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sábado, 10 de setembro de 2011

A Australia nao existe: uma cronica de Adriano Pucci


NO WORRIES!

Adriano Silva Pucci
Camberra, setembro de 2011.

                  Camberra é uma cidade do outro lado do globo terrestre. Em termos de população, equivale à nossa Piracicaba: conta com cerca de trezentos e sessenta mil pessoas absolutamente normais, o que é deveras estranho. Pronuncia-se como proparoxítona [CANberra], provável artifício para evitar o cacófono [CanBERra], que pode soar a ouvidos desavisados como can’t  bear it. Se você conseguir achar Sydney no mapa-múndi, saiba que ainda faltarão trezentos quilômetros ao sul até Camberra. A capital da Austrália fica no extremo sudeste do continente, graças ao explorador britânico James Cook, o responsável pela escolha dessa rota marítima, mil vezes maldito por condenar gerações posteriores de brasilienses a viajar por três dias, Brasiliaguarulhossantiagoaucklandsidneycamberra, só para encontrarem mais uma cidade cuidadosamente planejada para ficar longe do litoral. Mas o bravo navegador está perdoado, pois, graças a ele, hoje temos a Nicole Kidman. Em ambas as cidades há aborígenes, embora em Brasília sejam mais encontradiços. Nas duas terras, selvagens seminus e tatuados entoam cantos primitivos e pulam ao som de tambores, numa espécie de dança da chuva, com a diferença de que em Camberra não tem trio elétrico, e de que o ritual australiano efetivamente produz resultados pluviométricos. 
O típico natural de Camberra tem as bochechas vermelhas de quem levou vários tabefes. Os cabelos das mulheres podem ser loiros ou tingidos de preto-tiziu. Na segunda versão, elas ficam parecidas com falsas gueixas, por terem a pele branca como talco. Aparentemente, o pavor máximo do australiano é o de ser atropelado por uma bicicleta no parque. É possível deduzir isso porque todos praticam corrida trajando um uniforme amarelo fluorescente, a onipresente high visibility polo shirt. Trata-se de um povo civilizadíssimo, o que torna viver na Austrália uma experiência tão emocionante como assistir a um jogo de críquete contra a seleção do Sri Lanka.  Exaltadas manchetes de jornal transpiram empolgação com a visita da filha do Rolling Stone Keith Richards, a modelo Alexandra, reverenciada como celebridade pertencente à realeza do rock. Sim, rock royalty, declaram, como se alguém já tivesse visto um roqueiro caçando faisões. E leitores chocados leem depois releem a notícia da descoberta do corpo de um menino desaparecido desde 2003. No Brasil, ninguém teria ainda se dado conta nem sequer do sumiço do pequeno Daniel.
É claro, de vez em quando eles têm de extravasar. Para isso existe o rugby, que passa em todos os canais de TV aberta, com exceção daqueles que transmitem futebol americano. A diferença básica entre os dois esportes consiste em que, no primeiro, são onze marmanjos de cada lado, esmagando-se mutuamente, sem equipamento de proteção, ao passo que, no segundo, são trinta mamutes no total, envolvidos na mesma pancadaria, porém usando uma espécie de armadura.  Ah, o terceiro canal exibe lutas de telecatch...
                  A primeira página de qualquer manual decente de sobrevivência em Camberra deve mencionar a necessidade imperiosa de alugar carro. Os táxis, caríssimos e rarefeitos, pertencem a uma empresa logicamente denominada de Elite. Recomendo atenta leitura do contrato de locação do automóvel, que mencionará todos os detalhes, menos a cor. Na garagem do aeroporto, deparei-me com um compacto esverdeado, da tonalidade “kiwi”. Nessas situações, procuro sempre ver a metade cheia do copo: localização rápida do veículo no estacionamento do shopping center e remota possibilidade de furto por algum larápio daltônico.

