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sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

O trágico destino das meninas prostituídas dos garimpos da Amazônia, no relato de Ana Lélia Benincá Beltrame

Em livro, diplomata relata a rotina de abuso sexual e prostituição vivida por meninas e mulheres nos garimpos clandestinos da Amazônia

Ana Beltrame, ex-cônsul geral do Brasil em Caiena, transforma em ficção as violências sofridas por brasileiras em busca de ouro na fronteira mais inóspita do Brasil

O Globo | 28/1/2021, 4h30

A fronteira entre Brasil e Guiana Francesa é talvez a mais desconhecida e a de mais difícil acesso do Brasil. Na floresta densa do Parque Nacional das Montanhas do Tumucumaque, dizem, é possível entrar mas impossível sair. A rodovia BR-156, que liga a cidade de Oiapoque, ponto distante no Amapá, à capital Macapá não é asfaltada. Na época das chuvas, a lama a deixa intransitável. Diante da ausência quase total do Estado, a febre do ouro continua a originar centenas de garimpos clandestinos, lugares onde desvios são punidos de forma violenta e onde meninas e mulheres são as mais vulneráveis.

Cônsul-geral do Brasil em Caiena de 2008 a 2013, a gaúcha Ana Beltrame, de 68 anos, precisou, por diversas vezes, prestar assistência a menores brasileiros vítimas de abuso sexual e outras violências nessa região inóspita do país. Histórias reais que ela transformou em uma única ficção para seu primeiro livro. "O passeio de Dendiara" (Tema Editorial) é o relato do encontro de uma diplomata com uma menina em situação de risco, mas é também a descoberta de um país que a maioria de nós desconhece.

— Minha ideia ao criar uma ficção foi preservar todas as pessoas envolvidas, das crianças vítimas de abuso aos funcionários do consulado. Esse tipo de violência continua ocorrendo na fronteira entre Brasil e Guiana Francesa — afirma Beltrame, para quem o livro não é uma denúncia, mas um chamado à responsabilidade. — Não se sabe quem é o culpado. Mas esses crimes contra a infância têm responsáveis. E nós, agentes do Estado, temos que assumir a nossa responsabilidade.

Dendiara, a personagem que dá título ao livro, é a encarnação da tragédia da infância em um Brasil quase sem lei: analfabeta, sem documentos, abusada sexualmente em um garimpo clandestino, grávida aos 10 anos e abandonada sozinha em uma rodovia na região de fronteira.

— Casos como o da personagem Dendiara chegam ao consulado do Brasil em Caiena trazidos pela polícia francesa (a Guiana Francesa é um território ultramarino da França) que pede a nossa intervenção para conversarmos com a criança, entendermos sua história, acionarmos os conselhos tutelares em Macapá ou Belém e providenciarmos os documentos para que essa menor volte ao Brasil — explica Beltrame, cujo livro deixa claro a fragilidade da estrutura do Estado brasileiro na fronteira. — Há estrutura, mas ela não funciona. Postos como o Oiapoque são vistos como um sacrifício. É longe, quente, de difícil ligação com Macapá. Eu ligava e descobria que, por exemplo, o juiz de menores estava licenciado, fazendo mestrado Rio. Quando ele volta? Ninguém sabia. 

Em garimpos clandestinos, pequenos e escondidos sob a mata densa da Floresta Amazônica, mulheres costumam cozinhar e cuidar da roupa ou estão a frente de pequenos comércios que trazem aos homens itens como cigarros. Muitas se prostituem, incluindo crianças e adolescentes. No livro de Beltrame, a personagem Dendiara ajuda uma mulher mais velha, a "madrinha", na cozinha do garimpo. À noite, as duas se prostituem ou, como se diz na região, "fazem a puta".

— "Fazer a puta" é uma expressão que as pessoas da região trouxeram do francês, que é falado do outro lado da fronteira: faire la pute. É uma sofisticação da linguagem interessante porque as mulheres não são prostitutas, mas fazem a prostituta. Elas continuam sendo pessoas — explica Beltrame, ressaltando que a prostituição na região de fronteira é absolutamente naturalizada. — Conversei com várias brasileiras, muitas delas presas. O garimpo demanda força física, a prostituição é o que resta a essas mulheres para pegarem a parte delas do ouro. A febre do ouro enlouquece as pessoas, elas vão de qualquer jeito.

É importante lembrar que a maioria dessas mulheres chegam ao garimpo por vontade própria. Muitas pensam que vão fazer a puta por um ano e comprar a casa própria. A maioria não consegue, adoece, não volta. As conquistas feministas, tão debatidas nas grandes capitais brasileiras, não chegaram à fronteira do Brasil com a Guiana Francesa, onde barcos com trabalhadoras do sexo navegam entre portos remotos. São chamados de "putanic".

— É uma região onde o Brasil arcaico se choca com o Brasil moderno. As conquistas feministas não chegaram lá, e essas mulheres não esperam que cheguem — afirma Beltrame, para quem o diálogo e a cooperação entre países é essencial nessa parte esquecida do mapa ("Diplomacia é pragmatismo", diz). — Mas o Estado brasileiro precisa conscientizar seus próprios agentes para que entendam que abuso sexual não é normal. Gravidez na infância mata, não é um fato da natureza. Crianças têm que brincar e estudar. Adolescentes não podem deixar a escola para serem mães. É preciso também conscientizar meninos e meninas sobre os riscos, além de quebrar o ciclo que perpetua a miséria social e econômica.

Em meio à violência nos garimpos clandestinos, meninos também não estão imunes. Se elas sofrem abuso sexual, eles são usados como mão-de-obra nos garimpos de galeria. Escuras e apertadas, essas estruturas são pequenas para o corpo de um homem adulto, por isso muitas vezes são escavadas por meninos, que têm seus corpos deformados por esse trabalho.

Atualmente, ela está baseada no Uruguai, seu último posto antes da aposentadoria no Itamaraty, Ana Beltrame diz que o Brasil não conhece a Amazônia, embora existam fontes de qualidade:

— Não conhecemos e não sei se temos o interesse em conhecer. Há muita pesquisa acadêmica valiosa sendo feita nas universidades do Norte do país. Esse acervo de conhecimento é precioso, pago pelo Estado, e nós precisamos ler as teses dessa moçada que pesquisa nas federais do Amazonas, do Pará e do Amapá. A Amzônia não era parte do Brasil até o século XIX. Fizemos conquistas, mas precisamos fazer aquilo que é bom para as pessoas da região.

https://oglobo.globo.com/celina/em-livro-diplomata-relata-rotina-de-abuso-sexual-prostituicao-vivida-por-meninas-mulheres-nos-garimpos-clandestinos-da-amazonia-24854893