Um debate sobre a política externa brasileira a propósito da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia
Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Respondendo a um comentarista anônimo sobre uma postagem de meu blog.
Uma postagem de meu blog Diplomatizzando recebeu comentários de um leitor anônimo, em 14/09/2025, a propósito desta postagem, do dia imediatamente anterior: https://diplomatizzando.blogspot.com/2025/09/duas-guerras-dois-massacres-duas.html.
Eu me referia à diferença de posturas da política externa do governo Lula, refletido em declarações de sua diplomacia, em relação aos conflitos paralelos de Gaza – objeto de críticas severas ao governo de Netanyahu, nas quais se mencionou inclusive o termo de genocídio – e a guerra de agressão (não existe nenhuma outra palavra senão essa) da Rússia contra a Ucrânia, jamais condenada ou criticada pelo governo lulopetista e objeto, inclusive, de um apoio objetivo, pois que o governo Lula aumentou de maneira expressiva suas impostações de fertilizantes e combustíveis russos, ou seja, concedendo um tratamento desigual, e contraditório com respeito a posições tradicionais da diplomacia brasileira.
Recomendo que os interessados neste debate leiam primeiro a minha postagem e se detenham depois no comentário feito pelo leitor anônimo, que reproduzo abaixo, na qual destaquei, em itálico [aqui entre aspas], afirmações que serão objeto de minhas considerações:
"Caro professor,
Sou um grande admirador e leitor há anos do seu blog. Partindo da minha posição de ignorante, direi algumas especulações. Formalmente, houve a condenação de ambos os autores. "Sanção não funciona e ainda agrava a vida dos civis." A globalização criou interdependência. "A Europa continua comprando petróleo russo através da Índia". "O Brasil depende do fertilizante russo. Qualquer disrupção afetaria brutalmente a economia interna e externa. Além de crise alimentar (alguém deixaria de receber alimento). O Brasil assinou, nos últimos anos, diversos contratos e acordos com a Rússia." Em áreas estratégicas e importantes ao Brasil. Ou seja, no mundo ideal haveria condenação constante da Rússia, mas "o tempo de hoje é bem diferente daquele de Rui Barbosa": "não há imparcialidade entre o direito e a injustiça" O Direito Internacional foi uma luz, porém vilipendiada pelas potências. "A regra do jogo só é respeitada quando todos os membros jogam dentro da regra." Todavia, a natureza humana, por ser livre, há de trapacear. E assim caminha a história, como sempre foi, entre som e fúria. Como você disse: "Eu já sei a resposta, como diplomata experiente que sou, pelas razões das diferenças". "Então, professor, caso a questão esteja lhe perturbando emocionalmente, experimente psicoterapia." É preciso integrar a nossa sombra para vivermos bem. Eu já sofri com isso e só por isso estou comentando. Espero que o professor fique bem e continue com o coração esperançoso, pois uma coisa é saber da realidade... e outra é continuar no caminho certo. (Como você sempre demonstrou em suas posições)."
PRA:
Pois bem, devo, em primeiro lugar agradecer ao meu anônimo comentarista, que suponho seja um colega diplomata, e desculpar-me por demorar algum tempo para autorizar a publicação de seu comentário, agora feita, e para responder a seus argumentos, que encontrei sobranceiros, se assim posso dizer, como pretendendo ensinar-me coisas, ou dar-me uma lição sobre coisas que eu não percebi, ou que seria muito ingênuo ou irrealista por aceitar serem realidades do mundo, com as quais não concordo, (para talvez, equivocadamente). Ele se permite até desprezar Rui Barbosa, por achá-lo démodé, ou seja, ultrapassado. Eu sublinhei seus comentários em itálico, para melhor responder ao envergonhado comentarista. Vamos lá, portanto, para que algumas coisas fiquem estabelecidas.
Caro comentarista anônimo,
Permita-me responder a suas afirmações, ainda que do alto de algumas certezas que não recebem meu assentimento, num tom de condescendência com meus “equívocos”. Grato, em primeiro lugar, por ser um leitor fiel e longevo de minhas postagens, e espero que possa ter aproveitado algumas delas (não todas, pois vejo que contesta quase toda esta postagem). Vou apenas destacar algumas afirmações suas, e tentar responder.
1) “Sanção não funciona e ainda agrava a vida dos civis.”
