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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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segunda-feira, 9 de abril de 2018

Os dez mandamentos, revistos, e criticados - Ladislau Dowbor, Paulo Roberto de Almeida

Uma de minhas principais atividades, enquanto observador cético das propostas governamentais e aquelas dos críticos sociais, é justamente capturar tudo o que existe de novo, no debate público, e agregar meus comentários contrarianistas.
É o que ocorre neste texto que praticamente não teve divulgação à época.
Faço isto agora, para ver se o debate avançou desde então.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 9 de abril de 2018


Os dez mandamentos de um novo profeta

Paulo Roberto de Almeida
Shanghai, 12 de abril de 2010. 

O sociólogo brasileiro Ladislau Dowbor elaborou uma nova versão para os dez mandamentos. [Ver o Le Monde Diplomatique Brasilde abrilde 2010 e o site Carta Maior de 7 de abril de 2010; também disponível no site do autor: http://dowbor.org/10dez%20mandamentos.doc.] Ele pretende, com sua “edição atualizada” de uma peça tão antiga quanto... Moisés, contribuir para tornar o mundo um lugar melhor do que ele é hoje. Ele acredita que vários dos “seus” mandamentos, “já foram experimentados e estão sendo aplicados em diversas regiões do mundo” e que são “iniciativas que deram certo, e cuja generalização, com as devidas adaptações e flexibilidade em função da diversidade planetária, é hoje viável”. 
Como eu considero que diversas recomendações são ou economicamente inviáveis ou politicamente ingênuas, permito-me aqui comentar cada uma delas, desculpando-me previamente pela redução necessária das notas explicativas a esses mandamentos, para não tornar o texto ainda mais longo do que o original. Convido, portanto, os leitores deste meu texto a visitar primeiro o link indicado para ler em sua integralidade, e sem qualquer “contaminação” prévia de meus argumentos, o pensamento do autor (aqui referido simplesmente como LD, com a transcrição do seu texto em itálico), para depois, então, voltar a este meu texto para conferir o que de eventualmente válido eu tenho a dizer sobre essa parábola pouco bíblica.
Metodologicamente, LD apresenta seus novos mandamentos como elementos de “processos decisórios”, ou seja, eles se destinam, claramente, a orientar políticas públicas, e por isso carregam singular responsabilidade. É a esse título que eu me permito comentar e criticar sua formulação, já que também pretendo tratar de políticas públicas. Os mandamentos de LD são seguidos, depois do enunciado propriamente dito, de uma “nota de explicação”, que é “destinada aos impenitentes”, ou seja, aos que eventualmente pensariam ou ousariam contrariar as recomendações do novo profeta. Coerentemente com esse tipo de exercício, eu também acrescento, às curtas explicações selecionadas a partir do original, minhas próprias notas explicativas (aqui referidas como PRA); elas se pretendem essencialmente críticas, tanto da metodologia quanto da substância dos argumentos defendidos por LD. 

I – Não comprarás os Representantes do Povo
LD: Resgatar a dimensão pública do Estado: Como podemos ter mecanismos reguladores que funcionem se é o dinheiro das corporações a regular que elege os reguladores? Se as agências que avaliam risco são pagas por quem cria o risco? Se é aceitável que os responsáveis de um banco central venham das empresas que precisam ser reguladas, e voltem para nelas encontrar emprego? 

PRA: A afirmação é de cunho eminentemente moral, como aliás era o espírito dos mandamentos originais, mas ela é politicamente ingênua a mais de um título. Já sabemos, desde Maquiavel pelo menos, que a questão do poder político não é tanto regulada pela dimensão moral, quando pelos interesses concretos de grupos, de categorias sociais ou de indivíduos, que conseguem se apropriar dos comandos do Estado em circunstâncias determinadas. A ingenuidade se reflete no fato que, nas sociedades modernas, complexas por definição, é bem conhecido que não é apenas o dinheiro das corporações que elege e “regula” representantes, se por corporações ou autor entende apenas aquilo que os marxistas chamavam de “capital financeiro”.
Basta olhar para qualquer parlamento do mundo democrático para constatar que ali estão representantes de todas as corporações, inclusive daquelas que representam legitimamente o povo trabalhador (sindicatos operários, de policiais militares, de líderes evangélicos, professores, militantes de partidos de esquerda, etc.). Se não fosse assim como explicar a eleição de tantos representantes do povo para o governo central em tantos países, inclusive e principalmente na América Latina? Ou algum sociólogo são de espírito acha que Chávez, Morales, Correa e o próprio Lula são os representantes das corporações do dinheiro? Eles são, sim representantes de corporações, mas sempre estiveram bem mais identificados com os interesses dos trabalhadores do que com os do capital. Ao menos até certo ponto...
Nem por isso o poder regulador do Estado se encontra diminuído, já que o novo chefe de governo pode propor medidas que diminuam o poder das corporações do dinheiro. Se Lula “regulou” mais em favor dos banqueiros e dos capitalistas do que dos trabalhadores, isto significaria, para o profeta dos novos mandamentos, que ele traiu sua classe de origem, que ele se vendeu às corporações do dinheiro? Contrariamente, também, ao que LD crê, o sistema de financiamento público das campanhas não representa uma garantia de que os que hoje figuram nos parlamentos deixariam de ser eleitos; afinal de contas, os sindicatos de trabalhadores também elegem seus representantes, aliás, em maior número do que os banqueiros: basta conferir o diretório dos parlamentares para constatar esta verdade elementar. 

