O grande mestre cassado pela ditadura resolveu o enigma do nosso fracasso como país, como nação, como Estado: a subalternidade do município como foco central da vida da nação. Ninguém vive na União, ninguém vive nos estados, todos vivemos num município, daí a importância fulcral da funcionalidade e da centralidade administrativa do município para a vida de cada um de nós. No entanto, o município foi sempre esquecido nos arranjos constitucionais e colocado apenas a serviço das oligarquias, os coroneis (e existem até hoje, sob formas aparentemente modernas). Daí também a grande diferença, entre termos de desenvolvimento, entre, de um lado, as formações políticas anglo-saxãs, cuja democracia, cuja vida, cujo funcionamento parte da aldeia, do village, no máximo do county, do condado, para depois se projetar em esferas mais amplas, e de outro lado, nossos municípios que praticamente não têm vida própria, nem finanças próprias, tudo dependendo do estado ou da União. Vai ser preciso refundar a nação.
Paulo Roberto de Almeida
Embargos Culturais
Os vários legados de Victor Nunes Leal
Victor Nunes Leal (1914-1985) foi infatigável estudioso, de quem se dizia acordar às duas horas da madrugada para preparar suas aulas de Direito Constitucional. Doutor em Ciências Sociais, Victor Nunes Leal desenvolveu multifacetária atividade. Foi advogado, jornalista, ministro do Supremo Tribunal Federal, consultor-geral da República, chefe da Casa Civil (no Governo Juscelino). Era um mestre, no sentido mais puro da expressão. Afastado do STF pelo Ato Institucional em 1969, permaneceu na vida pública, advogando, orientando, ensinando, combatendo o autoritarismo e o centralismo.
O insuperável Roberto Rosas, em "Perfis do Mundo Jurídico"[1] sintetizou as inúmeras habilidades de Nunes Leal. O tema das súmulas, hoje central na expressão prática da vida jurídica, que Roberto Rosas também tratou em livro fundamental[2], radica, objetivamente, em legado de Nunes Leal, mineiro da Carangola. Metódico, Nunes Leal reunia e resumia em cadernos (que já vi expostos na biblioteca do STF) pontos convergentes entre temas discutidos e as várias decisões proferidas. Sintetizava uma linha de pensamento, que reduzia em fórmula rápida e direta.
Emendou-se o Regimento do STF, concebendo-se um "enunciado de súmula", decidido pelo Plenário, proposto por uma então criada Comissão de Jurisprudência, ou por qualquer dos ministros, nesse caso, com parecer da Comissão. Nesse tema, há interessante estudo de Marcus Gil Barbosa Dias, que foi assessor de Sepúlveda Pertence e que mapeou a luta de Nunes Leal contra o desconhecimento que o STF tinha, em relação às próprias decisões[3].
Nunes Leal batiza a biblioteca do STF e o centro de estudos da AGU. Era vice-presidente do STF quando foi compulsoriamente aposentado pelo governo militar. As emblemáticas decisões de Nunes Leal foram comentadas por Fernando Menezes de Almeida, autor de preciocíssimo Memorial Jurisprudencial desse combativo juiz e advogado[4].
Esse estudo inicia-se com comentários ao decidido no Recurso Extraordinário 54.190; segundo Fernando Menezes de Almeida, "trata-se de acórdão cujo interesse diz respeito não à questão de fundo debatida, mas à invocação de determinada Súmula, o que, no caso, deu ensejo a amplos debates sobre o modo de se aplicarem as Súmulas e, em especial, de se as interpretar"[5]. Essa decisão, penso, é a certidão de batismo das súmulas, em sua dimensão operacional. É o antepassado mais vivo do inciso IV do art. 927 do atual Código de Processo Civil.
O municipalismo é outro tema central em Nunes Leal. Chamo a atenção para O Município e o Regime Representativo no Brasil — Contribuição ao Estudo do Coronelismo, publicado em livro importante para compreensão da realidade brasileira, Coronelismo, Enxada e Voto[6]. No núcleo do pensamento de Nunes Leal, o estigma da centralização, que tem marcado nossa experiência política. O fracasso do modelo dos donatários (criado em 1532) determinou a criação do sistema do governador-geral (com sede em Salvador). Salvo pouquíssimas manifestações nativistas (Emboabas, Mascates), quase nada se fez, em termos de autonomia municipal.
