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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

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domingo, 12 de janeiro de 2020

Resenhas dos melhores livros do ano - Amálgama

Melhores Livros de 2019

15 obras selecionadas por colunistas da Amálgama e autores convidados.

8 livros de ficção e 7 de não ficção compõem nossa relação dos melhores livros lançados no Brasil em 2019 ou no final de 2018. Há três clássicos em novas edições. 12 editoras estão representadas. Boas leituras!
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Os donos do inverno, de Altair Martins (Não Editora, 256 páginas)

 por Rafael Bán Jacobsen, físico (UFRGS) e escritor – Dois irmãos de criação, afastados há décadas, desde a morte do terceiro mano, reencontram-se para cumprir uma insólita missão: levar os ossos dele, um jóquei promissor, para a grande noite do turfe em Buenos Aires, páreo que nunca chegou a disputar. Com esse intuito, cruzarão os solitários cenários meridionais do Rio Grande do Sul e do Uruguai, atravessarão o coração do inverno, enfrentarão memórias gélidas e íntimas rupturas, recompondo, pouco a pouco, a voz em primeira pessoa do plural que um dia foram. Em seu terceiro romance, o premiado Altair Martins surpreende ao remodelar o seu estilo. Antes, a linguagem derramada e transbordante de metáforas; agora, maior contenção no uso das figuras de linguagem. Substituindo o experimentalismo de radicar toda diegese no solo movediço de paisagens interiores sobrepostas, a psicologia das personagens construindo-se a partir de falas e ações. Em lugar do tom surreal e em constante flerte com o fantástico, a narrativa realista e alicerçada na velha arte de contar uma boa história. Mas Altair Martins segue sendo Altair Martins naquilo que o fez um dos nomes mais notáveis da nossa atual cena literária: sua capacidade ímpar de plasmar mitologias próprias e encantar pela profusão de humanidade em seus textos.

Os cadernos de solidão de Mario Lavale, de Arthur Telló (Zouk, 320 páginas)

 por José Francisco Botelho, escritor – O gaúcho Arthur Telló – que é professor de Latim, Grego e Escrita Criativa na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre – costuma definir a si mesmo como, essencialmente, um escritor sul-americano. Não apenas pela circunstância geográfica de seu nascimento, mas pela filiação a uma tradição literária – tradição essa que tem no conto um de seus traços principais, assim como certas temáticas recorrentes, como a solidão, o ensimesmamento, e a percepção às vezes obsessiva das estranhezas da condição humana. Em seu livro de estreia, a coletânea de contos Os Cadernos de Solidão de Mario Lavale, Telló interliga narrativas curtas para construir ou sugerir uma narrativa mais ampla, centrada no personagem que dá nome ao livro: um escritor de quarenta anos, “dono de um estilo vivaz, colorido e econômico”, envolvido em desventuras amorosas que oscilam entre o desastroso e o patético, e cuja trajetória pessoal e artística acaba saindo pela tangente e se desviando em direção à loucura. Esse mosaico de ficções não esconde sua lealdade àquela estirpe continentina de que já falamos: como todo gaúcho que se preze, Telló é bom leitor dos argentinos e dos uruguaios, mas a influência que deles extrai jamais é mero decalque. Bebendo em fontes como Cortazar, Onetti, Felisberto Hernández e Mario Levrero, o autor encontra já em seu primeiro livro um jeito próprio de falar sobre nossas vastas e às vezes contíguas solidões. Ao longo da coletânea, alguns contos apresentam-se como escritos pelo próprio Lavale; outros, por um supra-narrador que paira acima dos fatos mais ou menos como o deus de Espinosa; e ainda há outros que podem ter sido escritos por qualquer um dos dois. Um dos prazeres oferecidos pela obra é, precisamente, tentar decidir qual o criador de cada conto. As peripécias e os infortúnios de Lavale se refletem e se recriam em seus textos, duplicando-se, refinando-se, mas jamais se resolvendo, o que oferece ao leitor a possibilidade de uma reflexão instigante e labiríntica sobre a própria natureza da criação literária — já que a perícia de Telló faz com que Lavale e os personagens criados por Lavale pareçam igualmente reais. Sobre todas as narrativas paira uma vaga sombra de enlouquecimento, o temor ou o desejo de esfacelar a realidade, coisa que todas as almas reflexivas experimentam ao menos uma vez por dia; pois, nas palavras do próprio Telló, ou do próprio Lavale: “Um homem sensível e inclinado às artes precisa destruir muita coisa neste mundo”.

Chapadão do Bugre, de Mário Palmério (Autêntica, 416 páginas)

 por Fabrício de Moraes, crítico literário – Publicado originalmente em 1965, Chapadão do Bugre se inspira no assassinato (posteriormente conhecido como “Tocaia do Fórum”) de dois líderes locais, ocorrido na cidade mineira de Passos, num confronto entre o mandonismo dos coronéis e forças repressivas do Estado. Palmério, que, além de escritor, atuou no cenário político como deputado pelo PTB, criou, à semelhança de Guimarães Rosa – a quem inclusive sucedeu na Academia Brasileira de Letras – um vocabulário próprio, recolhido da fala coloquial, barroca e austera do sertanejo mineiro. No seu “regionalismo expressionista” (conforme definição de André Azevedo da Fonseca), Palmério mostra o embrutecimento progressivo do peão José de Arimatéia, que, tendo assassinado o amante de sua noiva, abandona, em fuga, seu ofício de dentista ambulante para tornar-se o temido jagunço dos mandantes da cidade de Santana do Boqueirão. Atormentado pela vergonha e ódio, José de Arimatéia faz uma jura de vingança – e um estranho voto de manter-se casto enquanto não cumprisse seu intento – contra Maria do Carmo, aquela que o traiu, impelido pela obsessão em matá-la de modo visceral. A tensão local aumenta quando forças policiais, lideradas pelo capitão Eucaristo Rosa e sargento Hermenegildo, são enviadas para a contenção (leia-se: eliminação) das fraudes eleitorais e contravenções dos jagunços do interior. Encarnações draconianas do punitivismo que perpassa grande parte da história brasileira, esses dois militares interrogam metodicamente todos os suspeitos mergulhando-os na barrica da cadeia onde se recolhia os excrementos dos presos, além de aterrorizarem a cidade por meio do exercício criativo de suas arbitrariedades – por exemplo, obrigando um infeliz a assentar-se num bloco de gelo até que este se derretesse. Também como reflexo de um dos arquétipos de nossa formação social, temos o juiz Damasceno Soares, defensor ardoroso da moralização impositiva e abstemia de toda a Santana do Boqueirão, o qual busca, com suas ações extremadas e prédicas edificantes, o fim dos capangas, em especial José de Arimatéia, para que viva secreta e tranquilamente com sua nova amante, a famigerada Maria do Carmo. Testemunhando todo esse redemoinho de ações brutais, e apresentando por vezes mais sensibilidade que os homens ao seu redor, a égua Camurça antevê não apenas o fim trágico de seu dono, José de Arimatéia, mas também a subjugação do homem por forças obscuras e atávicas, pela violência primordial e por uma natureza impiedosa para com aqueles que dela dependem imediatamente. Testemunho dos nossos dramas espirituais enquanto nação, este clássico nos revela um território onde, ainda segundo André Azevedo da Fonseca, “a inocência não merece compaixão”.

