo de debate sobre as bases conceituais
e empíricas da política externa brasileira, missão raramente operada fora do
establishment relativamente restrito da diplomacia (basicamente a profissional,
mas subsidiada por modestas adições de um círculo ainda mais restrito de
especialistas e “ativistas”) e ainda mais difícil de ser conduzida na presente
conjuntura de transição política para um futuro ainda largamente indefinido,
dadas as tradicionais e recorrentes recaídas do eleitorado nacional e regional
no mais anacrônico populismo regressista (como aliás já foi, de certa forma, o
próprio lulopetismo em geral, e especialmente o diplomático). Nessas condições
nebulosas de governança política nacional, não se vê muito bem como a
“sociedade terá melhores instrumentos para julgar as opções externas de seus
governantes”, como pretende o ensaísta (p. 25). Tampouco se vê claramente como
os “políticos profissionais” possam estar “devidamente munidos”, “com base
nesses dados”, que seriam supostamente extraídos de uma “nova doutrina de
política externa” fundamentada em “dados empíricos”, “para ir às ruas pedir o
voto do eleitor”.
Ainda que esta possa ser
“a maneira mais adequada para fazer política externa numa democracia” (25),
como finaliza o autor, considero este tipo de postura pouco realista, em vista
das condições deploráveis da governança nacional, dividida entre adaptações ad
hoc a programas de ajuste absolutamente indispensáveis para vencer a pior
recessão de toda a nossa história e novas aventuras populistas apontando para a
próxima campanha presidencial dentro de pouco mais de um ano. O que virá em
2019 ninguém, honestamente, é capaz de prever. A diplomacia profissional parece
apta a se adaptar aos cenários os mais improváveis, com uma flexibilidade que
pode parecer resignação. Existem outros caminhos aos pensadores da diplomacia?
Boa pergunta...
3) “Análise estratégica para as relações internacionais
do Brasil”, Matias Spektor
O capítulo final, do mesmo
ensaísta, tem a pretensão de “antecipar tendências e problemas emergentes no
sistema internacional, e calcular o risco embutido em cada uma das opções
disponíveis para o país” (133).
Como isso se daria? “Para
isso, alguns países utilizam de forma explícita os instrumentos hoje
disponíveis para a análise estratégica aplicada aos assuntos da política
externa, economia global, defesa e segurança internacionais” (133). Esse tipo
de atividade não se confunde “com as tarefas de planejamento diplomático
típicas do trabalho cotidiano de uma chancelaria”, como existe, no caso brasileiro,
uma Secretaria de Planejamento Diplomático.
Para o autor, o Brasil
“sofre de um déficit de longa data de análise estratégica em política externa,
economia global, segurança e defesa internacionais” (134), o que parece
fundamentalmente correto, ainda que diplomatas e militares tenham mantido
exercícios constantes nessa vertente. Mais correta ainda parece a frase
seguinte, segundo a qual “a classe política brasileira tem sido incapaz de
detectar e entender, a tempo e com precisão, as grandes transformações globais
que moldam a vida pública nacional” (134).
A despeito disso, o autor
acredita que a “dificuldade em antever surpresas estratégicas não é inépcia
governamental, mas algo mais complexo” (134). O que seria então? Fechamento,
introversão, monolinguismo. Tudo isso existe, mas, basicamente:
O que falta ao governo brasileiro é um modelo de gestão
de conhecimento sobre política e economia internacionais capaz de absorver e
integrar a massa de informações que hoje se encontra dispersa. (135)
Com todas essas
deficiências, o autor acredita que seria “fácil por um fim à desarrumação
custosa” que hoje caracteriza essa área. Ele se dedica, então, a apontar os
“obstáculos institucionais e políticos à construção de um sistema de análise
estratégica”, focando em alguns “instrumentos de baixo custo e alto impacto que
poderiam ajudar a reverter o quadro” (135).
Coordenação estratégica
“Não existe hoje uma instância com poderes delegados da presidência da
República para coordenar o trabalho de reflexão prospectiva dos numerosos
órgãos governamentais que conduzem algum tipo de atividade internacional. Ou
seja, não há uma estrutura análoga ao National Security Council (Estados
Unidos), ao Prime Minister’s Strategy Unit (Reino Unido) ou aos conselhos mais
ou menos informais que alimentam com análises estratégicas o processo decisório
dos chefes de governo em países como Rússia, Índia e China” (135).
Ciência de dados
A tecnologia da informação não é aplicada à política externa, pois “a
vasta maioria de informações da série telegráfica do Itamaraty é arquivada sem
nunca ser processada ou submetida a cruzamentos temáticos” (136).
Massa crítica
Não existe no Brasil uma “comunidade vibrante de relações internacionais
e política externa fora das estruturas de governo” (136). Pior: a comunidade
acadêmica que existe “não oferece treinamento profissional em análise de risco,
elaboração de cenários ou análise estratégica internacional”.