II – Não Farás Contas erradas
LD: As contas têm de refletir os objetivos que visamos. O PIB indica a intensidade do uso do aparelho produtivo, mas não nos indica a utilidade do que se produz, para quem, e com que custos para o estoque de bens naturais de que o planeta dispõe. Conta como aumento do PIB um desastre ambiental, o aumento de doenças, o cerceamento de acesso a bens livres. O IDH já foi um imenso avanço, mas temos de evoluir para uma contabilidade integrada dos resultados efetivos dos nossos esforços, e particularmente da alocação de recursos financeiros, em função de um desenvolvimento que não seja apenas economicamente viável, mas também socialmente justo e ambientalmente sustentável. As metodologias existem, aplicadas parcialmente em diversos países, setores ou pesquisas. 

PRA: Trata-se de um debate tão antigo quanto a introdução da própria noção de produto agregado nas contas nacionais. Diversas adaptações são possíveis, em especial para acomodar o patrimônio ambiental e outros elementos qualitativamente mais importantes do que sua mera expressão monetária. Mas o mandamento de LD é capcioso, ao sugerir que os responsáveis pela atual metodologia das contas nacionais fazem “contas erradas”. Trata-se de uma acusação totalmente gratuita, e ofensiva, que não merece o nome de mandamento, lembrando que existe um Comitê na ONU que se ocupa precisamente de estatísticas nacionais, ademais de todos os demais organismos internacionais que tratam dessa matéria complexa. O IBGE, aliás, poderia reclamar...
O novo profeta LD pretende que seja “medido o que efetivamente interessa: o desenvolvimento sustentável, o resultado em termos de qualidade de vida da população. Muito mais do que o produto (output), trata-se de medir o resultado (outcome)”. Como LD não introduz nenhuma nova metodologia para permitir que isso seja possível – mesmo referindo-se a diversos exercícios de revisão em curso – podemos descartar o seu “mandamento” como a expressão de um mero desejo.

III – Não Reduzirás o Próximo à Miséria
LD: Algumas coisas não podem faltar a ninguém. A pobreza crítica é o drama maior, tanto pelo sofrimento que causa em si, como pela articulação com os dramas ambientais, o não acesso ao conhecimento, a deformação do perfil de produção que se desinteressa das necessidades dos que não têm capacidade aquisitiva. 

