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segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Manual de diplomacia, 5: interesse nacional - Paulo Roberto de Almeida

(continuidade do Manual de Diplomacia 4)

Manual de diplomacia prática, 5: interesse nacional
Paulo Roberto de Almeida 
Tão difícil de ser definido, quanto são diversas as visões dos grupos que disputam o poder político, possuindo múltiplas facetas e suscetível de ser apropriado por interesses particularistas, o interesse nacional costuma ser identificado com os chamados objetivos nacionais permanentes. Estes podem ser representados resumidamente pelos seguintes elementos: defesa da independência nacional; soberania na tomada de decisões estratégicas; garantia de aprovisionamentos essenciais à economia nacional (entre eles energia, bens primários e segurança alimentar); preservação do território em face de intrusões estrangeiras; cooperação com os demais membros da comunidade internacional na manutenção de um ambiente de paz, da segurança e da estabilidade, com vistas ao desenvolvimento econômico e social; preservação dos direitos humanos e manutenção do sistema democrático no contexto regional e mundial (embora este último objetivo não seja ainda consensual, isto é, ele é passível de controvérsia quanto à relevância de sua aceitação no plano internacional).
Interesse nacional
Trata-se, portanto, de uma definição ampla, que incorpora um elemento relativamente novo nesse tipo de discussão, qual seja, o do ambiente externo politicamente democrático e economicamente aberto como constituindo um componente importante do interesse nacional. Não se trata de um requisito essencial, posto que o sistema internacional comporta os mais variados tipos de regimes políticos e as mais diversas formas de “legitimidade” institucional, mas este elemento pode representar uma evolução positiva no plano do direito internacional.
De fato, a incorporação dessa nova dimensão – que amplia a antiga noção, estreitamente doméstica, desse interesse – pode não ser aceita pelos defensores da noção tradicional do interesse nacional, que colocava o regime político e o sistema econômico na esfera estrita das escolhas nacionais, em nome de argumentos soberanistas. Em todo caso, essa ampliação parece coadunar-se inteiramente com o novo ambiente internacional colocado sob o signo da interdependência de valores e de sistemas nacionais. Trata-se de uma nova fronteira do direito internacional que levará algum tempo para receber acolhimento no plano multilateral, mas que poderá ser implementada progressivamente.
Menos de três gerações atrás, isto é, na primeira metade do século XX, esse ambiente aberto e democrático foi ameaçado e desafiado – de fato, violentamente contestado – por regimes ditatoriais, expansionistas e imperialistas, que tentaram construir sistemas fechados ao diálogo democrático, claramente contrários aos direitos humanos e baseados na submissão de outros povos e nações aos seus desígnios totalitários. Os fascismos italiano e alemão e o militarismo japonês, junto com o comunismo de tipo soviético, chegaram a “oferecer” modelos de gestão econômica fortemente baseados no dirigismo estatal, no protecionismo e, sobretudo, na submissão pela força de nações independentes, colocando, portanto, em risco, o interesse nacional de diversos Estados. 
A derrota dos três primeiros regimes totalitários, a um imenso custo para os regimes democráticos, conduziu à reorganização da ordem política mundial, formalmente consubstanciada na ONU (e suas agências especializadas). O totalitarismo de tipo soviético desapareceu nas dobras da história, vítima de auto-implosão – por força de suas próprias “contradições internas”, diriam os marxistas – mas resquícios dele permanecem aqui e ali, sobretudo em algumas mentes emboloradas. O fato é que regimes ditatoriais continuam, no entanto, existindo ainda hoje e, como tal, representam sempre uma ameaça de instabilidade e de ruptura da paz internacional.
O elemento relevante a ser destacado aqui, em relação a essa noção ampliada do interesse nacional, é que este é suscetível de ser ameaçado por um ambiente internacional hostil, criado por Estados que se colocam à margem do direito internacional, mas que teoricamente se refugiam no princípio da soberania absoluta, tal como consagrado na Carta da ONU. O interesse nacional comandaria, portanto, uma evolução do direito internacional na direção do requisito democrático e do respeito aos direitos humanos como critérios de inclusão e de legitimidade no sistema internacional. Trata-se de uma área de fronteira que caberia explorar numa definição de interesse nacional que integre uma política externa avançada, progressista e humanitária.
