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Paulo Roberto de Almeida
A opção preferencial pelo Sul: um novo determinismo geográfico?
Introdução
A temática da política externa voltada para as relações Sul-Sul tem sido enfatizada de maneira recorrente nos últimos anos; para ser mais exato, desde o início do governo Lula, numa espécie de retomada de alguns dos padrões da diplomacia praticada nos tempos da política externa independente (1961-1964) e, novamente, na era Geisel (1974-1979). Grande parte da produção universitária brasileira sobre a política externa nos governos petistas tende a considerar a diplomacia brasileira a partir de 2003, e mais especificamente a concepção Sul-Sul que a sustenta, como orientações eminentemente positivas para a postura internacional do Brasil. De fato, a recepção dessas políticas no ambiente acadêmico tem sido a melhor possível, aliás, talvez até mais do que isso, na medida em que tal diplomacia aparece, em muitos escritos, como uma determinação absolutamente necessária para a política externa brasileira, quaisquer que sejam os resultados efetivos desse tipo de política no contexto em que ela é operada. A postura adotada neste ensaio se coloca em desacordo conceitual, quando não em contraposição política, com esse tipo de orientação predominantemente Sul-Sul da diplomacia brasileira desde 2003, por razões que serão expostas ao longo do texto.É de se esperar que os processos e programas de cooperação científica, cultural ou tecnológica entre os países, sem descurar dos fluxos dos mais diversos tipos, nas áreas financeira, educacional, militar, ou simplesmente turística, sejam desenvolvidos em todas as direções possíveis ou existentes, em especial em estreito contato com os países que melhores condições oferecem para transferências de tecnologia, fluxos de investimentos diretos, cooperação científica e educacional, enfim, em todas as benesses possíveis da civilização moderna. Em resumo, e preventivamente, a interação que uma diplomacia inteligente deveria buscar para a nação que representa deveria ser dirigida a todos os quadrantes do globo, com ênfase naquelas direções com maiores possibilidades de ser estabelecido um relacionamento mutuamente benéfico (e mais ainda, no caso de países menos desenvolvidos, unilateralmente proveitoso).
Tendo estes elementos presentes, como supostos de senso comum, o que poderia levar dirigentes políticos, ou diplomáticos, a preferir a parte em lugar do todo, a eximir-se de explorar o conjunto de possibilidades de cooperação, substituindo uma ampla interface por um número mais reduzido de opções? Dito de outra forma: o que poderia levá-los a colocar uma viseira unidirecional no horizonte de relacionamentos externos do país? Por que, finalmente, amputar o país da exploração irrestrita do estoque universal de conhecimento humano acumulado até os nossos dias?
Um novo determinismo geográfico na política externa brasileira?
Quando se fala de uma “política externa voltada às relações Sul-Sul”, se as palavras possuem algum significado preciso, se entende que as relações internacionais desse país chamado Brasil devem estar prioritariamente voltadas para essa tal dimensão regional, não exatamente planetária, mas voltada para o hemisfério Sul, isto é, para os territórios, regiões e países normalmente identificados como periféricos, dependentes, em desenvolvimento, emergentes, ou outras variantes dessa mesma família. O conceito não é tão estreitamente geográfico, quanto ele é flexivelmente político, uma vez que alguns desses países podem não se conformar, exatamente, a essa geografia ou a esse padrão típico das nações em desenvolvimento, ou seja, ex-colônias ou dependências europeias a partir dos quatro ou cinco séculos após os “descobrimentos” europeus.Por exemplo, a despeito do fato de que a China se situe no hemisfério Norte, e de que ela conduza, efetivamente, uma política estratégica, comercial, financeira, política, ou qualquer outra objetivamente orientada a todos os quadrantes possíveis, mas mais enfaticamente em direção ao próprio Norte – e para constatar isso basta computar seus fluxos comerciais e financeiros, ademais de sua atuação no âmbito dos organismos multilaterais –, o gigante asiático é comumente identificado como sendo um país do Sul, em parte porque se trata de uma economia supostamente em desenvolvimento, ou porque ela costuma se opor às velhas potências hegemônicas. Mas, com base naquilo que conta, de fato, ou seja, sua postura estratégica, seu poder nuclear, seus intercâmbios econômicos, seria a China, verdadeiramente, um país do Sul? Existem dúvidas, mas admitamos que sim. Ela não define, em todo caso, sua diplomacia como Sul-Sul.
