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sexta-feira, 8 de maio de 2020

Porque me envergonho de meu país - Paulo Roberto de Almeida

Porque me envergonho de meu país

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: postura pessoal; finalidade: publicação]
  
No dia 8 de maio de 1945, 75 anos atrás, em Reims, na França, as forças aliadas registravam a rendição incondicional do Exército da Alemanha nazista, encerrando assim os combates que duraram mais de cinco anos. Os soviéticos não gostaram da cerimônia, uma vez que a Wehrmacht estava se rendendo para as forças ocidentais, e eles consideravam, não sem razão, de que tinham sido eles, exército e povo russos, que tinham feito o maior esforço para vencer as forças nazistas, com cerca de 20 milhões de mortos. Por isso organizaram uma segunda cerimônia de rendição, desta vez em Berlim, no dia seguinte, 9 de maio.
Assim que passaram a ocorrer, desde então, dois desfiles e duas comemorações. No dia 8, do lado do Ocidente, e dia 9 de maio, do lado da finada URSS e agora da Rússia.
A Alemanha estava em ruínas, tendo provocado destruições ainda mais pavorosas nos países atacados por ela, mas esse não era e não podia ser o seu crime mais importante. Ela tinha sido responsável por bárbaros crimes de guerra e indizíveis crimes contra a humanidade, embora apenas os chefes militares e alguns ministros civis tenham sido julgados em Nuremberg. Grande parte da população, não só populares, mas também representantes das classes mais altas colaboraram ativamente com a barbárie nazista, desde o início do regime, e sobretudo nas horas mais sombrias de um país dominado pela loucura genocida.
Quando a Alemanha começou a ser reconstruída, embora dividida e ocupada, governo e povo tiveram de fazer enorme esforço de arrependimento para tentar recuperar um pouco da honra perdida pelo seu povo e governantes, como resultado dos crimes pavorosos cometidos durante mais de dez anos contra seus vizinhos e, sobretudo, contra o povo judeu, o seu próprio e o dos vizinhos. Quando um povo se deixa dominar por um psicopata, esse pode ser o destino de uma nação outrora grandiosa. Por isso, neste 8 de maio de 2020, cabe uma advertência contra novos demagogos desequilibrados que se apresentem em diversos países.
Em 1900, ou seja, 120 anos atrás, o Conde Afonso Celso, político do Império, fundador da Academia Brasileira de Letras, publicou um livrinho para exaltar as supostas virtudes do Brasil: Por que me ufano do meu país? Deu origem a toda uma literatura de orgulho e exaltação das grandezas do Brasil, que passou a ser catalogada na categoria do ufanismo – o termo se consagrou, justamente – que chegou a contaminar gerações de brasileiros sinceramente patriotas, aliás até hoje, e até intelectuais do porte de um Stefan Zweig, que perpetrou um panfleto condenando o Brasil a ser um país “de futuro”, uma de suas obras mais medíocres, se é possível encontrar obras descartáveis na vasta produção do escritor austríaco, que se suicidou no Carnaval de 1942, em Petrópolis. Entre os dois, se situa a obra mais melancólica de Paulo Prado, Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira, de 1928, uma discussão sobre nossas virtudes menos imitáveis. 
Mas não é o caso, aqui, de iniciar um debate literário sobre as virtudes ou defeitos respectivos de cada uma dessas visões sobre o nosso país ou seu povo. Já tivemos momentos de grande fervor ufanista, sob democracias – como a conquista triunfal da Copa do Mundo de Futebol em 1958, no governo otimista de Juscelino Kubitscheck tanto quanto sob ditaduras, como a exaltação do gênio brasileiro, no mesmo futebol, como a conquista do campeonato de 1970, enquanto outros brasileiros eram torturados nas masmorras dos órgãos de repressão. Os momentos de pessimismo são mais coetâneos aos períodos de crise econômica, de decepções políticas, de morte de grandes personalidades do mundo artístico, ou até mesmo do mundo político, como também ocorreu no episódio do suicídio de Getúlio, em 1954, ou na morte acidental do próprio Juscelino Kubitschek, em 1976. 
Nosso momento atual, em que pese a exaltação patriótica de alguns setores, se nos apresenta como de imensa vergonha, aos nossos próprios olhos, assim como aos olhos do mundo. Nunca antes em nossa história, desde a chegada do primeiro governador-geral à cidade de Salvador, em 1548, Tomé de Souza, tínhamos tido notícia de um dirigente tão medíocre, tão rústico e perverso quanto o atual presidente. Não tem nada a ver com suas posturas políticas ou suas supostas afinidades ideológicas, e sim com sua atitude em relação ao simples respeito pela vida, algo que já estava evidente desde longos anos, quando ele se comprazia em exaltar as virtudes da ditadura militar e não se furtava em elogiar um torturador notório daquele regime. Mais de uma vez lamentou o fato de que a ditadura militar não eliminou, sumariamente, um número maior de opositores, comunistas, como ele os classifica, no seu simplismo sectário. 
Até o final de 2019, esses defeitos eram reafirmados como “traços folclóricos de caráter”, embora condenáveis num político eleito presidente da República. Mas, a partir da disseminação da pandemia no Brasil, o celerado personagem passou a exibir os traços mais deploráveis de seu caráter, o desprezo notório pela vida humana, várias vezes demonstrado desde o início da doença no Brasil, o que nos autoriza plenamente a chama-lo, sem nenhuma hesitação, de “presidente genocida”. O efeito que isso provoca nos meios de comunicação de todo o mundo é devastador para o nosso amor próprio, uma vez que a imagem do Brasil no exterior passa a ser de um país mais ou menos parecido com a Uganda sob Idi Amin Dada, um outro genocida notório, provavelmente um psicopata, como existem tantos aspirando à conquista do poder. Não foi por acaso que comecei este trabalho relembrando o exemplo da Alemanha, outrora detentora das mais dignas manifestações de cultura e humanismo, depois caída sob a dominação de um tirano que a conduziu à maior ruína de sua história.
O Brasil não corre esse risco de ser arrastado a uma destruição tão completa quanto aquela imposta ao povo alemão pelo psicopata que conquistou o poder em 1933. Mas, as evidências já reveladas quanto aos “traços de caráter” do desequilibrado presidente do Brasil já nos autoriza a incluí-lo no rol de psicopatas perigosos, uma vez que provocando a morte de centenas, talvez milhares de pessoas, com sua indução genocida a desprezar os dados da ciência e a estimular comportamentos insanos em seus seguidores ou ingênuos ignorantes. 
Não vou escrever um novo opúsculo com o título oposto ao de Afonso Celso, mas não tenho nenhuma hesitação em confirmar que sinto profunda vergonha pelo que ocorre atualmente em nosso país, sobretudo em relação a uma política externa que não tem nenhuma qualificação para ser chamada por esse nome, e em conexão com uma diplomacia que acresce ao sentimento de asco, pelo que representa de diminuição de nossa imagem e prestígio no exterior. Infelizmente, teremos de suportar o opróbrio durante algum tempo mais, uma vez que processos de afastamento constitucional de presidentes criminosos – como é certamente o caso do atual – são necessariamente demorados em situações democráticas. 
Entretanto, nada me impede de expressar publicamente meu horror e indignação pelo fato de estarmos sendo representados por um sujeito cuja estatura moral se iguala à dos piores tiranos conhecidos na história da humanidade. Ele só não pode exercer todo o seu inato poderio destruidor porque as circunstâncias e as instituições ainda existentes no país não o permitem, não por falta de vontade ou de convicções despóticas. Que passe logo.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3665: 8 de maio de 2020