Fenda, de Ranieri Ribas (Penalux, 124 páginas)

 por Pedro Almendra, crítico literário e ensaísta – Fenda, livro de poesias de Ranieri Ribas, é um marco recente de nossa literatura. Ranieri surge na poesia nacional em 2019 com dois grandes livros de uma só vez, Fenda e Aos renovos da erva – o qual foi lançado quase na mesma semana de Fenda, no entanto, escrito dez anos antes. Os dois livros merecem elogios, é claro, mas, em Fenda, os méritos do poeta se nos mostram mais nítidos e imponentes; Ranieri demonstra um domínio tão amplo quanto natural da formas poéticas (o leitor encontrará de tudo: retrancas, sonetos, sextinas, vilanelas…), e o faz com a facilidade de quem maneja uma ferramenta de trabalho, sem qualquer resquício de reverência ou devoção. Por outro lado, o livro surpreende pela diversidade de conteúdo que, a princípio, soa caótica, mas se condensa sob o ritmo de um movimento coeso e acabado; ora místico, ora cotidiano, ora triste, ora engraçado, sem jamais – e este é um dos grandes triunfos do poeta – perder a unidade. Ranieri Ribas é um nome a ser guardado. Trata-se de um tipo cada vez mais raro de poeta: o que fala porque tem o que falar e não porque precisa ser ouvido; a quem a poesia é vocação e não terapia.

A fúria, de Silvina Ocampo (Companhia das Letras, 224 páginas)

 por Gustavo Melo Czekster, escritor – O simples fato de ser uma escritora admirada por autores como Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares (de quem era cunhada), Julio Cortázar, Alejandra Pizarnik e Roberto Bolaño, para ficar em somente alguns nomes, já seria o suficiente para atrair a atenção para a obra de Silvina Ocampo (1903-1993). No entanto, basta uma lida nos contos que compõem A fúria para essa admiração estar plenamente justificada. Por meio de contos límpidos, escritos com clareza exemplar, Silvina tece atmosferas fantásticas que realçam os grandes conflitos humanos. É um livro que exige releituras, não por ser complicado, mas por ser enganadoramente simples; tão logo as histórias acabam, uma sombra desconfortável passa a pairar sobre o espírito do leitor, o qual sente que perdeu algo muito importante, que estava ao alcance dos seus olhos e, ainda assim, ele não viu. Somente a releitura irá aplacar o seu espírito e, assim, Silvina Ocampo realiza o grande mistério da literatura: contar histórias que se renovam constantemente , apesar das palavras do livro sempre serem as mesmas.

Serotonina, de Michel Houellebecq (Alfaguara, 240 páginas)

 por Rodrigo de Lemos, doutor em Literatura (UFRGS) – Florent, protagonista de Serotonina, se situa em uma linhagem de personagens misantropos na literatura francesa. É uma tentação de simplificação crítica sugerir que a degradação da vida social leva à proliferação de personagens desse tipo na ficção. Afinal, Molière escreveu O Misantropo (1666) enquanto o Rei-Sol transformava a França no centro da Europa; J.-K. Huysmans criou o dândi recluso Des Esseintes em Às avessas (1884) enquanto a Belle Époque irradiava de Paris, e a descrição da incômoda liberdade solitária de Roquentin, em A Náusea (1938), de Sartre, precede a derrota dos franceses na Segunda Guerra e sua perda de um dos maiores impérios do planeta. Não seria a crueldade da sociabilidade à francesa – com suas hierarquias, seus conflitos e suas vaidades versalheses – que convidaria a essa fuga do outro em favor de uma reclusão melancólica num eu cansado pelo mundo? Como quer que seja, o Florent, de Houellebecq, não deixa de lembrar esses tristes anacoretas modernos, sobretudo Des Esseintes (pelo sofrimento psiquiátrico cuja progressão acompanha a da narrativa) e Roquentin (pelo conforto material que lhe permite viver e analisar seu mal-estar na plena ociosidade). Se me parece apressado compreender esse mal-estar individual como simbólico de um suposto declínio do país ou da Europa – como é tentador fazer ao transformar Serotonina em profecia dos coletes amarelos -, o certo é que Houellebecq vincula a seu herói alguns temas sensíveis da Modernidade avançada, quase como num compêndio: o poder da neuro-psiquiatria, a crise da masculinidade, a ressaca da revolução dos costumes, a onipresença midiática, os estragos do liberalismo econômico, a cisão entre cidadãos e citadinos. Em filigrana, o tema huysmaniano da impossibilidade de uma vida sem Deus, mas também da impossibilidade da conversão; como Às avessasSerotonina termina em aberto, por uma referência sem conclusões ao Cristo. São todos tópicos sobre os quais o populismo conservador atualmente em voga pode capitalizar. Provavelmente isso faça de Serotonina o romance do ano de 2019. De quantos mais?

As flores do mal, de Charles Baudelaire (Penguin Companhia, 656 páginas)

 por Jerônimo Teixeira, jornalista e escritor – A primeira edição, em 1857, foi um sucesso escandaloso: custou ao autor um processo judicial, uma multa, e a censura. Seis poemas foram proibidos, outros tantos adicionados às edições posteriores, e a fama de maudit pegou de vez no poeta que cantava as carcaças apodrecidas na beira da estrada, os trapeiros, os bêbados e as mulheres decaídas – Charles Baudelaire (1821-1867), hoje um respeitável mas ainda incômodo clássico da literatura francesa. As flores do mal já contava com três traduções integrais no Brasil, e mais algumas em Portugal. Esta nova tradução de Júlio Castañon Guimarães, fluente e eloquente, lembra a um tempo no qual a santimônia militante domina a cultura e o filistinismo mais mesquinho ocupa o poder que é preciso “mergulhar (…) no desconhecido para achar o novo”.