Para todos os efeitos práticos, a política Sul-Sul costuma se referir justamente aos países não hegemônicos, ou seja, todos aqueles que não foram potências imperiais ou poderes coloniais no passado remoto, ou mais recentemente. Portugal, a esse título, seria uma potência hegemônica? Também existem dúvidas a esse respeito. E a Espanha, se enquadra na categoria? Certamente até a era das independências latino-americanas, mas com menos certeza depois disso. E a pequena Holanda? Também se encaixa na noção de potência hegemônica? Talvez. Ao longo da história, países que se projetaram hegemonicamente sobre outros, durante certo período – como o Império Otomano, por exemplo, ou a própria China imperial – terminaram por se encontrar identificados ao conjunto de nações dependentes ou periféricas. No conjunto, o conceito do Sul se aplica ao que se convencionou habitualmente chamar de “Terceiro Mundo”, ou Grupo de países em desenvolvimento, G77, embora sua diversidade seja hoje tão importante quanto sua composição ao longo das quatro ou cinco décadas pós-Segunda Guerra Mundial.
Abordando concretamente o caso em espécie, parece evidente que países que são de fato grandes potências – como China ou Rússia, por exemplo – podem ser eventualmente assimilados ao conceito geopolítico do Sul, que parece compreender todos os países que não exerceram um papel dominador na era da preeminência europeia e dos países desenvolvidos que emergiram a partir do colonialismo inglês. A Rússia, por exemplo, se encaixa mal no perfil “Terceiro Mundo” – já que se trata de uma potência imperial, bem mais importante no passado do que atualmente –, mas ainda assim ela é considerada uma aliada para grande parte das causas do Sul; a China, por sua vez, sempre se considerou, e foi considerada, um país em desenvolvimento, mas ela nunca cingiu suas relações internacionais e suas estratégias de política externa ao grupo identificado com a sigla G77.
Em todo caso, nenhum dos dois, Rússia ou China, se enquadra na categoria “ocidental”, ou seja, das modernas democracias de mercado, tal como definida nos trabalhos do historiador britânico Niall Ferguson, um convencido adepto das bondades do imperialismo para o avanço da civilização. O Brasil, que no passado da Guerra Fria também se identificava com a civilização cristã e ocidental, passou a se considerar, em algum momento dos anos 1970, como um país do Terceiro Mundo, e orgulhoso de sê-lo (ainda que nem todos, no Itamaraty, concordassem com o rótulo). Aparentemente, nos últimos dez anos, voltamos a aderir aos conceitos e posturas dos anos 1960 e 1970, até com o mesmo orgulho e empenho em continuar a pertencer à mesma família.
Assim, para a atual diplomacia brasileira, esses dois grandes países, tidos como não hegemônicos, parecem se encaixar numa definição ampla do Sul, de molde a poder justificar alguma coordenação de políticas e o estabelecimento de alianças e de plataformas conjuntas de ação, em itens da agenda internacional que, teoricamente, corresponderiam a objetivos compartilhados. Rússia e China, pelo menos, foram considerados como suficientemente “alinhados” com as teses principais da diplomacia brasileira, a partir de 2003, para legitimar o lançamento de iniciativas comuns, nos mais diversos foros do debate multilateral e bilateral, a exemplo do Brics (aliás, o único grupo diplomático no mundo a ter sido formado por uma sugestão externa aos próprios países envolvidos). Outros dois países, Índia e África do Sul, foram imediatamente reconhecidos como parceiros estratégicos para suscitar a criação de um outro grupo, o IBAS, que responde perfeitamente à definição das “relações Sul-Sul” para essa nova diplomacia brasileira.
Independentemente, porém, do leque concreto de países mobilizados para fins de formação de grupos e para coordenação de posições, temos primeiro de considerar a questão “filosófica”, que consiste a examinar se esse direcionamento geográfico se justifica no plano das intenções e dos resultados práticos, não só para a diplomacia brasileira, mas para o país, tão simplesmente, para sua economia e sua sociedade.