PRA: Ao que consta, Moisés não inventou a seguridade social, nem o Estado previdência, deixado à providência divina, e a própria iniciativa individual, cuidar de si próprio, do seu bem-estar e o de sua família. Essa tendência de achar que “algumas coisas não podem faltar a ninguém” é relativamente recente na história da humanidade, tendo surgido, provavelmente, depois que o pensamento socialista passou de sua fase pretensamente utópica para supostamente científica. Os resultados são conhecidos, tanto nos próprios experimentos socialistas – mais propensos a redistribuir velhas misérias do que a criar novas riquezas, segundo um conhecido crítico – como nos declaradamente capitalistas, nos quais tanto por mecanismos de mercado quanto pela ação redistributiva do Estado – via impostos e gastos sociais – as iniqüidades mais gritantes do velho capitalismo foram corrigidas ou contornadas. 
A verdade é que a pobreza extrema foi uma característica comum na maior parte das sociedades humanas até uma data ainda recente, tendo começado a reverter após a revolução industrial do século 18. Em quase todas as sociedades, é bom que se diga, existiram elites mais ou menos opulentas, pois isto corresponde a certa “lógica” do processo social: as tentativas de eliminação dessas elites, em projetos milenaristas ou declaradamente igualitaristas, desde a “conjuração dos iguais” de Babeuf, até os experimentos ainda remanescentes de Cuba e da Coréia do Norte, indicam o que se pode esperar desse tipo de engenharia social. Elites ainda existem e estão em permanente construção, como atestam certas máfias sindicais em ativo processo de ascensão social num país não muito longe daqui, ou no país de maior crescimento econômico do planeta, a China, que em algum momento superará o número de bilionários do maior país capitalista do mundo, os Estados Unidos. 
Não consta que, nos dois casos, o aparecimento desses bilionários se tenha dado à custa da transformação dos demais em miseráveis, como parece acreditar o novo profeta, ou toda uma tribo de ingênuos distribuidores da riqueza alheia. Os ricos são ricos por uma variedade de fatores, mas em nenhum caso por provocar a miséria dos seus concidadãos, o que só ocorre em casos extremos e não convencionais. LD, autor deste mandamento economicamente inepto, acredita que bastaria a ONU aplicar “300 bilhões de dólares [para] tirar da miséria um bilhão de pessoas que vivem com menos de um dólar por dia”. Pode ser, mas não é seguro que isso ocorra. Ele talvez não saiba, ou prefira ignorar, que desde o surgimento da cooperação oficial ao desenvolvimento (bilateral e multilateral), já foram transferidos 2,5 trilhões de dólares aos países em desenvolvimento, sem resultados visíveis até o momento.
Já esta na hora de desmantelar a “ideologia da ajuda ao desenvolvimento”, que não produziu nenhum exemplo de desenvolvimento sustentável com base na assistência financeira externa. Convido o profeta LD a indicar-me um caso, apenas um, de desenvolvimento, que seja o resultado da ajuda externa. E convido-o a ler o livro de William Easterly, economista do Banco Mundial por 16 anos: The White Man’s Burden: Why the West’s Efforts to Aid the Rest Have Done So Much Ill and So Little Good(New York: Penguin Books, 2007). Ele terá exemplos eloqüentes de como a ajuda externa pode, na verdade, prejudicar o processo de desenvolvimento, em lugar de promovê-lo. Ele talvez ignore também os trabalhos de Peter Bauer, economista britânico nas antigas colônias de Sua Majestade na África oriental e que, anos antes das independências, já recomendava que não se prestasse ajuda aos países africanos, e sim que eles fossem integrados aos circuitos comerciais do mundo. Nosso profeta também faria bem em refletir sobre os casos de Hong Kong, Cingapura e Dubai, que de pequenas localidades inóspitas – ainda que geograficamente bem localizadas – se converteram em gigantes financeiros e comerciais, apenas graças aos mercados, não à ajuda externa. Livres mercados funcionam: acredite nisso LD...

IV – Não Privarás Ninguém do Direito de Ganhar o seu Pão
LD: Universalizar a garantia do emprego é viável. Toda pessoa que queira ganhar o pão da sua família deve poder ter acesso ao trabalho. Num planeta onde há um mundo de coisas a fazer, inclusive para resgatar o meio ambiente, é absurdo o número de pessoas sem acesso a formas organizadas de produzir e gerar renda. Temos os recursos e os conhecimentos técnicos e organizacionais para assegurar, em cada vila ou cidade, acesso a um trabalho decente e socialmente útil. 

PRA: Garantia de emprego nunca houve, em nenhuma sociedade, antes do socialismo real, onde todo mundo, como se sabe, é empregado do Estado (como em Cuba, por exemplo). O seguro-desemprego, que o profeta LD recomenda, é o mais seguro meio de produzir desemprego que se conhece, só existindo em sociedades opulentas, com renda acumulada para exercer esse tipo de caridade social (à custa dos que trabalham e pagam impostos, obviamente). Essa concepção de que alguém está sendo privado de trabalho, ou da possibilidade de ganhar o dinheiro do seu pão diário, é de uma ingenuidade não existente nos mandamentos originais; os mandamentos mosaicos eram simples e diretos, e não exigiam nenhuma autoridade estatal para distribuir benesses sob a forma de empregos públicos ou seguro-desemprego. 
O profeta LD acredita que aumentar o salário mínimo e reduzir a jornada de trabalho levariam a uma “prosperidade mais democrática” (sic; pergunto eu: não pode haver uma prosperidade não democrática?; qualquer economista diria que isso é teoricamente possível, como ocorreu, talvez, na Alemanha hitlerista, mas acho que eles passaram a trabalhar mais). Obviamente, LD não pretende que isso seja feito por mecanismos de mercado, do contrário não colocaria esse seu argumento sob o escopo de um dos seus novos mandamentos. Não; o que se pretende é “decretar” o aumento gradual do salário mínimo e a redução da jornada de trabalho por via legislativa, não por negociações diretas entre as partes. Mais uma vez, não é seguro que ocorra o efeito benéfico; as experiências conhecidas oferecem resultados contraditórios, se não negativos: tudo o que se faz em detrimento das condições de competitividade em mercados integrados redunda em perdas de espaço para os produtores nacionais, diminuindo, portanto, a prosperidade de suas sociedades, democráticas ou não. 