O jogo de amarelinha, de Julio Cortázar (Companhia das Letras, 592 páginas)

 por Sérgio Tavares, crítico literário e escritor – Publicado originalmente em 1963, O jogo da amarelinha é um daqueles livros cuja extensão transcende seus limites paginados, sendo calculada através do impacto que causou em seu tempo e em obras e escritores de gerações que o sucederam. A primorosa edição lançada pela Companhia das Letras, com tradução de Eric Nepomuceno, acerta em cheio ao entender essa equação e usá-la para formular o projeto literário, no qual as raias do romance são orbitadas por ensaios e textos críticos de nomes de respeito, como Mario Vargas Llosa, Haroldo de Campos e Davi Arrigucci Jr., que analisam ao mesmo tempo que celebram este que foi eleito pela revista Times londrina “o primeiro grande romance hispano-americano”. O mais irônico é que o autor, o argentino Julio Cortázar, planejou originalmente a obra como uma negação do romance em sua tradição literária, rompendo com os padrões do gênero, de modo a dar forma a um antirromance. Isso se evidencia na estruturação descontinuada da narrativa, uma trama movediça e labiríntica, que desafia o leitor a ordená-la tal qual um jogo em que os capítulos podem ser lidos de maneira linear ou aos saltos, em direções possíveis de acordo com as escolhas. A história trata da procura incessante do exilado argentino Horacio Oliveira pela uruguaia Maga, uma mulher misteriosa que o faz perambular pelas ruas e pontes de Paris, atrás do amor encarnado em si, que também é um fantasma perdido no fluxo do tempo. Nesse processo de ir e voltar num circuito que nunca se fecha, cria-se um espaço de aventura entre as palavras, uma errância verbal que transgride as fronteiras da ficção repercutindo o cenário político-social da época, de um tempo de criatividade e de luta pela liberdade. O volume ainda contém uma pérola: uma seleção de cartas em que Cortázar comenta e reflete sobre o processo de confecção do jogo e a recepção da crítica e de seus pares literários. Numa delas, endereçada ao poeta estadunidense Paul Blackburn, em maio de 1962, o autor argentino escreve que, no alto de sua “habitual modéstia”, sua impressão é que o livro “será uma espécie de bomba atômica no cenário da literatura latino-americana”. Foi, de fato, um Big Bang, um marco literário, uma obra-prima, que irá ressoar infinitivamente na história da humanidade.

Relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação, de Celso Lafer (FUNAG, 2 volumes, 1.524 páginas)

 por Paulo Roberto de Almeida, diplomata – A obra em dois volumes reproduz meio século de ideias, reflexões, pesquisas, andanças e um exercício direto de responsabilidades à frente da diplomacia brasileira (em duas ocasiões) e, através dela, de algumas funções relevantes na diplomacia mundial, como a presidência do Conselho da OMC, assim como em outras instâncias da política global. Celso Lafer, professor emérito da USP, articulista consagrado, mestre de várias gerações de estudiosos de relações internacionais e de direito, esteve à frente de decisões relevantes em alguns foros decisivos para as relações exteriores do Brasil, na integração regional, no comércio mundial, nos novos temas do multilateralismo contemporâneo. A obra constitui um aporte fundamental para os estudiosos de diplomacia e de relações internacionais do Brasil, uma vez que reúne os relevantes escritos do mais importante intelectual desse campo, praticamente o fundador da disciplina no Brasil, com a vantagem de o autor ter sido o condutor da diplomacia brasileira em momentos significativos da história recente. A trajetória intelectual do autor se confunde com a evolução dos estudos e da prática das relações exteriores do Brasil no último meio século, mas a obra reproduz apenas uma pequena parte de sua gigantesca produção acadêmica, profissional ou jornalística, deixando de integrar, por especialização temática nas áreas do título, uma outra parte essencial de suas atividades intelectuais, que cobrem os terrenos literário, cultural e mesmo de política doméstica. Percorrendo as páginas dos dois volumes é possível registrar alguns grandes nomes do estadismo mundial, com quem Celso Lafer interagiu ou conviveu ao longo dessas décadas. Ele discorre sobre líderes estrangeiros como Mandela, Shimon Peres, Koffi Annan, Antonio Guterres e, retrospectivamente, sobre o êmulo português do embaixador Souza Dantas, o cônsul Aristides de Souza Mendes, um justo entre os injustos do salazarismo.

Lucros de sangue: Como o consumidor financia o terrorismo, de Vanessa Neumann (Matrix, 320 páginas)

 por Bruna Frascolla, doutora em Filosofia (UFBA) e pesquisadora (Unicamp) – Se há um assunto em que todos querem ter opinião, é o da violência urbana. A correlação entre esta e o narcotráfico é razoavelmente estabelecida para qualquer um que tenha bom-senso, e por isso as discussões acerca da violência logo descambam para uma discussão acerca da legalização de drogas. Lucros de sangue é bom para mostrar como o buraco é muito mais embaixo do que supõe a vã ciência política de muitos de nós. As drogas ilícitas são meras coadjuvantes num cenário de crime transnacional em que se entrelaçam organizações mafiosas (ideológicas ou não) e autoridades públicas. Aprendemos, por exemplo, que PCC figura como um grande contrabandista de cigarros paraguaios, advindos da fábrica pertencente ao ex-presidente Horacio Cartes (o mesmo que agora desponta no noticiário político-policial brasileiro), e como parceiro comercial do Hezbollah. E aprendemos que organizações criminosas transnacionais se associam independentemente de ideologia, de modo que aquelas de cunho religioso podem até terceirizar um atentado terrorista contratando um cartel mexicano para concretizá-lo. É possível que muitos mantenham sua posição pró ou contra a descriminalização de drogas após a leitura. Mas certamente farão isso inteirados de que as drogas ilícitas não são o cerne do problema, e que organizações terroristas (ideológicas ou não) não se extinguem apenas por meio de atos legislativos ou econômicos. Esse é um problema de soberania.