Assim sendo, o que é uma diplomacia Sul-Sul do ponto de vista do Brasil? Ela é, obviamente, uma mudança de eixo no relacionamento externo do país, apontando preferencialmente para países do Sul, tanto em sua acepção geográfica quanto no plano geopolítico. Por que isso e como isso se coaduna (ou não) com as posturas tradicionais da diplomacia brasileira, e como isso se encaixa no leque de possibilidades abertas, no supermercado da História, à economia ou à sociedade brasileira? Nosso país deve praticar uma diplomacia Sul-Sul? Ela é melhor, mais produtiva, mais benéfica e de maiores retornos concretos do que a velha diplomacia sem marcas geográficas ou geopolíticas definidas?
Obviamente que seus formuladores, promotores, patrocinadores e operadores dirão que sim, que ela é boa, e que de fato não discrimina os outros, os que sobraram nas outras direções, geralmente Norte, mas possivelmente também Leste e Oeste, ainda que não se saiba bem o que esses dois últimos termos significam atualmente, depois do fim da Guerra Fria. Visivelmente, a política externa brasileira voltou a ver o mundo segundo antigas linhas de divisão Norte-Sul, o que, por sinal, corresponde a velhos preconceitos de extração classista, ao gosto sindical: nós, de um lado, eles, do outro.
O significado do Sul tem a ver com uma assimetria básica que existiria no terreno das definições e das escolhas políticas, para alguns de caráter fundamental: de um lado, o Norte desenvolvido, capitalista, hegemônico e aparentemente arrogante, por vezes até unilateral e dominador; de outro, o Sul, periférico, dependente, explorado, enfim, em desenvolvimento e, portanto, naturalmente, interessado em posturas comuns para romper a dominação e tornar o mundo mais democrático e multilateral. Esse tipo de atitude já foi registrado na política externa brasileira em pelo menos duas épocas anteriores, nomeadamente a chamada “política externa independente”, dos anos 1961-1964, e depois o “pragmatismo responsável”, do governo Geisel (1974-1979).
A política externa do governo Lula, clara e oficialmente autodesignada como sendo Sul-Sul, reivindica plenamente essa herança das experiências anteriores, e proclama que retomou tradições anteriores de “independência” nas relações exteriores do Brasil, pretendendo com isso dizer que todas as demais administrações praticaram diplomacias alinhadas, dependentes, ou até submissas ao império ou aos organismos multilaterais de Washington. Deixemos esse maniqueísmo ridículo de lado, para passar a examinar, concretamente, as virtudes e méritos desse tipo de seletividade geográfica, ou suas limitações e insuficiências.
Alguns exemplos do novo determinismo geográfico e seus resultados práticos
Alguém acha, por exemplo, que os problemas sociais e políticos brasileiros têm algo a ver com os problemas sociais e políticos da Índia, ou da África do Sul? Alguém acha, em sã consciência, que grupos de trabalho, juntando burocratas dos três países, produzirão algo mais do que intensas viagens de burocratas governamentais e algumas belas declarações e programas de trabalho que prometem continuar juntando os mesmos burocratas, ou outros, em reuniões infinitas, tentando encontrar respostas comuns a problemas que são naturalmente, intrinsecamente, necessariamente diferentes, quando não incompatíveis entre si, no seu contexto, na sua forma e substância?Alguém acha, de verdade, que um programa prometedor, em princípio, como o Ciência Sem Fronteiras, vai apresentar brilhantes resultados, se os candidatos brasileiros escolherem estudar nos mesmos países, ou na América Latina, ou então exclusivamente nos países ibéricos? Se os estudantes o fazem, em direção destes últimos, talvez seja porque não estejam suficientemente habilitados em inglês, francês ou alemão, para aproveitar o que de melhor a ciência produziu nos últimos duzentos anos. Mas alguém acha, sinceramente, que esse programa estará bem servido, e servirá ao país, numa direção essencialmente Sul-Sul, em lugar de se dirigir aos centros reconhecidos de excelência na ciência e na tecnologia mundiais? A tese Sul-Sul não parece sustentável nestes casos de qualificação científica e tecnológica.