V – Não Trabalharás Mais de Quarenta Horas
LD: Podemos trabalhar menos, e trabalharemos todos, com tempo para fazermos mais coisas interessantes na vida. A sub-utilização da força de trabalho é um problema planetário, ainda que desigual na sua gravidade. 

PRA: Trata-se de uma variante da recomendação anterior, e que portanto não poderia aspirar à condição de verdadeiro mandamento. É uma outra ilusão acreditar que reduzindo a jornada de alguns, mandatoriamente entende-se, isso criará mais empregos no setor. O mais provável é que essa determinação crie mais incentivos e estímulos para a automação e a terceirização, diminuindo, portanto, o emprego global e as possibilidades de empregabilidade. Não existe nenhum estudo empiricamente fundamentado que consiga provar que a diminuição da jornada produziu, em qualquer país, maior volume total de emprego, sendo mais provável ter ocorrido o contrário. 
O limite das 40 horas existe desde um século aproximadamente e na prática vem sendo alterado por experimentos difusos, implementados diretamente pelas partes (como o teletrabalho, por exemplo, geralmente pouco regulamentado nas legislações nacionais). Esse limite corresponde mais a um paradigma cultural do que a uma norma moral. Moisés, finalmente, decretou apenas um dia livre na semana, para honrar o deus único, tendo ele sido impreciso quanto à carga de trabalho nos demais dias. O novo profeta parece acreditar que os 50% do setor informal da PEA, no Brasil, se devem, talvez, a uma insuficiência de regulação social quanto a normas de trabalho, quando o contrário, mais uma vez, deve ser verdadeiro. 
Em todo caso, seu raciocínio econômico está, aqui, abaixo dos requerimentos desejáveis para um verdadeiro mandamento, pois ele parece acreditar que “ilhas tecnológicas ultramodernas” podem ser responsáveis pela geração de uma “massa de excluídos”, o que é totalmente incorreto, teórica e empiricamente. Não existe nenhuma correlação historicamente verificada quanto a que avanços tecnológicos tenham gerado maior desemprego global nas sociedades tocadas pelo fenômeno. LD também é ingênuo a ponto de acreditar que a “redução da jornada não reduzirá o bem estar ou a riqueza da população, e sim a deslocará para novos setores mais centrados no uso do tempo livre, com mais atividades de cultura e lazer”. Existem evidências, sim, de que se essa redução for operada compulsoriamente, ela pode reduzir o nível de prosperidade global na sociedade; o mercado já faz isso de forma bem mais eficiente, mas o novo profeta, diferente de Moisés, não acredita nos mercados.

VI – Não Viverás para o Dinheiro
LD: A mudança de comportamento, de estilo de vida, não constitui um sacrifício, e sim um resgate do bom senso. Neste planeta de 7 bilhões de habitantes, com um aumento anual da ordem de 75 milhões, toda política envolve também uma mudança de comportamento individual e da cultura do consumo. O respeito às normas ambientais, a moderação do consumo, o cuidado no endividamento, o uso inteligente dos meios de transporte, a generalização da reciclagem, a redução do desperdício – há um conjunto de formas de organização do nosso cotidiano que passa por uma mudança de valores e de atitudes frente aos desafios econômicos, sociais e ambientais. 