Cultura diplomática
“A cultura diplomática é rica e fonte de enorme vantagem comparativa
para o Brasil no sistema internacional” (p. 136). No entanto, algumas
características “dificultam o nascimento de uma cultura arraigada em análise
estratégica”:
1) valoriza a ação prática em detrimento do trabalho analítico;
2) existe um culto das gerações mais antigas e pouca interação com
instituições de fora do país;
3) existe aversão ao dissenso e adesão ao pensamento grupal;
4) existe mais burocracia administrativa do que reflexão estratégica no
dia a dia do diplomata;
5) a hierarquia estrita traz coerência mas também enormes custos:
“Existem barreiras tácitas e explícitas à cultura de questionamento e
criatividade que é essencial a qualquer trabalho sério de análise estratégica”
(p. 137).
No período recente, a concentração do trabalho diplomático no gabinete
do ministro de Estado tornou o ambiente menos deliberativo:
Mesmo embaixadores graduados furtam-se muitas vezes de discutir
com franqueza suas perspectivas divergentes da linha oficial do momento. (138)
Além de empobrecimento intelectual, esse modo de lidar
com as questões diplomáticas introduz riscos adicionais. O mais gritante é um
estilo organizacional avesso às más notícias, onde funcionários que identificam
problemas graves temem que a mera comunicação formal desses problemas a seus
superiores possa ter efeito deletério sobre suas próprias carreiras. O
resultado disso pode ser catastrófico. Um exemplo recente foi o episódio da
fuga do senador Roger Pinto da embaixada em La Paz... Outro exemplo foi o
atabalhoado processo de evacuação do pessoal da embaixada do Brasil no Mali...
[Nos dois casos, alertas prévios] não encontraram canais abertos [em Brasília].
(138)
As metodologias para paliar esses problemas existem e seriam compostas
de:
1) cenários alternativos, ou seja, conceber os cenários mais plausíveis;
2) identificação de
tendências, para emitir alertas quanto a possíveis crises;
3) testes de resiliência:
colocar um grupo para defender a posição do governo e um outro, fazendo o
“advogado do diabo”, para atacá-la: “o exercício ajuda a identificar
contradições, raciocínios circulares e áreas de fraqueza ou inconsistência nas
posições oficiais” (140).
4) ciência de dados
aplicada à diplomacia: automatizar o processo de análise dos documentos
oficiais produzidos nos postos;
5) identificação de
vulnerabilidades, mediante simulações a partir de políticas ou medidas
alternativas aplicadas em caso de “cenários ambíguos e surpreendentes” (141).
6) red teaming, ou pensar como o “inimigo”, por meio de “especialistas
dedicados a questionar as políticas oficiais” (142).
Esses são os instrumentos
de análise estratégica que deveriam, segundo Matias Spektor, dotar a classe
política e os próprios diplomatas de um sistema de análise estratégica aplicada
à política externa. Mas, como ainda indica o autor:
Nenhum esforço dessa natureza será capaz de vingar sem
vínculo direto com a presidência da República. Somente ela pode garantir uma
visão de conjunto, dirimir conflitos entre os ministérios, agências e
autarquias que compõem o governo brasileiro e cobrar resultados. Esse trabalho
poderia ser conduzido pela presidência e ser secretariado pela SPD, do
Ministério das Relações Exteriores. O órgão teria autoridade para formar
forças-tarefa compostas pelas equipes de cenários das forças armadas, os
pesquisadores do IPEA, do IBGE e do Banco Central, mobilizando a ABIN, a
Petrobras, o BNDES, a Embrapa e quaisquer outros órgãos do governo brasileiro.
(142)
(...)
Recomenda-se ainda que o grupo responsável por esse
esforço estabeleça contato regular, por meio de teleconferência, com os
principais especialistas internacionais nas áreas em questão. (...)
Recomenda-se também ao Itamaraty instituir um sistema
para canalizar o dissenso em questões substantivas. Bastaria para isso
estabelecer foro eletrônico sob a supervisão da SPD, ao qual diplomatas
profissionais poderiam encaminhar considerações de caráter estratégico de forma
anônima, caso essa seja a preferência dos participantes. (143)
Aparentemente, as
considerações acima, feitas no segundo semestre de 2016, anteciparam,
involuntariamente, a política atual, proclamada pelo menos oralmente, de favorecer
uma atitude à la Mao Tsé-tung (da
segunda metade dos anos 1950): “Que floresçam as cem flores!” O espetáculo pode
ser bonito, mas depende da perspectiva...
Por fim, dispenso-me,
neste momento, por falta de tempo, de examinar cada um dos capítulos setoriais
– sumariados no já citado trabalho: “Dez desafios da política externa brasileira – CEBRI”, Brasília,
10 de fevereiro de 2017 (disponível no link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/02/dez-desafios-da-politica-externa.html) – que focam nas questões
seguintes: atração de investimentos; o problema do comércio exterior; a
diplomacia “anticorrupção” (sic); segurança e defesa; a nova geopolítica da
energia; bens públicos e grupos de interesse e sua interação com a política
externa; diplomacia da saúde global (ou falta de?); e promoção da democracia e
dos direitos humanos. Uma leitura mais
atenta de cada um desses oito capítulos adicionais permitirá uma avaliação
crítica no momento oportuno. Cada um a seu tempo...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 11 março de 2017, 19 p.
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