O sofrimento humano: Fundamentos antropológicos da psicoterapia, de Viktor Frankl (É Realizações, 368 páginas)

 por Daniel Lopes, psicólogo e editor da Amálgama – As duas ideias principais que dão unidade a esta reunião de artigos e conferências do neurologista, psicoterapeuta e psiquiatra Viktor Frankl se complementam maravilhosamente. A primeira é a de que o indivíduo em sofrimento não se resume apenas ao seu sofrimento. Traduzindo em termos de saúde mental: um indivíduo não é apenas o seu diagnóstico, e quem o reduz desta forma já andou meio caminho para aumentar-lhe ainda mais o sofrimento. E a segunda ideia de Frankl é que o ser humano que existe além dos sintomas sempre tem um potencial para se desenvolver – desde que associe suas ações a valores que lhe são importantes. É este modo de vida que preenche uma existência de sentido. Por outro lado, o indivíduo que busca orientar sua vida apenas pela satisfação de necessidades imediatas são aqueles que têm grande chance de parar em um consultório psicológico com a queixa de sensação crônica de vazio. Eu gosto de pensar que a Logoterapia de Frankl tem na Terapia de Aceitação e Compromisso do americano Steven Hayes sua versão moderna e baseada em evidências. Todo leitor interessado em psicologia ou filosofia precisa ler Viktor Frankl.

O cadete e o capitão: A vida de Jair Bolsonaro no quartel, de Luiz Maklouf Carvalho (Todavia, 256 páginas)

 por Paulo Roberto Silva, jornalista – A Luís Maklouf de Carvalho não cabe a objeção bolsonarista default: “Mas e o PT?”. Muito antes de ser modinha, ele descobriu a relação fora do casamento de Lula com Miriam Cordeiro e sua filha Lurian. Isto lhe valeu uma inimizade eterna com o petismo. Em O cadete e o capitão, Maklouf volta suas baterias para o processo que levou Bolsonaro para fora do Exército. Baseado apenas nos documentos oficiais das Forças Armadas sobre a trajetória do atual presidente, desde a Aman até o julgamento no Superior Tribunal Militar, descobrimos seu gosto pelo garimpo, sua postura sindicalista, seu comportamento de mentiroso crônico – indicado no documento assinado pelo Ministro do Exército e que resultou em sua expulsão. Também descobrimos que em sua absolvição pelo STM, foi menos julgado o plano terrorista de Bolsonaro contra o abastecimento de água no Rio de Janeiro e mais o incômodo dos ministros indicados pela ditadura com a liberdade de imprensa na abertura democrática. Para quem quer conhecer o caráter de quem nos governa neste final de década, O cadete e o capitão é leitura obrigatória.

Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda identitária, de Antonio Risério (Topbooks, 142 páginas)

 por Eli Vieira, biólogo geneticista (UnB, UFRGS, Cambridge) – Antonio Risério se cansou dos pequenos stálins de diretório central de estudantes das universidades federais. Ele, como eu, pensa que Bolsonaro está onde está como resultado do besteirol identitário e relativista, entre outros motivos, mas, se há um motivo intelectual, é esse: retaliação conservadora a loucuras identitárias. É autoritária e indesejável a tentativa de refundar o pensamento social e a opinião pública com base em análises rasas de dicotomias dogmáticas de opressores vs. oprimidos, patriarcado vs. mulheres, heterossexuais vs. LGBT, supremacia branca vs. movimento negro unificado, e a pseudo-complexificação dessas dicotomias na forma de uma “teoria interseccional”. Risério quer vingar a memória de Spinoza, nos levando de volta ao ponto de vista da eternidade, exigindo objetividade, imparcialidade e demais valores epistêmicos que pós-modernos porcamente atacaram.

Capanema: A história do ministro da Educação que atraiu intelectuais, tentou controlar o poder e sobreviveu à Era Vargas, de Fábio Silvestre Cardoso (Record, 420 páginas)

 por Martim Vasques da Cunha, crítico literário e escritor – No livro de estreia do historiador Fabio Silvestre Cardoso temos a descrição de um processo histórico cujo epicentro foi o Ministério da Educação e Saúde comandado por Gustavo Capanema, de 1934 a 1945, o mais longevo ministro desta pasta que o Brasil já teve. Sem hesitar, Cardoso prova que a estratégia principal deste personagem foi a criação de um projeto autoritário que, lentamente, se expandiu para um totalitarismo cultural que perdura até os nossos dias. Segundo o biógrafo, Capanema foi um dos responsáveis, junto com Getúlio Vargas, por “uma mudança de mentalidade, que envolvia, de um lado, a ressignificação do papel do Estado como elemento necessário para a vida brasileira; e, de outro, a ideia de que este mesmo ator podia fazer uso de quantos instrumentos fossem indispensáveis para que seus objetivos fossem alcançados – mesmo que, para tanto, as liberdades fossem invadidas”. Desde jovem, Capanema era reconhecido entre seus pares como um intelectual invejável – e foi infelizmente esta habilidade que o levou aos corredores do poder, de acordo com o livro. A sua percepção sobre si mesmo era de que sua trajetória foi a de um “político da cultura”. Em outras palavras: o seu Ministério da Educação e Saúde não foi apenas uma revolução política ou técnica. Foi sobretudo uma revolução nos fundamentos da cultura tupiniquim, muito semelhante ao que o dono da pasta nestes tempos de Brasil acima de todos, com Deus acima de tudo – o sr. Abraham Weintraub –, quer fazer na estrutura educacional brasileira. A diferença é que, desta vez, o ministro dos nossos dias não tem ideias próprias. Somente retalhos confusos, disfarçados com a retórica apocalíptica de um marxismo e de um a guerra culturais que, na verdade, são palavras de ordem para incitar uma militância que deseja apenas o caos. Uma biografia admirável, corajosa e fundamental para se entender esses dias plenos de “som e fúria”.

O Brasil inevitável: Ética, mestiçagem e borogodó, de Mércio Gomes (Topbooks, 413 páginas)

 por Joel Pinheiro da Fonseca, economista (Insper) e mestre em Filosofia (USP) – O antropólogo e ex-presidente da Funai Mércio Gomes tenta algo bastante fora de moda em seu novo livro. Na esteira de Darcy Ribeiro, com quem trabalhou nos anos 90 (e a quem, junto de Vilém Flusser e Luiz Sérgio Coelho de Sampaio, dedica o livro), Mércio busca a identidade nacional. Em meio à história de violência que foi a constituição do Brasil a partir da fusão de europeus, negros e índios, criou-se algo novo neste vasto território: um novo tipo de homem e de sociabilidade. A mestiçagem – cuja origem não foi apenas violenta, como ele bem descreve – não misturou apenas raças, mas também culturas. Em geral, salienta-se muito a herança portuguesa para nosso jeito de ser, mas o autor, com sua extensa experiência junto aos índios, consegue mostrar que muito do modo de ser tupi está presente conosco até hoje. Em tempos em que esquerda e direita, em guerra, propõem visões apenas negativas do Brasil (para a esquerda, o país da desigualdade e da exploração; para a direita, o país da preguiça e da corrupção), Mércio ousa nos pintar um Brasil como ele é em toda sua complexidade, no que deixa entrever o que ele poderia ser, o seu potencial ainda inexplorado. Sem nunca deixar de enfrentar nossas piores características, como o desprezo pela coisa pública e o racismo. Apesar de um ou outro momento fora de lugar – como páginas algo ternas defendendo o hábito de criar passarinhos em gaiolas e uma longo e desnecessário panorama da história da filosofia ocidental à luz das teorias de Luiz Sérgio Coelho de Sampaio – as ambições desse livro ousado, recheado de história e antropologia, podem inspirar qualquer leitor em busca de um Brasil que possa nos inspirar. Se queremos superar nossas divisões e adquirir um verdadeiro orgulho nacional por aquilo que nos distingue, talvez parte da resposta esteja neste caminho.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Diplomacia Sul-Sul: existe alguma vantagem nessa coisa? - Paulo Roberto de Almeida