PRA:So what?, poderia perguntar o operário desejoso de comprar um carro, mais aparelhos eletrônicos e um iPhone para a sua filha. “Agora vem esse sociólogo e pretende matar o meu desejo de consumo?!” Essa mania de pretender reduzir o “consumismo” das pessoas, vinda de quem já tem um bom nível de vida, é propriamente autoritária, e se não fosse ingênua, seria patética em sua pretensão totalmente inoperante na prática e irrealizável sequer em intenção. O exemplo dado é o apagão no Brasil – que ocorreu em 2001, e não no final dos anos 1990 – que, em função da “punição sistemática dos excessos” teria supostamente permitido “uma racionalização generalizada do uso doméstico da energia”. Independentemente dos esforços de racionalização e de reciclagem que se façam, o fato é que as sociedades e as pessoas vão consumir mais, e gastar mais energia, em qualquer cenário prospectivo que se possa humanamente conceber. Os profetas apostam errado aqui.
Não tenho certeza de que Moisés teria sido ingênuo a ponto de emitir algum decreto contra o “martelamento publicitário que apela para o consumismo desenfreado”. Provavelmente não teria tido sucesso, nem em sua época, nem em qualquer outra que se possa conceber: é o consumismo das pessoas que produz emprego, renda e riqueza, que faz as sociedades avançarem tecnologicamente para resolver os problemas criados pela produção e consumo de bens e serviços, e que traz “prosperidade democrática” num ambiente de bem-estar generalizado. Profetas da austeridade deveriam retirar-se para uma montanha e lá viver, com suas raízes e cabras, e deixar o resto da sociedade produzir e consumir. 
Crentes de hoje (e de qualquer época), tenham apenas uma certeza: quando você virem ou ouvirem um novo profeta anunciando que “Precisamos de uma política pública de mudança do comportamento individual”, estejam certos de que o profeta em questão é profundamente autoritário e pretende alterar arbitrariamente seus hábitos ancestrais. Não se deixem convencer por ele: enxotem-no para a montanha...

VII – Não Ganharás Dinheiro com o Dinheiro dos Outros
LD: Racionalizar os sistemas de intermediação financeira é viável. A alocação final dos recursos financeiros deixou de ser organizada em função dos usos finais de estímulo e orientação de atividades econômicas e sociais, para obedecer às finalidades dos próprios intermediários financeiros. A atividade de crédito é sempre uma atividade pública, seja no quadro das instituições públicas, seja no quadro dos bancos privados que trabalham com dinheiro do público, e que para tanto precisam de uma carta-patente que os autorize a ganhar dinheiro com dinheiro dos outros. 

PRA: Em nenhuma outra relação social tão típica e tão indispensável nas sociedades modernas quanto a intermediação financeira existe um preconceito tão arraigado quanto à multiplicação do dinheiro pelo uso do próprio dinheiro: são enfadonhas as diatribes de velhos e novos profetas quanto à intermediação financeira, equiparada a algo maléfico, ou incapaz de gerar riqueza, como parece acreditar nosso novo profeta: “O dinheiro não é mais produtivo onde rende mais para o intermediário: devemos buscar a produtividade sistêmica de um recurso que é público.”
Engano total, não se trata de um recurso público, muito pelo contrário: durante a maior parte de uma história hoje dez vezes milenar, desde o aparecimento das primeiras sociedades agrícolas sedentárias – e potenciais usuárias, portanto, de meios de pagamentos para suas trocas –, o monopólio da emissão monetária e sua manipulação pelos poderes ditos públicos não existiu senão durante pouco mais de dois décimos desse longo itinerário. O que o profeta LD não percebe é uma coisa muito simples: o “recurso” só é “público” por que os Estados modernos se arrogaram o direito de apenas eles emitirem dinheiro, quando nenhum deles, repito NENHUM, cria a renda e a riqueza correspondentes; apenas tomam uma parte da riqueza da sociedade para legitimar uma série de serviços coletivos que servem de justificativa para o monopólio emissionista. O monopólio dos bancos centrais está conosco por não mais que duzentos anos, com resultados variáveis segundo os países...
O novo profeta comete um outro engano ingênuo: a intermediação financeira só rende mais do que a atividade produtiva lá onde o Estado, por apropriar-se de uma parte maior da riqueza da sociedade, paga juros nominalmente mais elevados do que os que seriam obtidos numa situação de equilíbrio de mercado, com livres fluxos de capitais. Ou o profeta dos novos mandamentos acredita que são os “banqueiros gananciosos” que fixam os juros de referência, aqueles que servem para remunerar o serviço dos títulos da dívida pública? Se ele acredita nisso, além de ingênuo, seria mal informado, pois quem cria as condições para que os intermediários financeiros tenham lucros de intermediação bem mais elevados do que o valor de juros que os mercados pagariam é o próprio Estado e suas práticas financeiras manipuladoras. 
Todos os mercados financeiros, em todos os países, são regulados, e não foi a ausência de regulação que provocou o caos financeiro de 2008, nos Estados Unidos, e a crise econômica mundial de 2009; o novo profeta não deve ter lido nada sobre a “regra de Taylor” ou sobre as garantias indevidas concedidas pelas agências públicas de financiamento de hipotecas, do contrário não alimentaria esse velho preconceito. 
LD repete uma obviedade: “A intermediação financeira é um meio, não é um fim.” Ele parece acreditar – mas não o prova absolutamente – que a “intermediação especulativa” gera “uma pirâmide especulativa e insegurança”, o que não quer dizer rigorosamente nada, a não ser que especuladores especulam. So what?, repetimos: e daí? Quando o profeta compra um bilhete de loteria ele também está “especulando”, e milhões com ele: o único a ganhar é o dono da loteria, o Estado, que concede uma esmola para atrair os incautos. Será que o profeta LD sabe, ou adivinha, quem é o dono da “intermediação financeira” nesse jogo especulativo que são as loterias?

