Não intervenção para todos
Por Arturo C. Porzecanski
Valor Econômico, 21/03/2014
Nas últimas semanas, o Brasil vem decepcionando aqueles que gostariam de ver o país exercendo um papel de liderança regional no caso da Venezuela, pois está singularmente posicionado para mediar uma solução política construtiva para o confronto entre o presidente Nicolás Maduro e seus oponentes. A posição oficial de Brasília é de que o governo de Dilma Rousseff está meramente aderindo ao princípio bem estabelecido de não intervenção. Afinal de contas, o Brasil não gostaria de ter alguém para lhe dizer como lidar com suas manifestações urbanas. Então, por que deveria aconselhar Caracas sobre como resolver seus problemas políticos internos?
Se considerarmos que o princípio da não intervenção deva ser aplicado de maneira equânime, isso significa que o Brasil também deve se negar a intervir nos problemas da Argentina. Nesse caso, no entanto, é a Casa Rosada que quer ver o Brasil intervindo ao seu favor. Na semana passada, o assessor especial do Palácio do Planalto, ministro Marco Aurélio Garcia, esteve na residência Olivos para conversar com a presidente Cristina Kirchner ao mesmo tempo em que funcionários dos ministérios da Economia dos dois países se encontraram para buscar uma saída para a forte crise que afeta o comércio bilateral há tempos. Justamente no momento em que Buenos Aires pressiona ativamente Brasília para apresentar um parecer jurídico junto à Corte Suprema americana - um documento de amicus curiae ("amigo da corte") -, defendendo a recusa da Argentina em pagar seus credores nos Estados Unidos, Europa e mesmo na Argentina.
O rating de crédito do Brasil já está ameaçado. Não há nenhum benefício em colocar o Brasil em risco no mercado internacional de capitais por meio de um documento jurídico em que Brasília se alie a um devedor notoriamente ruim como a Argentina
A história é longa e envolve investidores em títulos argentinos que não tiveram pagas suas dívidas desde 2001 - ainda que Buenos Aires tenha pago outros investidores que concordaram com o perdão da dívida maciça exigido pelo governo da Argentina em 2005. No entanto, ocorre que os detentores de títulos que se recusaram a fazer tais concessões à Argentina estavam totalmente dentro de seus direitos legais. Eles são protegidos pelas leis dos Estados Unidos, que lhes dão o direito de rejeitar qualquer reestruturação da dívida que não tenha sido negociada ou acordada. E a Argentina é obrigada a pagá-los. Vendeu esses títulos nos Estados Unidos com uma promessa explícita de proteger os direitos dos investidores, conforme especificado pela lei dos Estados Unidos, e também de aceitar eventuais interpretações jurídicas a serem feitas pelos tribunais nos Estados Unidos em caso de qualquer disputa.
O que a Argentina tenta combater atualmente é uma série de decisões judiciais segundo as quais, no âmbito dos contratos assinados na década de 1990, quando vendidos os títulos em questão, ela é obrigada a tratar todos os seus credores de forma não discriminatória. Ou seja, se a Argentina tem dinheiro suficiente para pagar a maior parte dos detentores dos títulos, como tem feito desde 2005, então deve pagar todos eles. Nas últimas semanas, a Argentina pediu à Corte americana para rever as decisões dos tribunais inferiores, argumentando que exigir que o país trate todos os investidores da mesma forma interfere no seu direito soberano de decidir como usar as reservas internacionais. Ora, Buenos Aires sabia que esta era a condição quando vendeu seus títulos para credores internacionais nos Estados Unidos e agora quer mudar as regras do jogo para se beneficiar?
Buenos Aires pediu para governos em Brasília, México, Washington e alguns países da Europa para entrarem com petições junto à Corte dos Estados Unidos defendendo a soberania da Argentina. Ao Brasil, principal parceiro do Mercosul, aparentemente, tem oferecido rebaixar as travas comerciais em troca do apoio de Brasilia no processo que está na Corte Suprema, algo que soa mal, considerando o histórico recente desta relação. O desespero argentino é tamanho porque o país observa uma acentuada queda em suas reservas ao mesmo tempo em que está sem acesso ao mercado de crédito internacional por ser um mau pagador. Por enquanto, uma coisa já ficou clara: o mais influente "amicus curiae", que seria dos Estados Unidos, não será dado, porque na semana passada, o secretário de Estado do país, John Kerry, declarou em um painel do Congresso que os Estados Unidos não irão apoiar a posição da Argentina frente ao poder judiciário.
Brasília irá intervir neste caso jurídico do lado da Argentina? Certamente, espero que não. O Brasil já está queimado em círculos internacionais por suas parcerias econômicas e políticas com a Argentina e Venezuela, países cada vez mais amplamente percebidos como autoritários e desrespeitosos com os direitos civis e as liberdades democráticas tão prezadas pelo povo brasileiro. O Brasil também não tem motivos para interceder pelos hermanos argentinos, ao contrário, considerando o histórico das insuperáveis barreiras comerciais impostas pelo vizinho que só vem se agravando há anos, além de toda a dificuldade criada pela Argentina no recente processo de construção de um acordo comercial com a União Europeia, onde o Brasil foi obrigado a dar um ultimato para que a parceria fosse concretizada.
Além disso, o momento que o Brasil atravessa pede cautela, tendo em vista que o rating de crédito do país já está ameaçado por um downgrade potencial por causa da sua gestão econômica decepcionante. Assim, não há nenhum benefício em colocar o Brasil em risco permanente no mercado internacional de capitais por meio de um documento jurídico no qual Brasília se aliaria a um devedor notoriamente ruim como a Argentina. Dadas as circunstâncias, o Itamaraty seria bem aconselhado a aderir ao seu mais que apropriado princípio da não-intervenção.
Arturo C. Porzecanski, ex- economista-chefe para mercados emergentes de vários bancos de Wall Street, é professor de relações econômicas internacionais na American University, em Washington, DC.