Posso até concordar, mas esse é um “remédio” utilizado como substituto à guerra direta, bem mais custosa, e agravadora da vida dos civis. Foi usada desde a mais remota antiguidade (guerra de Troia, já ouviu certamente falar), em assédios a fortalezas medievais e no bloqueio de Napoleão contra a Inglaterra e desde no bloquei continental contra toda a Europa dominada pelo imperador francês. Depois a guerra se encarregou de agravar ainda mais a vida dos civis. A Grande Guerra levou a Alemanha imperial à fome, assim como a Turquia, e nas negociações de paz de Paris Woodrow Wilson defendeu as sanções como “remédios mais terríveis do que a guerra”, sendo, portanto, introduzidas na convenção da Liga das Nações, o primeiro instrumento (oligárquico) que tentou defender a paz, mas que obviamente falhou (a despeito de sanções, modestas, contra a Itália, por exemplo). Se sanção não funciona é sua opinião, mas as grandes potências voltaram a reproduzir os mesmos artigos da Liga na Carta da ONU, desde o rompimento de relações diplomáticas, a sanções financeiras, o bloqueio naval, etc. Nem sempre funciona, como sabemos, mas o Iraque de Saddam Hussein pagou um alto preço (sua população sobretudo) pela invasão do Kuwait. A Rússia vem sofrendo sanções por sua violação deliberada da Carta da OTAN, e parece que elas têm funcionado parcialmente, embora países importantes (China, Índia e outros, inclusive o Brasil) as tenham violado, em parte pela alegação de que são “ilegais”, por não serem “multilaterais” (um argumento capcioso, em virtude do uso abusivo do direito de veto pelo Estado agressor).
2) “A Europa continua comprando petróleo russo através da Índia.”
Pode até ser, mas não está provado. Países são dependentes de certos produtos essenciais e governos são hipócritas, como sabemos. Mas isso não invalida o argumento, pois a Carta da ONU continua preconizando sanções contra Estados agressores. Fico com a Carta.
3) “O Brasil depende do fertilizante russo. Qualquer disrupção afetaria brutalmente a economia interna e externa. Além de crise alimentar (alguém deixaria de receber alimento). O Brasil assinou, nos últimos anos, diversos contratos e acordos com a Rússia.”
Argumento capcioso. O Brasil pode até depender de fertilizante importado (o que é uma falha de sua estrutura produtiva), não necessariamente de fertilizante russo, pois existem muitos outros países que poderiam nos fornecer (ou você acha que o mundo inteiro depende do fertilizante russo?). Não haveria disrupção nenhuma se buscássemos fornecedores de outros países. Isso de “crise alimentar” é uma hipótese não confirmada, e, até me permito agregar, totalmente ridícula. O Brasil assinou acordos com dezenas de países, e o que isso tem a ver com o respeito à Carta da ONU e necessidades específicas de nossa agricultura?
4) “...o tempo de hoje é bem diferente daquele de Rui Barbosa...”
Recomendo que você leia toda a conferência de Rui Barbosa, de 1916 – existe uma excelente edição da Casa que leva seu nome: Conceitos Modernos do Direito Internacional (1983), para depois explicar melhor porque ele estaria superado. Rui Barbosa é um dos esteios doutrinais da diplomacia brasileira e algumas de suas lições figuram no eixo central do multilateralismo contemporâneo. Volte a me escrever depois de fazer o dever de casa.
5) “A regra do jogo só é respeitada quando todos os membros jogam dentro da regra.”
Entendo, pelo seu argumento, que o Direito Internacional não tem importância nenhuma, e que devemos voltar ao tempo em que o direito da força primava sobre a força do Direito (o que ainda pode ser o caso, mas não diga, por favor, que isso é o novo normal).
6) “Então, professor, caso a questão esteja lhe perturbando emocionalmente, experimente psicoterapia.”
Não se trata propriamente de um argumento político, mas apenas uma demonstração de comiseração para comigo, e por isso nem ouso recusar ou criticar. Apenas registro o conselho como uma preocupação de natureza paternal, o que talvez seja o caso (o que duvido) se você for bem mais velho do que eu. Não sendo, fica a sugestão, mas posso dizer que toda a minha postagem desvelou preocupação com a credibilidade de nossa diplomacia, não uma angústia pessoal.
Continue lendo e criticando minhas postagens, escrevo exatamente com esse objetivo.
Saudações acadêmicas e diplomáticas.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5146, 14 dezembro 2025, 4 p.
Nenhum comentário:
Postar um comentário