VIII – Não Tributarás Boas Iniciativas
LD: A filosofia do imposto, de quem se cobra, e a quem se aloca, precisa ser revista. Uma política tributária equilibrada na cobrança, e reorientada na aplicação dos recursos, constitui um dos instrumentos fundamentais de que dispomos, sobretudo porque pode ser promovida por mecanismos democráticos. O eixo central não está na redução dos impostos, e sim na cobrança socialmente mais justa e na alocação mais produtiva em termos sociais e ambientais. A taxação das transações especulativas (nacionais ou internacionais) deverá gerar fundos para financiar uma série de políticas essenciais para o reequilíbrio social e ambiental. O imposto sobre grandes fortunas é hoje essencial para reduzir o poder político das dinastias econômicas (10% das famílias do planeta é dono de 90% do patrimônio familiar acumulado no planeta). O imposto sobre a herança é fundamental para dar chances a partilhas mais equilibradas para as sucessivas gerações. O imposto sobre a renda deve adquirir mais peso relativamente aos impostos indiretos, com alíquotas que permitam efetivamente redistribuir a renda. É importante lembrar que as grandes fortunas do planeta em geral estão vinculadas não a um acréscimo de capacidades produtivas do planeta, e sim à aquisição maior de empresas por um só grupo, gerando uma pirâmide cada vez mais instável e menos governável de propriedades cruzadas, impérios onde a grande luta é pelo controle do poder financeiro, político e midiático, e a apropriação de recursos naturais. 

PRA: Não taxar iniciativas meritórias, como empreendimentos culturais, por exemplo, pode até ser um mandamento recomendável, assim como a parte relativa à justa repartição e operacionalização da carga impositiva, mas aqui não se trata de um mandamento e sim de um “arranjo social” – de preferência não constitucional, pois economias são singularmente dinâmicas – que deve ser medido em função das características e peculiaridades de cada sociedade. A progressividade é um princípio que deve ser seguido, mas ela costuma adquirir tonalidades vingativas em certas áreas identificadas com os que pretendem atribuir “grande poder redistributivo ao Estado”.
O novo profeta tem uma ojeriza especial contra as grandes fortunas e contra as “atividades especulativas”, típica de certa tribo de redistribuidores da riqueza alheia. Ele acredita, por exemplo, que a “forte presença das corporações junto ao poder político constitui um dos entraves principais ao equilíbrio na alocação de recursos”, o que é uma repetição do seu primeiro mandamento, que já vimos ser em grande medida equivocado. LD também pretende que o Estado se ocupe mais fortemente de uma “política redistributiva que envolve política salarial, de previdência, de crédito, de preços, de emprego”. Já conhecemos a política estatal de controle de preços, e não parece que ela tenha funcionado bem, em qualquer lugar que tenha sido aplicada. 
Enfim, o tema é complexo e não pode ser esgotado aqui, mas vale uma última reflexão sobre o que o novo profeta designa como o seu “eixo central”, no que LD, aliás, é mais velho do que novo profeta: “o eixo central não está na redução dos impostos, e sim na cobrança socialmente mais justa”. Quem determinará o que é socialmente mais justo?: burocratas governamentais, o parlamento dominado pelas corporações rentistas – e os sindicatos de trabalhadores também são extremamente rentistas – ou a sociedade pretensamente “organizada”? Quando algum profeta falar que não pretende reduzir impostos, apenas torná-los mais “justos”, já se pode esperar exatamente o oposto, como a nossa experiência, infelizmente, ensina...