No terreno das políticas comerciais, por exemplo, o grande sucesso apregoado logo no início do governo Lula, a formação do G20 comercial, durante a conferência ministerial da OMC, em Cancun, em setembro de 2003, visava, segundo o próprio, “dar um truco” nos países ricos e impedi-los de, mais uma vez, acertar acordos entre eles às custas dos países em desenvolvimento. Os objetivos formais do bloco seriam os de eliminar ou diminuir o protecionismo agrícola dos países avanços, seus subsídios internos à produção e as subvenções às exportações, que tanto prejudicam exportadores competitivos e não subvencionistas como o Brasil.
Visto o grupo mais de mais de perto, porém, a seletividade geográfica de suas demandas, justamente no sentido Sul-Sul, revela-se, na verdade, de uma esquizofrenia exemplar, já que aquilo que é solicitado aos ricos é mantido como legítimo pelos e para os seus integrantes. Ora, se admitirmos que a demanda crescente de bens alimentares nos próximos anos e décadas virá, basicamente, de grandes países em desenvolvimento, como China e Índia, precisamente – já que a expansão desses mercados nos países ricos será quase vegetativa, ademais da demanda não ser beneficiada por alta elasticidade-renda, nesses casos – então a derrogação feita em favor dos países do Sul não é exatamente conforme aos interesses do agronegócio brasileiro ou das exportações do Brasil, em geral, para esses mercados dinâmicos.
Tomemos um outro caso, o das políticas de promoção comercial, que deveriam colocar em evidência o fato elementar de que, o acesso a mercados, do ponto de vista microeconômico, não apresenta nenhuma distinção geográfica, de natureza política, étnica ou ideológica; ou seja, para o capitalista exportador, qualquer mercado é mercado, seja ele interno, externo, rico, pobre, preto ou branco, bastando que ele seja solvente, acessível e de preferência estável e crescente. Não se duvide, nesse particular, que os mercados consolidados dos países ricos do capitalismo desenvolvido apresentam as melhores perspectivas nesses quesitos, e assim entendem os países dinâmicos da Ásia, que já criaram a sua “nova geografia do comércio internacional”, como pretendia o presidente Lula, com base justamente nessas constatações elementares de senso comum: exportemos, para onde for e para quem puder comprar.
Mercados de países em desenvolvimento, no continente africano ou em outras regiões, podem ser interessantes para explorar e abastecer, mas não em detrimento de mercados consolidados e solventes (como os dos países desenvolvidos, por exemplo). Todos exportam para os EUA, um dos mercados mais abertos do mundo, e quase todos possuem saldos nas balanças bilaterais; seria uma maldição o Brasil ser um dos poucos países a exibir déficits nessa relação?
E por que o Brasil tolera, por exemplo, discriminação contra os seus produtos no intercâmbio com a Argentina, salvaguardas e medidas de defesa comercial abusivas e ilegais, tanto do ponto de vista do Mercosul, quanto no que se refere às regras do sistema multilateral de comércio? Por que o Brasil é, talvez, o único país no mundo que instituiu um programa de “substituição de importações”, que visa, segundo o presidente Lula, praticar uma “diplomacia da generosidade” com os seus vizinhos, importando seus produtos mesmo que eles sejam mais caros ou de menor qualidade do que os de outros ofertantes competitivos? Esta seria uma política Sul-Sul conforme aos nossos interesses nacionais, aos da comunidade brasileira de negócios?
Por que será que o Brasil parou de impulsionar a cooperação com os países do Norte? Seria porque eles foram ou são imperialistas, e não existe mais nada a aprender deles ou com eles? Por que o Itamaraty, e o próprio Instituto Rio Branco, cessou de fazer intercâmbios com outras regiões além da América do Sul, África e alguns poucos países asiáticos? Será que temos mais a aprender com países que, em vários quesitos se situam abaixo dos níveis já alcançados pelo Brasil em pesquisa científica e inovação tecnológica? A política Sul-Sul nos traria tantos benefícios quanto aqueles que manifestamente obtivemos, ao longo das últimas décadas, nas relação com países do Norte? Existe alguma rationale, além de simples postura política, que poderia explicar tudo isso?