Pronto, você está dentro do carro. Ao não encontrar o volante, logo percebe que está sentado no banco de passageiros. Passada a humilhação, já no assento do motorista, você liga o quiuí e sai impunemente dirigindo na contramão, leal súdito que é da Coroa Britânica. O mapa da cidade tem o formato de uma menininha de saia e tranças dreadlock, à la Bob Marley. A idéia é você ficar girando na “cabeça da menina”, o State Circle, até arriscar impetuosamente uma das “tranças” ou artérias viárias que o conduzirão a Deus-sabe-onde. Meu conselho é não dobrar à esquerda, confiando na seta que indica Tuggeranong, sob pena de acabar em Wagga-Wagga. Ou, carinhosamente, “Wagga”. E cuidado! O australiano ficará indignado se você confundir essa cidadezinha com o sítio histórico de Mugga-Mugga (nada que ver!). Mais prudente, portanto, é socorrer-se no GPS e ir direto para a rua Bunda, talvez batizada assim por ficar no centro e por ser bastante movimentada. Em Camberra, Bunda Street sempre termina em Mort Street. No Brasil, nem sempre as duas se conectam.

As lojas em Camberra fecham às cinco da tarde. Raros comerciantes gananciosos esticam o horário até as sete, quando ainda podem ser encontrados restaurantes abertos, que servem, vai entender, porções pequenas para Aussies corpulentos. A gastronomia, diversificada, atende a todos os paladares, do vietnamita ao indiano, mas prevalece a culinária italiana. Aliás, nada de especial nessa observação, visto que a pizza é a pandemia do nosso tempo: barata, rápida e plana, como a sociedade contemporânea. A pizza é o novo dólar. Bem, abandonando essa digressão histórico-nutricional e voltando o relógio para as dezenove horas, produz-se então verdadeiro toque de recolher, acentuado pela precária iluminação urbana. Poucos carros transitam à noite, e fazem-no sempre com o farol alto, o que provoca incômoda sensação de caçada policial. Evidentemente, tamanha escuridão só pode ser parte de um sistemático plano de governo, donde se intui que as autoridades australianas escondem de nós um terrível segredo sobre ataques aéreos, discos voadores ou vampiros. A dificuldade de avistar um pedestre após o jantar só é comparável, em Camberra, à escassez de latas de lixo nas vias públicas, devidamente compensada pela falta de lixo para botar nas lixeiras. Um dia a verdade virá à luz, e descobriremos que os australianos enterram o lixo nos quintais de suas casas, silenciosamente, numa cerimônia macabra, protegidos pelo manto negro da madrugada. Nem ladrão sai de casa ao anoitecer: Camberra é cem por cento segura.
Todo país tem sua mania nacional. As Grandes Guerras são a Copa do Mundo dos australianos. Felizmente, as guerras mundiais ocorrem em intervalos de tempo maiores. A batalha de Gallipoli, travada contra os turcos otomanos, em 1915, na qual a Austrália sofreu heróica, mas fragorosa derrota, equivale ao nosso Maracanaço de 50. No Memorial da Guerra há um nobre mausoléu erigido para o Soldado Desconhecido, que, ironicamente, é o australiano mais notório (depois da Nicole Kidman, repito). Na TV, é comum ver a imagem de um recruta agonizante nas trincheiras, seguida de um pedido de doação para o clube de veteranos de guerra. Em troca, você recebe um brochezinho de alumínio e a consciência tranquila.
Dizem que cangurus saltitam livremente nos bairros residenciais de Camberra. Até agora, para mim, isso não passa de lenda urbana. Não vi nem sombra de canguru, nem mesmo de pelúcia. Sem entender o boicote marsupial de que sou vítima, ando tomado de certo complexo de inferioridade. Ir para a Austrália e não ver cangurus é o mesmo que visitar o Brasil e não encontrar flanelinhas. Mas essa ansiedade toda ― e aí o nosso estereótipo está desatualizado ― é típica do brasileiro. Se tem uma lição que aprendi com os australianos, é que o estresse não vale a pena: no worries, ensinam-me eles a todo momento. “Sem probs”, traduzo em pensamento. Um bom lema para levar de volta em minha bagagem.

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