IX – Não Privarás o Próximo do Direito ao Conhecimento
LD: Travar o acesso ao conhecimento e às tecnologias sustentáveis não faz o mínimo sentido. A participação efetiva das populações nos processos de desenvolvimento sustentável envolve um denso sistema de acesso público e gratuito à informação necessária. A conectividade planetária que as novas tecnologias permitem constitui uma ampla via de acesso direto. O custo-benefício da inclusão digital generalizada é simplesmente imbatível, pois é um programa que desonera as instâncias administrativas superiores, na medida em que as comunidades com acesso à informação se tornam sujeitos do seu próprio desenvolvimento. A rapidez da apropriação deste tipo de tecnologia até nas regiões mais pobres se constata na propagação do celular, das lan houses mais modestas. O impacto produtivo é imenso para os pequenos produtores que passam a ter acesso direto a diversos mercados tanto de insumos como de venda, escapando aos diversos sistemas de atravessadores comerciais e financeiros. A inclusão digital generalizada é um destravador potente do conjunto do processo de mudança que hoje se torna indispensável. 

PRA: Meritório quanto aos fins, duvidoso quanto aos meios. Quando um profeta amigo do Estado afirma pretender oferecer “inclusão digital generalizada”, você já pode esperar um grande programa estatal de lan-housescomunitárias, banda larga a custo mínimo e outras maravilhas do gênero. O mais provável que ocorra é que o governo aumente a taxação sobre o setor ou sobre toda a sociedade, criando um fundo mágico de “inclusão digital social”, que depois será empregado em vários programas geniais de acesso à internet e ao computador: no que ele arrecada 100 unidades monetárias, pelo menos 20 já ficarão por conta da sua “intermediação financeira” estatal, e outros tantos se perderão em licitações públicas viciadas, desvios para fornecedores privilegiados, superfaturamento, gestão deficiente, etc.
Melhor seria se ele reduzisse a carga fiscal de toda a cadeia, ampliando o acesso e permitindo que a população utilizasse da melhor maneira que desejar o dinheiro não arrecadado por profetas amigos do povo, inclusive comprando computadores baratos e assinando provedores de acesso em total concorrência de oferta, para evitar os custos do atual oligopólio de redes, só rentável para o próprio governo (que fica com 40% do faturamento gerado). Esteja absolutamente seguro, cidadão, religioso ou não: esse novo mandamento da inclusão digital vai lhe custar uma parte da sua renda, antes de lhe entregar (ou não) o que promete... 

X – Não Controlarás a Palavra do Próximo
LD: Democratizar a comunicação tornou-se essencial.A comunicação é uma das áreas que mais explodiu em termos de peso relativo nas transformações da sociedade. Estamos em permanência cercados de mensagens. As nossas crianças passam horas submetidas à publicidade ostensiva ou disfarçada. A indústria da comunicação, com sua fantástica concentração internacional e nacional - e a sua crescente interação entre os dois níveis - gerou uma máquina de fabricar estilos de vida, um consumismo obsessivo que reforça o elitismo, as desigualdades, o desperdício de recursos como símbolo de sucesso. O sistema circular permite que os custos sejam embutidos nos preços dos produtos que nos incitam a comprar, e ficamos envoltos em um cacarejo permanente de mensagens idiotas pagas do nosso bolso. 

PRA: Mais um mandamento autoritário de quem pretende “democratizar o acesso aos meios de comunicação”. Conhecemos essa conversa de velhos profetas e o seu resultado não é bom; pior ainda: se trata de um retrocesso monumental no caminho da liberdade de expressão, como revelado nesta intenção: “a corporação utiliza este caminho [a tal da “indústria da comunicação, com sua fantástica concentração internacional e nacional”] para falar bem de si, para se apresentar como sustentável e, de forma mais ampla, como boa pessoa”; ou seja, a solução é penalizar a grande indústria, supostamente deixando tudo nas mãos do Estado justo e bom. 
O vezo autoritário, típica de novos profetas de um velho mundo, se revela em passagens como esta: “há como introduzir uma cultura nova, outras visões de mundo, cultura diversificada e não pasteurizada, pluralismo em vez de fundamentalismos religiosos ou comerciais”. Tudo isto a pretexto de “construir uma vida mais digna para o ‘andar de baixo’, para os dois terços de excluídos”, enfim, muito da cultura do “controle democrático dos meios de comunicação” que é típica daqueles que pretendem construir os seus próprios meios, supostamente não capitalistas e não monopolizadores, quase criando o “homem novo”. Sabemos também em que isso resultou, nas sociedades que foram mais longe nessa direção.Vade retro, profeta...
Trata-se, aliás, de um suposto mandamento contraditório: aplicado ao pé da letra, essa outra “visão do mundo” pretendida poderia cercear completamente o trabalho de exegese, que está na origem da genial criatividade do povo judeu, desde Moisés, e que também se transmitiu em certa medida para as religiões cristãs que emergiram dessa tradição. Creio que Moisés não aprovaria o princípio da coisa...