Pode-se, eventualmente, invocar o princípio inventado da “não indiferença”, ou o dever de solidariedade, para justificar, por exemplo, a cooperação ou assistência ao desenvolvimento que o Brasil passou a prestar a países menos avançados, alguns, aliás, manifestamente miseráveis. Não se pode argumentar contra esse tipo de iniciativa, mas caberia lembrar, a propósito, que o Brasil segue o mesmo caminho dos países ricos que, nas últimas cinco ou seis décadas, despejaram dezenas, ou centenas de bilhões de dólares nesses países, sem que resultados palpáveis tenham resultado dessas ações.
Em outros termos, são pouquíssimos os exemplos, se algum, de algum país pobre que se tenha alçado de sua condição miserável com base na ajuda ao desenvolvimento, embora existam vários que ascenderam na escala do desenvolvimento com base na inserção produtiva global, no comércio e nos investimentos estrangeiros. Mas isso não é novo: nos anos 1950, ainda antes das independências africanas, um espírito lúcido como o economista britânico de origem húngara, Peter Bauer, alertava contra a propensão a pretender “ajudar” os países africanos, em lugar de inseri-los na economia mundial pela via do comércio e da interdependência econômica. Suas advertências permanecem cruelmente atuais. E, se quisermos, análises mais recentes, eu recomendaria a leitura dos trabalhos do ex-economista do Banco Mundial, William Easterly, que demonstrou como a ajuda externa estava prejudicando, em lugar de ajudar, os países assim assistidos. O Brasil pode fazer o mesmo, mas não deveria deixar de considerar essas advertências.
Mas, mesmo nos casos de alianças políticas, será que a bússola do Sul é a que melhor serve aos interesses do país? Os que argumentam positivamente podem invocar a surrada tese dos interesses comuns dos países dependentes, em face dos interesses dos países do Norte em preservar a ordem atual, para eles injusta e desigual, de distribuição de poder e influência no plano mundial. Não é preciso, novamente, afastar como paranoicas e conspiratórias tais visões das relações internacionais, talvez aceitáveis para mentes simplistas, e simplificadoras, dos que dividem o mundo em linhas classistas, mas que não apresentam a mínima consistência para mentes mais abertas e inteligências mais aguçadas. Infelizmente, grande parte da academia brasileira ainda se compraz com as teses intelectualmente indigentes da “dependência”, com as teorias mistificadoras do “chutando a escada”, enfim, com o eterno complô das elites e das classes dominantes, que supostamente impedem países do Sul na sua justa ascensão a patamares mais altos de desenvolvimento e de prosperidade.
A pobreza conceitual e a total inadequação histórica desses tipos de concepção em torno das relações internacionais poderiam nos fazer sorrir, pelo que têm de patético, se não fosse pelo trágico de estarem sendo disseminados, continuamente, em nossas academias, por vezes até por vozes autorizadas, ou supostamente tais. Um pouco mais de seriedade na pesquisa, e de honestidade intelectual, já deveriam ter afastado de vez as visões ingênuas do mundo, as concepções maniqueístas, os conceitos ultrapassados que, muitas vezes, passam por construções teóricas dignas de acolhimento no ambiente acadêmico que conhecemos no Brasil e em grande parte da América Latina.
Aliás, seminários, conclaves, colóquios ou encontros exclusivamente latino-americanos, tendem a suscitar sentimentos de cansaço intelectual, em face das mesmas ladainhas e slogans que certamente serão ouvidos: a integração regional vai trazer desenvolvimento, autonomia, independência e dignidade, pois apenas entre latino-americanos é possível construir um futuro comum, já que somos todos iguais, inteligentes e sobretudo preparados para as grandes tarefas da construção da soberania.
Esse ritual de mesmices simplórias, essa repetição infindável das mesmas receitas ultrapassadas, que certas mentes anacrônicas insistem em nos impingir, só podem provocar cansaço intelectual. Se a América Latina fosse tão boa em aplicar suas receitas de desenvolvimento quanto ela o foi em conceber suas pretensas virtudes autonomistas e desenvolvimentistas, aliás desde o final dos anos 1940, ela já seria, meio século depois, infinitamente mais desenvolvida, mais igualitária, mais justa e menos corrupta, do que ela é, de fato, atualmente.