Transcrevendo o que foi publicado no blog Amálgama, neste link: http://www.amalgama.blog.br/08/2014/opcao-preferencial-pelo-sul-um-novo-determinismo-geografico/
Meridionais: apreciai..., com moderação...
Paulo Roberto de Almeida

A opção preferencial pelo Sul: um novo determinismo geográfico?

A diplomacia Sul-Sul é melhor, mais produtiva, mais benéfica e de maiores retornos concretos do que a diplomacia tradicional?
mapamundi2

Introdução

A temática da política externa voltada para as relações Sul-Sul tem sido enfatizada de maneira recorrente nos últimos anos; para ser mais exato, desde o início do governo Lula, numa espécie de retomada de alguns dos padrões da diplomacia praticada nos tempos da política externa independente (1961-1964) e, novamente, na era Geisel (1974-1979). Grande parte da produção universitária brasileira sobre a política externa nos governos petistas tende a considerar a diplomacia brasileira a partir de 2003, e mais especificamente a concepção Sul-Sul que a sustenta, como orientações eminentemente positivas para a postura internacional do Brasil. De fato, a recepção dessas políticas no ambiente acadêmico tem sido a melhor possível, aliás, talvez até mais do que isso, na medida em que tal diplomacia aparece, em muitos escritos, como uma determinação absolutamente necessária para a política externa brasileira, quaisquer que sejam os resultados efetivos desse tipo de política no contexto em que ela é operada. A postura adotada neste ensaio se coloca em desacordo conceitual, quando não em contraposição política, com esse tipo de orientação predominantemente Sul-Sul da diplomacia brasileira desde 2003, por razões que serão expostas ao longo do texto.
É de se esperar que os processos e programas de cooperação científica, cultural ou tecnológica entre os países, sem descurar dos fluxos dos mais diversos tipos, nas áreas financeira, educacional, militar, ou simplesmente turística, sejam desenvolvidos em todas as direções possíveis ou existentes, em especial em estreito contato com os países que melhores condições oferecem para transferências de tecnologia, fluxos de investimentos diretos, cooperação científica e educacional, enfim, em todas as benesses possíveis da civilização moderna. Em resumo, e preventivamente, a interação que uma diplomacia inteligente deveria buscar para a nação que representa deveria ser dirigida a todos os quadrantes do globo, com ênfase naquelas direções com maiores possibilidades de ser estabelecido um relacionamento mutuamente benéfico (e mais ainda, no caso de países menos desenvolvidos, unilateralmente proveitoso).
Tendo estes elementos presentes, como supostos de senso comum, o que poderia levar dirigentes políticos, ou diplomáticos, a preferir a parte em lugar do todo, a eximir-se de explorar o conjunto de possibilidades de cooperação, substituindo uma ampla interface por um número mais reduzido de opções? Dito de outra forma: o que poderia levá-los a colocar uma viseira unidirecional no horizonte de relacionamentos externos do país? Por que, finalmente, amputar o país da exploração irrestrita do estoque universal de conhecimento humano acumulado até os nossos dias?

Um novo determinismo geográfico na política externa brasileira?