Finalmente, o novo profeta se arvora em “assessor do Altíssimo”, e pretende se apoiar nessa condição para recusar toda e qualquer avaliação negativa de seus novos mandamentos (como, por exemplo, esta aqui conduzida). Autoritariamente, LD proclama: “críticas, naturalmente, deverão ser endereçadas a Instâncias Superiores”, e declara-se disposto a acolher apenas “apreciações positivas e sugestões de outros Mandamentos”, o que é profundamente anti-acadêmico e anti-intelectual.
Sabemos que Moisés era passavelmente autoritário, mas não desconfiávamos que esse traço menos nobre do seu caráter tinha sido transmitido também aos novos profetas. Em todo caso, um acadêmico totalmente irreligioso como este que aqui escreve não pode considerar-se limitado por esse tipo de proibição unilateral. Afinal de contas, uma “outra visão do mundo” também tem o direito de se manifestar, por quaisquer meios disponíveis, mesmo aqueles dominados pelas “gigantescas corporações do dinheiro”, que não são nem um pouco relutantes em transmitir qualquer tipo de avaliação, mesmos as mais críticas e as menos positivas, desde que isso lhes garanta algum lucro na sua atividade de “intermediação” das comunicações.  
Ao fim e ao cabo, considero que o novo profeta falhou totalmente em sua missão de nos prover com um conjunto original de mandamentos, adequados às modernas sociedades de comunicação instantânea, de liberdade de expressão, de total criatividade e de completa abertura às iniciativas individuais. Isto se aplica mesmo àquelas iniciativas que possam conduzir a monopólios – de fato, não de direito – temporários, como é o caso de Mister Gates, um adolescente de classe média que começou na garagem da sua casa e que hoje está, pouco a pouco, perdendo o controle sobre as ferramentas que criou inovadoramente e que lhe permitiram lucros extraordinários nos últimos trinta anos. Nas sociedades livres, tudo isso é passageiro, e novas formas de comunicação e de criação de riqueza estão sempre sendo gestadas, bem mais, é verdade, na esfera privada do que na pública, como anacronicamente pretenderiam os velhos profetas de um mundo hoje virtualmente desaparecido. 
Sociedades inerentemente democráticas, aliás, não precisam de profetas ou de mandamentos: elas se organizam naturalmente, no respeito às liberdades individuais e na negociação recíproca de algumas poucas regras de convivência social – usualmente consolidadas num instrumento chamado constituição – que estão ali justamente para assegurar o direito de todos e cada um ao livre usufruto de suas iniciativas pessoais (o que inclui o direito de ficar rico, muito rico). Apenas mentalidades autoritárias pretendem regular compulsoriamente, taxar, extrair, criar direitos a muitas coisas – empregos, inclusão digital, igualdade, etc. – para, ao fim e ao cabo, fazer menos, com o nosso dinheiro, do que aquilo que nós mesmos poderíamos fazer na ausência de todos esses programas governamentais que pretendem oferecer maravilhas sociais e que só conseguem criar uma redistribuição da penúria. Tudo isso é conhecido...
Desde Moisés, aliás, podemos observar as sociedades que funcionam – ou seja, que criam riqueza e tornam as pessoas mais livres – e as que não funcionam, aquelas dotadas de um mandarinato extenso, que está ali para nos dizer o que é bom para nós mesmos. Não precisamos desse tipo de profeta ou de seus mandamentos autoritários. Preferimos um Moisés que apenas liberte o povo de seus grilhões; isso já basta. Todo o resto pode ficar com o próprio povo...
Shanghai, 12 de abril de 2010.