Não é preciso percorrer a enciclopédia de soluções geniais aos seus problemas de subdesenvolvimento, pois equivaleria a repassar um cemitério inteiro de ideias fracassadas, mas que insistem em nos importunar, como zumbis conceituais que não querem desaparecer. Basta com citar duas obras de analistas conhecidos, ambos trabalhando em academias americanas e, portanto, altamente suspeitos aos olhos de muitos; não importa: como Machado de Assis, pode-se julgar quaisquer produções intelectuais pela consistência intrínseca de seus argumentos respectivos, não pela identidade de quem os expressa. Pode-se citar, em primeiro lugar, a análise de história econômica de Sebastian Edwards, um chileno que leciona na Califórnia, e que publicou, em 2010, Left Behind: Latin America and the False Promise of Populism (University of Chicago Press), um retrato realista, talvez cruel, do nosso longo declínio e dos muitos erros de políticas econômicas. Em segundo lugar, se coloca o conhecido sociólogo Francis Fukuyama, que em 2008 coordenou um seminário cujo resultado, organizado e publicado por ele recebeu um título quase similar: Falling Behind: Explaining the Development Gap Between Latin America and the United States (Oxford University Press, com edição no Brasil: Ficando para Trás; Rocco Editora), com a participação de conhecidos especialistas das duas regiões.
O novo determinismo geográfico: um novo fracasso à espreita?
Existiriam, ainda, muitos outros argumentos históricos, econômicos, políticos, ou até mesmo culturais, contra uma visão seletivamente restritiva, no âmbito geográfico, para uma definição estratégica de nossas principais políticas macro ou setoriais. Bastaria, aliás, alinhar outras razões, e elas seriam muitas, para não cair nesse tipo de reducionismo absurdo que consiste em privilegiar determinados parceiros, ou certas direções cardeais, na seleção dos relacionamentos, dos contextos de cooperação, na busca de soluções ou receitas de desenvolvimento.Pode-se julgar todos os tipos de autonomismos superficiais, de soberanismos vazios, e de nacionalismos exacerbados como sendo especialmente nefastos na grande tarefa do desenvolvimento e do crescimento econômico sustentado. A abertura ao comércio e aos investimentos internacionais constitui uma boa política, a conjugar-se com a estabilidade macroeconômica, com a competitividade microeconômica, com a boa governança e alta qualidade dos recursos humanos, para alcançar fins benéficos, de inserção no mundo e de promoção da prosperidade social.
Um outro grande equívoco, obviamente, é achar que, trabalhando com apenas uma das partes se consegue chegar ao todo. Esse todo, não é preciso repetir, é a busca da pesquisa de ponta, da excelência intelectual, do avanço tecnológico; e o equívoco consiste em se privar do contato com o que existe de mais refinado no mundo em nome de não se sabe bem qual solidariedade política ou qual afinidade ideológica. É esse equívoco que está na origem dessa nefasta seletividade geográfica, para a qual não se pode encontrar nenhum mérito, nem mesmo o de continuar nas mesmas latitudes, climas e temperaturas.
A autonomia mental, a liberdade de escolha, a amplitude de visões, a mais completa seleção de opções, enfim, a total soberania geográfica nos relacionamentos externos parecem, de longe e em todas as hipóteses, as posturas mais adequadas na determinação das políticas, as que melhor respondem a nossas necessidades teóricas e práticas. Essa postura geral corresponde, aliás, ao livre arbítrio individual e à total liberdade de escolha, que devem sempre prevalecer nos assuntos humanos e sociais.
Esta é uma simples constatação de bom senso. Nunca devemos deixar de exercer nosso direito à total liberdade de espírito e à mais completa autonomia da razão. É bem melhor ser um completo anarquista do pensamento e um libertário incorrigível, do que ser um dependente de crenças alheias.
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Este ensaio é uma versão abreviada de um dos capítulos do recém-lançado Nunca Antes na Diplomacia…: A política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Editoria Appris).
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