No caso dos demais elementos do interesse nacional que podem ser caracterizados como propriamente internos – quais sejam, a defesa da independência nacional, a soberania na tomada de decisões estratégicas e a garantia de aprovisionamentos essenciais à economia nacional (entre eles energia, bens primários e segurança alimentar) – trata-se, obviamente, de objetivos que devem ser cuidadosamente avaliados em função das novas realidades criadas pela interdependência econômica global, cuja principal característica é precisamente a integração dos mercados. 
Quando das primeiras formulações do interesse nacional, no período do imediato pós-Segunda Guerra, as mentalidades e concepções em torno das questões acima ainda estavam poderosamente influenciadas pelo ambiente econômico geral, pelos comportamentos individuais e pelas políticas públicas pensadas e implementadas nos anos 1930 e no contexto da própria guerra, quando a segurança nacional era definida em termos estreitamente nacionais, reduzindo-se ao mínimo qualquer dependência estrangeira. Não se deve tampouco descurar o fato de que, na sequência da Primeira Guerra, das difíceis tentativas de restauração do padrão monetário anterior ao grande conflito e do fenômeno da intervenção generalizada dos governos nos mecanismos econômicos essenciais, a reputação do capitalismo e dos mercados livres enquanto criadores de emprego e riqueza encontrava-se singularmente diminuída, dando espaço às alternativas dirigistas no plano interno e ao retorno do mercantilismo no plano externo. 
Mesmo sem aderir ao padrão coletivista de organização econômica – tanto em sua modalidade fascista quanto soviética – a maior parte dos governos ocidentais aderiu a mecanismos de “mão visível” do Estado que se inspiraram, ou não, nas recomendações de Keynes. Outra não foi a orientação da principal vertente keynesiana na América Latina, o cepalianismo ou prebischianismo, dominante ideologicamente na região durante largas décadas no pós-guerra e influente na determinação de políticas públicas, macroeconômicas ou setoriais. 
Esses três objetivos possuem, em todo caso, estatutos bem diferentes, segundo que a abordagem seja feita com base em elementos objetivos, relativamente à percepção de alguma ameaça à independência nacional, ou de alguma diminuição potencial de soberania na tomada de decisões estratégicas no plano nacional, ou segundo um entendimento subjetivo da matéria, feito com base em possibilidades teóricas dificilmente realizáveis na prática. Ameaças e fragilidades devem ser avaliados objetivamente, com base numa análise realista do ambiente externo e sua evolução prospectiva. Ainda que os dispositivos militares representem uma espécie de seguro preventivo – por vezes muito custoso – na garantia da independência e na preservação da soberania, avaliações equivocadas podem representar sobre-investimento indevido em determinados fatores dissuasórios ou acumulação de ferramentas inadequadas ao seu emprego mais provável.
Quanto à garantia de aprovisionamentos essenciais à economia nacional – segurança alimentar, energética e em insumos propriamente estratégicos, ou seja, relevantes para a indústria de defesa –, pode-se argumentar que o mundo mudou bastante desde as disputas por fontes de matérias-primas, ainda visível no entre guerras. Por outro lado, tampouco existe, no mundo atual, insegurança alimentar, apenas protecionismo indecoroso travestido de interesse nacional. 
Com a possível exceção de determinados componentes militares – que mesmo assim podem encontrar substitutos em outros mercados –, a maior parte dos bens anteriormente considerados “estratégicos” pode ser objeto de transações comerciais a qualquer momento em mercados abertos ou sob contratos com fornecedores ou cartéis de produtores. A escassez relativa não se explica mais por restrições de caráter político, mas por problemas temporários de distribuição ou devido a fatores extemporâneos de natureza não política. Daí que uma das melhores garantias de aprovisionamento adequado na maior parte dos bens e serviços que movimentam uma economia moderna seja a manutenção de um ambiente aberto e propenso à intensificação das trocas comerciais no mais alto nível permitido pelo equilíbrio de fatores, ou seja pela administração sustentável da balança de transações correntes. Países com alto volume de trocas, nos dois sentidos, também costumam ser os menos dependentes de todos, justamente com base na interdependência complexa de uma economia globalizada. 
            (continua)

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