sexta-feira, 1 de agosto de 2025

O Direito e a Força - Sérgio Moreira Lima (O Estado de S. Paulo)

O Direito e a Força
Sérgio Moreira Lima*
O Estado de S. Paulo, 1/08/2025

        As decisões anunciadas pelo Presidente Trump representam atentado injustificado e sem precedentes contra o Brasil, que construiu um legado de paz e segurança nas Américas com diálogo e cooperação. Reconhecido por sua contribuição ao multilateralismo e a ordem internacional baseada em normas, o Brasil não merece a sanção. Ela agride o Estado, o direito, a democracia e a amizade entre os povos das Américas. A maior ironia é que ela se dirige a um parceiro com o qual os EUA compartilharam momentos decisivos da História e que tem contribuído para o progresso e a estabilidade na região.
        Os EUA foram o primeiro a reconhecer, em 1824, a independência do Brasil. A decisão revestiu-se de simbolismo: a chamada doutrina Monroe foi anunciada em 1823. E já, em agosto de 1822, D. Pedro, príncipe regente, e José Bonifácio, Ministro do Reino e chanceler, enviaram carta a Monroe com vistas ao estabelecimento de relações diplomáticas. Apesar do legado ambíguo de proteção e ingerência do monroísmo, o Patriarca da Independência inaugurou relação de confiança mútua com os EUA.
        Na II Conferência de Paz da Haia (1907), o Brasil resgatou o princípio da igualdade soberana dos Estados, que, mais tarde, serviu de pilar para criação da ONU. Ao negociar com dez países vizinhos as fronteiras, o Brasil, de Rio Branco, erigiu, no início do século XX, no Hemisfério Ocidental, um marco ao Direito Internacional, que responde pela ausência de conflitos bélicos entre os países sul-americanos.
    A Aliança não escrita com os EUA contribuiu para esse processo. Historicamente, o Brasil logrou permear o unilateralismo de Monroe com princípios e valores que ajudaram a moldar o Pan-americanismo. Foi o único país da América Latina beligerante nas duas Guerras Mundiais. O encontro de Roosevelt com Vargas em Natal, em 1943, estabeleceu uma aliança que fez a diferença em termos logísticos e estratégicos. A participação do Brasil contribuiu para o equacionamento de fase crucial do conflito. Roosevelt via com simpatia a ideia de inclusão do Brasil no Conselho de Segurança da ONU, mas faleceu. Como arquiteto do multilateralismo econômico, os EUA contaram ainda com o Brasil na criação do GATT/OMC, que ajudou a substituir a lógica da guerra pela ordem internacional baseada em regras, como fator de cooperação e prosperidade.
        Em sua inusitada carta, Trump já havia feito tábula rasa de mais de dois séculos de relação bilateral que influiu nos princípios consagrados nos sistemas da ONU, da OEA e da OMC. A nota de resposta emitida pelo Presidente do Brasil revelou correção, objetividade e temperança. A atitude de Trump não é aquela que se espera de um dirigente dos EUA. Seus aspectos políticos ferem o Direito Internacional de maneira inaceitável. A própria guerra de tarifas revela protecionismo sem precedente em sua escala. Põe em risco o que levou séculos para construir: o multilateralismo, a ordem internacional e a arquitetura da governança.
        Intimidar parceiros e aliados compromete o livre comércio, que tantos benefícios trouxe à economia americana. Ele é parte de uma liberdade mais ampla que inspira a humanidade no curso da História. Uma das bases do sistema multilateral de comércio é o princípio da nação mais favorecida (NMF). Todo membro da OMC deve tratar de forma igual os demais. Trump repudia a cláusula NMF e abre a porta para um comércio de relações seletivas, baseado em preferências unilaterais. Se todos seguirem esse caminho, o comércio baseado em regras desaparecerá com prejuízo geral, especialmente para os países mais vulneráveis. Aplicar tarifas retaliatórias aumenta a probabilidade de guerra comercial global.
        O bem mais importante nas relações internacionais é a confiança mútua. Um ganho material imediato pode representar perda futura incomensurável. A liderança exercida pelos EUA no século XX foi fundada em princípios e valores que motivaram as demais nações. Luta pela liberdade, autodeterminação dos povos, descolonização, direitos humanos, democracia foram bandeiras que mobilizaram e firmaram a ideia de Ocidente. É preciso não esquecer o resultado trágico na Europa da supremacia e da lógica do conflito. Durante duas décadas, o Brasil viveu sob regime militar que violou direitos e liberdades fundamentais. A Constituição de 1988 é marco na identidade do povo brasileiro. Consagra o equilíbrio entre os poderes do Estado, o mecanismo de freios e contrapesos para evitar abuso de autoridade.
        Tarifas de 50% sobre produtos exportados pelo Brasil, a partir de 6 de agosto, inviabilizam o comércio. Trata-se de ato de protecionismo que compromete o Direito e a parceria entre os dois países. O anúncio anterior já determinara a suspensão de encomendas e enorme prejuízo a brasileiros e americanos. Dado o tempo exíguo, as circunstâncias inesperadas, e os danos imediatos às partes, o rumo mais sensato é estender o prazo e aprofundar o diálogo para a solução da disputa. As tarifas elevam inflação e desemprego e reduzem renda. Para cada dólar exportado pelo Brasil, a indústria dos EUA gera 43 dólares. Diálogo e bom senso devem prevalecer para honrar a histórica amizade entre os dois povos, que tanto fazem para o progresso das Américas.

*Embaixador de carreira, serviu na Missão junto à ONU em Nova York e nas Embaixadas em Washington, Londres, Tel Aviv e Camberra. Atualmente é advogado e Presidente do Conselho da Sociedade Brasileira de Direito Internacional.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários são sempre bem-vindos, desde que se refiram ao objeto mesmo da postagem, de preferência identificados. Propagandas ou mensagens agressivas serão sumariamente eliminadas. Outras questões podem ser encaminhadas através de meu site (www.pralmeida.org). Formule seus comentários em linguagem concisa, objetiva, em um Português aceitável para os padrões da língua coloquial.
A confirmação manual dos comentários é necessária, tendo em vista o grande número de junks e spams recebidos.