Quando se fala de uma “política externa voltada às relações Sul-Sul”, se as palavras possuem algum significado preciso, se entende que as relações internacionais desse país chamado Brasil devem estar prioritariamente voltadas para essa tal dimensão regional, não exatamente planetária, mas voltada para o hemisfério Sul, isto é, para os territórios, regiões e países normalmente identificados como periféricos, dependentes, em desenvolvimento, emergentes, ou outras variantes dessa mesma família. O conceito não é tão estreitamente geográfico, quanto ele é flexivelmente político, uma vez que alguns desses países podem não se conformar, exatamente, a essa geografia ou a esse padrão típico das nações em desenvolvimento, ou seja, ex-colônias ou dependências europeias a partir dos quatro ou cinco séculos após os “descobrimentos” europeus.
Por exemplo, a despeito do fato de que a China se situe no hemisfério Norte, e de que ela conduza, efetivamente, uma política estratégica, comercial, financeira, política, ou qualquer outra objetivamente orientada a todos os quadrantes possíveis, mas mais enfaticamente em direção ao próprio Norte – e para constatar isso basta computar seus fluxos comerciais e financeiros, ademais de sua atuação no âmbito dos organismos multilaterais –, o gigante asiático é comumente identificado como sendo um país do Sul, em parte porque se trata de uma economia supostamente em desenvolvimento, ou porque ela costuma se opor às velhas potências hegemônicas. Mas, com base naquilo que conta, de fato, ou seja, sua postura estratégica, seu poder nuclear, seus intercâmbios econômicos, seria a China, verdadeiramente, um país do Sul? Existem dúvidas, mas admitamos que sim. Ela não define, em todo caso, sua diplomacia como Sul-Sul.
Para todos os efeitos práticos, a política Sul-Sul costuma se referir justamente aos países não hegemônicos, ou seja, todos aqueles que não foram potências imperiais ou poderes coloniais no passado remoto, ou mais recentemente. Portugal, a esse título, seria uma potência hegemônica? Também existem dúvidas a esse respeito. E a Espanha, se enquadra na categoria? Certamente até a era das independências latino-americanas, mas com menos certeza depois disso. E a pequena Holanda? Também se encaixa na noção de potência hegemônica? Talvez. Ao longo da história, países que se projetaram hegemonicamente sobre outros, durante certo período – como o Império Otomano, por exemplo, ou a própria China imperial – terminaram por se encontrar identificados ao conjunto de nações dependentes ou periféricas. No conjunto, o conceito do Sul se aplica ao que se convencionou habitualmente chamar de “Terceiro Mundo”, ou Grupo de países em desenvolvimento, G77, embora sua diversidade seja hoje tão importante quanto sua composição ao longo das quatro ou cinco décadas pós-Segunda Guerra Mundial.
Abordando concretamente o caso em espécie, parece evidente que países que são de fato grandes potências – como China ou Rússia, por exemplo – podem ser eventualmente assimilados ao conceito geopolítico do Sul, que parece compreender todos os países que não exerceram um papel dominador na era da preeminência europeia e dos países desenvolvidos que emergiram a partir do colonialismo inglês. A Rússia, por exemplo, se encaixa mal no perfil “Terceiro Mundo” – já que se trata de uma potência imperial, bem mais importante no passado do que atualmente –, mas ainda assim ela é considerada uma aliada para grande parte das causas do Sul; a China, por sua vez, sempre se considerou, e foi considerada, um país em desenvolvimento, mas ela nunca cingiu suas relações internacionais e suas estratégias de política externa ao grupo identificado com a sigla G77.
Em todo caso, nenhum dos dois, Rússia ou China, se enquadra na categoria “ocidental”, ou seja, das modernas democracias de mercado, tal como definida nos trabalhos do historiador britânico Niall Ferguson, um convencido adepto das bondades do imperialismo para o avanço da civilização. O Brasil, que no passado da Guerra Fria também se identificava com a civilização cristã e ocidental, passou a se considerar, em algum momento dos anos 1970, como um país do Terceiro Mundo, e orgulhoso de sê-lo (ainda que nem todos, no Itamaraty, concordassem com o rótulo). Aparentemente, nos últimos dez anos, voltamos a aderir aos conceitos e posturas dos anos 1960 e 1970, até com o mesmo orgulho e empenho em continuar a pertencer à mesma família.
Assim, para a atual diplomacia brasileira, esses dois grandes países, tidos como não hegemônicos, parecem se encaixar numa definição ampla do Sul, de molde a poder justificar alguma coordenação de políticas e o estabelecimento de alianças e de plataformas conjuntas de ação, em itens da agenda internacional que, teoricamente, corresponderiam a objetivos compartilhados. Rússia e China, pelo menos, foram considerados como suficientemente “alinhados” com as teses principais da diplomacia brasileira, a partir de 2003, para legitimar o lançamento de iniciativas comuns, nos mais diversos foros do debate multilateral e bilateral, a exemplo do Brics (aliás, o único grupo diplomático no mundo a ter sido formado por uma sugestão externa aos próprios países envolvidos). Outros dois países, Índia e África do Sul, foram imediatamente reconhecidos como parceiros estratégicos para suscitar a criação de um outro grupo, o IBAS, que responde perfeitamente à definição das “relações Sul-Sul” para essa nova diplomacia brasileira.
Independentemente, porém, do leque concreto de países mobilizados para fins de formação de grupos e para coordenação de posições, temos primeiro de considerar a questão “filosófica”, que consiste a examinar se esse direcionamento geográfico se justifica no plano das intenções e dos resultados práticos, não só para a diplomacia brasileira, mas para o país, tão simplesmente, para sua economia e sua sociedade.
Assim sendo, o que é uma diplomacia Sul-Sul do ponto de vista do Brasil? Ela é, obviamente, uma mudança de eixo no relacionamento externo do país, apontando preferencialmente para países do Sul, tanto em sua acepção geográfica quanto no plano geopolítico. Por que isso e como isso se coaduna (ou não) com as posturas tradicionais da diplomacia brasileira, e como isso se encaixa no leque de possibilidades abertas, no supermercado da História, à economia ou à sociedade brasileira? Nosso país deve praticar uma diplomacia Sul-Sul? Ela é melhor, mais produtiva, mais benéfica e de maiores retornos concretos do que a velha diplomacia sem marcas geográficas ou geopolíticas definidas?
Obviamente que seus formuladores, promotores, patrocinadores e operadores dirão que sim, que ela é boa, e que de fato não discrimina os outros, os que sobraram nas outras direções, geralmente Norte, mas possivelmente também Leste e Oeste, ainda que não se saiba bem o que esses dois últimos termos significam atualmente, depois do fim da Guerra Fria. Visivelmente, a política externa brasileira voltou a ver o mundo segundo antigas linhas de divisão Norte-Sul, o que, por sinal, corresponde a velhos preconceitos de extração classista, ao gosto sindical: nós, de um lado, eles, do outro.
O significado do Sul tem a ver com uma assimetria básica que existiria no terreno das definições e das escolhas políticas, para alguns de caráter fundamental: de um lado, o Norte desenvolvido, capitalista, hegemônico e aparentemente arrogante, por vezes até unilateral e dominador; de outro, o Sul, periférico, dependente, explorado, enfim, em desenvolvimento e, portanto, naturalmente, interessado em posturas comuns para romper a dominação e tornar o mundo mais democrático e multilateral. Esse tipo de atitude já foi registrado na política externa brasileira em pelo menos duas épocas anteriores, nomeadamente a chamada “política externa independente”, dos anos 1961-1964, e depois o “pragmatismo responsável”, do governo Geisel (1974-1979).
A política externa do governo Lula, clara e oficialmente autodesignada como sendo Sul-Sul, reivindica plenamente essa herança das experiências anteriores, e proclama que retomou tradições anteriores de “independência” nas relações exteriores do Brasil, pretendendo com isso dizer que todas as demais administrações praticaram diplomacias alinhadas, dependentes, ou até submissas ao império ou aos organismos multilaterais de Washington. Deixemos esse maniqueísmo ridículo de lado, para passar a examinar, concretamente, as virtudes e méritos desse tipo de seletividade geográfica, ou suas limitações e insuficiências.