A experiência joanina (1808-1821) deu muita importância para o Rio de Janeiro, em detrimento dos demais lugares do país. O texto constitucional de 1824 desconhecia a vida da vila, circunstância mantida pelo Ato Adicional de 1834, em que pese pregações descentralizadoras do Padre Diogo Antônio Feijó. O texto republicano de 1891 (reformado em 1926) possibilitou o controle do município pelo poder central, no contexto da política do café-com-leite e do coronelismo, ambiente político e eleitoral pesquisado por Nunes Leal, que estudou também a estrutura normativa da carta de 1946, quando ao município já se outorgavam poderes, competências, características, ainda diminuídos por mentalidade que tudo outorga ao federal, substantivo que usamos muitas vezes como adjetivo.
Para Nunes Leal a propriedade da terra é fator de liderança política local, de onde a relação entre poder e política. É que tal propriedade é historicamente concentrada, determinando dicotomia na composição das classes na sociedade rural. O chefe construía poder a partir do meio agrícola, exercendo-o no meio urbano, que controla à distância, seja da propriedade ou da capital, estadual ou federal.
É no município, no entanto, que se desenvolve a vida real. É no ambiente cotidiano que se aferem serviços públicos, pelo que elenco de competências identificadas em textos normativos apenas contemplam realidade fática. Emperrada pela política tradicional da República Velha, a vida municipal encalacrou-se entre valores como moralização e eficiência, nos primeiros dias do golpe de 1930. Porém o municipalismo foi sufocado com a carta de 1937, que consagrou as orientações de Francisco Campos, suprimindo o princípio da eletividade dos prefeitos. Ao não mencionar o município, o modelo republicano de 1891 promoveu um silêncio enigmático, esfíngico, que possibilitou consolidação normativa, que ensejou o esvaziamento do poder local.
Nunes Leal identificou pontos essenciais que informam a trajetória do municipalismo brasileiro. Constatou centralização arbitrária, que faz do município meio e não fim, tornando a vida local espaço de manobra para poder distante. Percebeu que injunções locais eram trianguladas por polos de poder (vinculado à posse da terra), de submissão econômica e de procedimento eleitoral falsificado, o que justificou título de seu livro, Coronelismo, Enxada e Voto.
Compreendeu que todas as funções da vida prática se dão no município, que detém fins e por isso carece de deter meios também. Observou que a eletividade é princípio sonegado, em nome de uma moralidade volátil, distante. Sublinhou que o silêncio normativo paralisa o município, tomado por tradição histórica que respeita o macro, o grande, consubstanciado no poder central. Despreza-se o micro, o local, onde se vive cotidiano que tem massacrado os mais carentes, cujos gritos e soluços não provocam ouvidos moucos de sistema centralizado.
É que forças centralizadoras se oxigenam no município, aos quais retribuem com o esquecimento e atitudes interesseiras, como constatado por Nunes Leal. Coronelismo, Enxada e Voto é um livro clássico, que exige permanente atenção, leitura e releitura. Os tempos mudaram, porém, muitas estruturas ainda nos marcam profundamente.
De igual modo, as súmulas, que antecedem súmulas vinculantes e precedentes qualificados, e tantas figuras contemporâneas, a exemplo de incidentes de resolução de demandas repetitivas e de incidentes de assunção de competência. Foi Fernando Almeida quem coletou passagem de Aliomar Baleeiro no MS 15.866, que se referiu a Nunes Leal como “a própria jurisprudência viva do Supremo Tribunal Federal andando pelas ruas”.
[1] Roberto Rosas, Perfis do Mundo Jurídico, Ribeirão Preto: Migalhas, 2011.
[2] Roberto Rosas, Direito Sumular, São Paulo: Malheiros, 2012. Roberto Rosas dedica esse livro de leitura obrigatória entre outros, para Victor Nunes Leal.
[3]https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/98700/Marcus%20Gil%20Barbosa%20Dias.pdf?sequence=1.
[4] Fernando Menezes de Almeida, Memória Jurisprudencial- Ministro Victor Nunes Leal, Brasília: STF, 2006.
[5] Fernando Menezes de Almeida, cit., p. 11.
[6] Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto. São Paulo: Alfa Ômega, 1976.
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