Dou início aqui a uma série de onze postagens, a partir de um trabalho de natureza conceitual feito uma década atrás, mas que se mantem praticamente válido em função de sua natureza conceitual, justamente.
Não pretendo falar do Brasil, mas vários argumentos poderiam ser aplicados à diplomacia lulopetista, essa coisa bizarra que desabou sobre o Brasil entre 2003 e 2016.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1 de outubro de 2019
Manual de diplomacia, 1: clareza de intenções
Paulo Roberto de Almeida
Existem diversos elementos do “jogo diplomático” que devem ser considerados em qualquer política externa que se pretenda responsável. O primeiro deles é uma visão clara sobre os objetivos nacionais.
Clareza de intenções.
Representa dispor de objetivos expressamente definidos para a diplomacia nacional e, como tal, claramente descritos, não de modo vago e genérico, mas de maneira objetiva, tocando nos pontos relevantes do que se pretende fazer. Todo e qualquer governo precisa ter uma ideia clara de como o país se insere no chamado “cenário internacional”, quais são os limites impostos à ação internacional do país e quais são os seus objetivos de política externa. Conhecer os limites da ação diplomática permite quantificar os meios a serem mobilizados, o que, por sua vez, ajuda no processo de definição de um conjunto de objetivos nacionais estrategicamente viáveis.
A política externa costuma ser considerada como a expressão de sua política interna, continuada por outros meios, num sentido figurativamente “clausewitziano”; mas esse tipo de correlação “causal”, quase mecânico em sua formulação, não é necessariamente válido, pois a política externa pode estar claramente dissociada de seus fundamentos internos: um governo democrático pode perfeitamente projetar-se externamente de modo imperialista – como foi o caso, por exemplo, do sistema colonial britânico, o mais extenso territorialmente no decorrer da era moderna –, assim como uma autocracia pode conduzir uma política externa sensata, moderada e respeitadora do direito internacional – como pode ser, teoricamente, o caso da China.
Usualmente, em regimes democráticos, os objetivos diplomáticos de um determinado governo são expressos ao início de um mandato governamental e são, direta ou indiretamente, enunciados no discurso inaugural do mandatário ou em sua mensagem ao parlamento. Trata-se de um equivalente a um “manifesto ao mundo”, no qual os responsáveis pela política externa – o chefe do executivo ou o encarregado da diplomacia – expõem de modo claro o que o país (ou o seu governo) pretende fazer no plano internacional, quais são as suas prioridades no campo das relações exteriores e como eles pretendem alcançar tais objetivos (embora este aspecto, relativo a procedimentos, nem sempre é claramente expresso).
Uma determinada política externa pode ser considerada “ativista” quando o país tenta coordenar esforços políticos, econômicos, sociais e culturais (eventualmente militares, também) para, em coordenação com outros países ou isoladamente, influenciar a composição da agenda internacional e tenta moldar, pelo menos em parte, a tomada de decisões no âmbito global. Uma política mais passiva seria refletida em esforços algo similares para apenas e tão somente preservar o status quo. Nos exemplos conhecidos de “mensagens sobre o estado da União” – como ocorre anualmente no caso dos EUA – figura sempre um capítulo importante tratando das relações exteriores do país em questão e suas prioridades diplomáticas correntes; esse capítulo pode, ou não, refletir uma atitude mais ativista ou relativamente conformista em relação aos problemas mundiais e aos desafios para o próprio pais.
Poucos governos não dispõem de um “manifesto” desse tipo, embora a clareza desses objetivos e sua adequação ao chamado interesse nacional possam variar em situações concretas, dependendo, basicamente, da qualidade cognitiva dos dirigentes, de sua percepção correta quanto ao interesse nacional percebido e, em última instância, da capacidade de fixar metas de política externa que correspondam, em grande medida, aos objetivos tidos como consensuais pela maioria dos cidadãos ou, pelo menos, por parte significativa dos tomadores de decisão. Determinados objetivos da agenda diplomática podem não ser exatamente consensuais, ou podem representar ruptura com tradições ou posições longamente mantidas pela diplomacia profissional, mas sua implementação pode ser alcançada se exposta claramente aos responsáveis pelo processo burocrático e por sua condução no plano externo, desde que guardando alguma correspondência com a capacidade real do país.
Em alguns casos, objetivos particularistas, definidos partidariamente – isto é, por uma parte, tão somente, da opinião pública nacional –, podem obscurecer a noção exata do que sejam os objetivos nacionais e, através deles, metas precisas para a política externa. Pode ocorrer também, embora seja mais raro, que os objetivos de política externa estejam em claro descompasso com as capacitações materiais e políticas do país em questão: alguns líderes de tendências caudilhistas, por exemplo, vivem de bravatas em política externa, sem condições de implementar o que prometem. Neste caso, pode ocorrer uma falta de sincronia entre o ambiente interno e o externo, o que invalida ou restringe a consecução dos objetivos nacionais no plano externo. O mais importante, porém, na construção de confiança, tanto no entorno regional como no plano do sistema internacional, é a transparência que o país consegue demonstrar por meio desses “manifestos” de intenção: ele ganha em credibilidade e reputação quando estabelece claramente objetivos e prioridades de política externa. Como parece óbvio, as ações subsequentes precisam guardar claramente relação com os objetivos declarados, sob risco de perda de credibilidade ou de prestígio no ambiente externo.
(continua...)
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