Alguns exemplos do novo determinismo geográfico e seus resultados práticos

Alguém acha, por exemplo, que os problemas sociais e políticos brasileiros têm algo a ver com os problemas sociais e políticos da Índia, ou da África do Sul? Alguém acha, em sã consciência, que grupos de trabalho, juntando burocratas dos três países, produzirão algo mais do que intensas viagens de burocratas governamentais e algumas belas declarações e programas de trabalho que prometem continuar juntando os mesmos burocratas, ou outros, em reuniões infinitas, tentando encontrar respostas comuns a problemas que são naturalmente, intrinsecamente, necessariamente diferentes, quando não incompatíveis entre si, no seu contexto, na sua forma e substância?
Alguém acha, de verdade, que um programa prometedor, em princípio, como o Ciência Sem Fronteiras, vai apresentar brilhantes resultados, se os candidatos brasileiros escolherem estudar nos mesmos países, ou na América Latina, ou então exclusivamente nos países ibéricos? Se os estudantes o fazem, em direção destes últimos, talvez seja porque não estejam suficientemente habilitados em inglês, francês ou alemão, para aproveitar o que de melhor a ciência produziu nos últimos duzentos anos. Mas alguém acha, sinceramente, que esse programa estará bem servido, e servirá ao país, numa direção essencialmente Sul-Sul, em lugar de se dirigir aos centros reconhecidos de excelência na ciência e na tecnologia mundiais? A tese Sul-Sul não parece sustentável nestes casos de qualificação científica e tecnológica.
No terreno das políticas comerciais, por exemplo, o grande sucesso apregoado logo no início do governo Lula, a formação do G20 comercial, durante a conferência ministerial da OMC, em Cancun, em setembro de 2003, visava, segundo o próprio, “dar um truco” nos países ricos e impedi-los de, mais uma vez, acertar acordos entre eles às custas dos países em desenvolvimento. Os objetivos formais do bloco seriam os de eliminar ou diminuir o protecionismo agrícola dos países avanços, seus subsídios internos à produção e as subvenções às exportações, que tanto prejudicam exportadores competitivos e não subvencionistas como o Brasil.
Visto o grupo mais de mais de perto, porém, a seletividade geográfica de suas demandas, justamente no sentido Sul-Sul, revela-se, na verdade, de uma esquizofrenia exemplar, já que aquilo que é solicitado aos ricos é mantido como legítimo pelos e para os seus integrantes. Ora, se admitirmos que a demanda crescente de bens alimentares nos próximos anos e décadas virá, basicamente, de grandes países em desenvolvimento, como China e Índia, precisamente – já que a expansão desses mercados nos países ricos será quase vegetativa, ademais da demanda não ser beneficiada por alta elasticidade-renda, nesses casos – então a derrogação feita em favor dos países do Sul não é exatamente conforme aos interesses do agronegócio brasileiro ou das exportações do Brasil, em geral, para esses mercados dinâmicos.
Tomemos um outro caso, o das políticas de promoção comercial, que deveriam colocar em evidência o fato elementar de que, o acesso a mercados, do ponto de vista microeconômico, não apresenta nenhuma distinção geográfica, de natureza política, étnica ou ideológica; ou seja, para o capitalista exportador, qualquer mercado é mercado, seja ele interno, externo, rico, pobre, preto ou branco, bastando que ele seja solvente, acessível e de preferência estável e crescente. Não se duvide, nesse particular, que os mercados consolidados dos países ricos do capitalismo desenvolvido apresentam as melhores perspectivas nesses quesitos, e assim entendem os países dinâmicos da Ásia, que já criaram a sua “nova geografia do comércio internacional”, como pretendia o presidente Lula, com base justamente nessas constatações elementares de senso comum: exportemos, para onde for e para quem puder comprar.
Mercados de países em desenvolvimento, no continente africano ou em outras regiões, podem ser interessantes para explorar e abastecer, mas não em detrimento de mercados consolidados e solventes (como os dos países desenvolvidos, por exemplo). Todos exportam para os EUA, um dos mercados mais abertos do mundo, e quase todos possuem saldos nas balanças bilaterais; seria uma maldição o Brasil ser um dos poucos países a exibir déficits nessa relação?
E por que o Brasil tolera, por exemplo, discriminação contra os seus produtos no intercâmbio com a Argentina, salvaguardas e medidas de defesa comercial abusivas e ilegais, tanto do ponto de vista do Mercosul, quanto no que se refere às regras do sistema multilateral de comércio? Por que o Brasil é, talvez, o único país no mundo que instituiu um programa de “substituição de importações”, que visa, segundo o presidente Lula, praticar uma “diplomacia da generosidade” com os seus vizinhos, importando seus produtos mesmo que eles sejam mais caros ou de menor qualidade do que os de outros ofertantes competitivos? Esta seria uma política Sul-Sul conforme aos nossos interesses nacionais, aos da comunidade brasileira de negócios?
Por que será que o Brasil parou de impulsionar a cooperação com os países do Norte? Seria porque eles foram ou são imperialistas, e não existe mais nada a aprender deles ou com eles? Por que o Itamaraty, e o próprio Instituto Rio Branco, cessou de fazer intercâmbios com outras regiões além da América do Sul, África e alguns poucos países asiáticos? Será que temos mais a aprender com países que, em vários quesitos se situam abaixo dos níveis já alcançados pelo Brasil em pesquisa científica e inovação tecnológica? A política Sul-Sul nos traria tantos benefícios quanto aqueles que manifestamente obtivemos, ao longo das últimas décadas, nas relação com países do Norte? Existe alguma rationale, além de simples postura política, que poderia explicar tudo isso?
Pode-se, eventualmente, invocar o princípio inventado da “não indiferença”, ou o dever de solidariedade, para justificar, por exemplo, a cooperação ou assistência ao desenvolvimento que o Brasil passou a prestar a países menos avançados, alguns, aliás, manifestamente miseráveis. Não se pode argumentar contra esse tipo de iniciativa, mas caberia lembrar, a propósito, que o Brasil segue o mesmo caminho dos países ricos que, nas últimas cinco ou seis décadas, despejaram dezenas, ou centenas de bilhões de dólares nesses países, sem que resultados palpáveis tenham resultado dessas ações.
Em outros termos, são pouquíssimos os exemplos, se algum, de algum país pobre que se tenha alçado de sua condição miserável com base na ajuda ao desenvolvimento, embora existam vários que ascenderam na escala do desenvolvimento com base na inserção produtiva global, no comércio e nos investimentos estrangeiros. Mas isso não é novo: nos anos 1950, ainda antes das independências africanas, um espírito lúcido como o economista britânico de origem húngara, Peter Bauer, alertava contra a propensão a pretender “ajudar” os países africanos, em lugar de inseri-los na economia mundial pela via do comércio e da interdependência econômica. Suas advertências permanecem cruelmente atuais. E, se quisermos, análises mais recentes, eu recomendaria a leitura dos trabalhos do ex-economista do Banco Mundial, William Easterly, que demonstrou como a ajuda externa estava prejudicando, em lugar de ajudar, os países assim assistidos. O Brasil pode fazer o mesmo, mas não deveria deixar de considerar essas advertências.
Mas, mesmo nos casos de alianças políticas, será que a bússola do Sul é a que melhor serve aos interesses do país? Os que argumentam positivamente podem invocar a surrada tese dos interesses comuns dos países dependentes, em face dos interesses dos países do Norte em preservar a ordem atual, para eles injusta e desigual, de distribuição de poder e influência no plano mundial. Não é preciso, novamente, afastar como paranoicas e conspiratórias tais visões das relações internacionais, talvez aceitáveis para mentes simplistas, e simplificadoras, dos que dividem o mundo em linhas classistas, mas que não apresentam a mínima consistência para mentes mais abertas e inteligências mais aguçadas. Infelizmente, grande parte da academia brasileira ainda se compraz com as teses intelectualmente indigentes da “dependência”, com as teorias mistificadoras do “chutando a escada”, enfim, com o eterno complô das elites e das classes dominantes, que supostamente impedem países do Sul na sua justa ascensão a patamares mais altos de desenvolvimento e de prosperidade.
A pobreza conceitual e a total inadequação histórica desses tipos de concepção em torno das relações internacionais poderiam nos fazer sorrir, pelo que têm de patético, se não fosse pelo trágico de estarem sendo disseminados, continuamente, em nossas academias, por vezes até por vozes autorizadas, ou supostamente tais. Um pouco mais de seriedade na pesquisa, e de honestidade intelectual, já deveriam ter afastado de vez as visões ingênuas do mundo, as concepções maniqueístas, os conceitos ultrapassados que, muitas vezes, passam por construções teóricas dignas de acolhimento no ambiente acadêmico que conhecemos no Brasil e em grande parte da América Latina.
Aliás, seminários, conclaves, colóquios ou encontros exclusivamente latino-americanos, tendem a suscitar sentimentos de cansaço intelectual, em face das mesmas ladainhas e slogans que certamente serão ouvidos: a integração regional vai trazer desenvolvimento, autonomia, independência e dignidade, pois apenas entre latino-americanos é possível construir um futuro comum, já que somos todos iguais, inteligentes e sobretudo preparados para as grandes tarefas da construção da soberania.
Esse ritual de mesmices simplórias, essa repetição infindável das mesmas receitas ultrapassadas, que certas mentes anacrônicas insistem em nos impingir, só podem provocar cansaço intelectual. Se a América Latina fosse tão boa em aplicar suas receitas de desenvolvimento quanto ela o foi em conceber suas pretensas virtudes autonomistas e desenvolvimentistas, aliás desde o final dos anos 1940, ela já seria, meio século depois, infinitamente mais desenvolvida, mais igualitária, mais justa e menos corrupta, do que ela é, de fato, atualmente.
Não é preciso percorrer a enciclopédia de soluções geniais aos seus problemas de subdesenvolvimento, pois equivaleria a repassar um cemitério inteiro de ideias fracassadas, mas que insistem em nos importunar, como zumbis conceituais que não querem desaparecer. Basta com citar duas obras de analistas conhecidos, ambos trabalhando em academias americanas e, portanto, altamente suspeitos aos olhos de muitos; não importa: como Machado de Assis, pode-se julgar quaisquer produções intelectuais pela consistência intrínseca de seus argumentos respectivos, não pela identidade de quem os expressa. Pode-se citar, em primeiro lugar, a análise de história econômica de Sebastian Edwards, um chileno que leciona na Califórnia, e que publicou, em 2010, Left Behind: Latin America and the False Promise of Populism (University of Chicago Press), um retrato realista, talvez cruel, do nosso longo declínio e dos muitos erros de políticas econômicas. Em segundo lugar, se coloca o conhecido sociólogo Francis Fukuyama, que em 2008 coordenou um seminário cujo resultado, organizado e publicado por ele recebeu um título quase similar: Falling Behind: Explaining the Development Gap Between Latin America and the United States (Oxford University Press, com edição no Brasil: Ficando para Trás; Rocco Editora), com a participação de conhecidos especialistas das duas regiões.

O novo determinismo geográfico: um novo fracasso à espreita?

Existiriam, ainda, muitos outros argumentos históricos, econômicos, políticos, ou até mesmo culturais, contra uma visão seletivamente restritiva, no âmbito geográfico, para uma definição estratégica de nossas principais políticas macro ou setoriais. Bastaria, aliás, alinhar outras razões, e elas seriam muitas, para não cair nesse tipo de reducionismo absurdo que consiste em privilegiar determinados parceiros, ou certas direções cardeais, na seleção dos relacionamentos, dos contextos de cooperação, na busca de soluções ou receitas de desenvolvimento.
Pode-se julgar todos os tipos de autonomismos superficiais, de soberanismos vazios, e de nacionalismos exacerbados como sendo especialmente nefastos na grande tarefa do desenvolvimento e do crescimento econômico sustentado. A abertura ao comércio e aos investimentos internacionais constitui uma boa política, a conjugar-se com a estabilidade macroeconômica, com a competitividade microeconômica, com a boa governança e alta qualidade dos recursos humanos, para alcançar fins benéficos, de inserção no mundo e de promoção da prosperidade social.
Um outro grande equívoco, obviamente, é achar que, trabalhando com apenas uma das partes se consegue chegar ao todo. Esse todo, não é preciso repetir, é a busca da pesquisa de ponta, da excelência intelectual, do avanço tecnológico; e o equívoco consiste em se privar do contato com o que existe de mais refinado no mundo em nome de não se sabe bem qual solidariedade política ou qual afinidade ideológica. É esse equívoco que está na origem dessa nefasta seletividade geográfica, para a qual não se pode encontrar nenhum mérito, nem mesmo o de continuar nas mesmas latitudes, climas e temperaturas.
A autonomia mental, a liberdade de escolha, a amplitude de visões, a mais completa seleção de opções, enfim, a total soberania geográfica nos relacionamentos externos parecem, de longe e em todas as hipóteses, as posturas mais adequadas na determinação das políticas, as que melhor respondem a nossas necessidades teóricas e práticas. Essa postura geral corresponde, aliás, ao livre arbítrio individual e à total liberdade de escolha, que devem sempre prevalecer nos assuntos humanos e sociais.
Esta é uma simples constatação de bom senso. Nunca devemos deixar de exercer nosso direito à total liberdade de espírito e à mais completa autonomia da razão. É bem melhor ser um completo anarquista do pensamento e um libertário incorrigível, do que ser um dependente de crenças alheias.
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Este ensaio é uma versão abreviada de um dos capítulos do recém-lançado Nunca Antes na Diplomacia…: A política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Editoria Appris).