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quinta-feira, 30 de junho de 2022

O Brasil e a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia - Paulo Roberto de Almeida (Mackenzie)

 Se algo mudou, desde que escrevi esse artigo, foi para pior...

O Brasil e a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia

Embora as relações internacionais sejam mais caracterizadas pelas continuidades do que pelas rupturas, estas também ocorrem, geralmente em função de disputas diretas entre grandes potências. 

Paulo Roberto de Almeida

Palestra no Mackenzie, 13/05/2022

https://www.mackenzie.br/liberdade-economica/artigos-e-videos/artigos/arquivo/n/a/i/o-brasil-e-a-guerra-de-agressao-da-russia-contra-a-ucrania

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com; pralmeida@me.com)

Texto de apoio a palestra no encerramento da XX Semana de Ciências Sociais e Aplicadas da Universidade Presbiteriana Mackenzie, 

sobre o tema da “Guerra na Ucrânia e suas implicações para o Brasil” (13/05/2022)

Introdução: o panorama mundial nas primeiras décadas do século XXI

Vamos partir da seguinte constatação: o mundo andava muito aborrecido, com tudo de ruim que andava acontecendo desde a Grande Recessão dos países desenvolvidos na primeira década deste século, a partir de 2008. O mundo tinha se emocionado um pouco com as crises financeiras dos países emergentes nos anos finais do século e do milênio anterior: crise no México, nos países asiáticos, no próprio Brasil, moratória russa, falência do modelo cambial argentino e, para coroar o século XX, e o milênio anterior, o bug do ano 2000, que foi mais um blimp do que um bang. Depois entramos numa modorra capaz de adormecer os economistas, que sempre foram capazes de prever dez das três crises que efetivamente ocorreram: a China começou a crescer vertiginosamente, em seguida à sua admissão na OMC, em 2001, e todo mundo ficou contente, inclusive o Big Brother americano: as empresas ocidentais estavam ganhando dinheiro como nunca com a produção barata no gigante econômico chinês, o historiador Niall Ferguson previa a consolidação da Chimerica, a estreita complementaridade recíproca entre China e Estados Unidos, e o Brasil de Lula era inundado com um oceano de dólares, com a soja a 600 dólares a tonelada e o minério de ferro a quase 200. Um mundo chato, que parecia crescer indefinidamente, tanto que economistas respeitados passaram a prever um ciclo inédito de crescimento em moto perpétuo.

Assim parecia transcorrer a dinâmica da economia mundial, até que estourou a “exuberância irracional” do Alan Greenspan, seguida pelo furo da bolha do mercado imobiliário, em 2007, repercutindo imediatamente no sistema bancário e de seguros nos Estados Unidos, em 2008, produzindo um efeito de arrastro em todo o mundo desenvolvido, em 2009; o choque repercutiu até na China, que ainda assim manteve uma boa taxa de crescimento, mas resultou numa brutal queda no PIB brasileiro nesse mesmo ano. Pela primeira vez em muitas décadas, a crise econômica atingiu o centro dos países avançados, depois dos choques do petróleo nos anos 1970, da crise da dívida externa dos países latino-americanos nos anos 1980 e da crise dos mercados financeiros nos países asiáticos nos últimos anos do milênio, a “primeira crise financeira do século XXI”, como a designou o então Diretor-Gerente do FMI, Michel Camdessus; essa última, assim como as demais crises não pouparam o Brasil, que teve de se ajustar duramente nas últimas décadas do século XX e que teve de concluir três acordos stand-by de créditos emergenciais com o FMI e países credores por vários anos, desde a decretação da moratória russa, em 1998.

Depois disso, a recuperação começou em diversos mercados avançados e emergentes, com poucas mudanças estruturais na economia mundial, a despeito das primeiras sinalizações feitas por economistas “catastrofistas” – como por exemplo Nouriel Roubini, que está sempre prevendo a próxima crise “avassaladora” – no tocante um tímido processo de desglobalização e retraimento do comércio internacional com respeito ao crescimento do PIB mundial. Esse quadro se agravou quando um decidido opositor da globalização e do livre comércio foi eleito presidente dos Estados Unidos, prometendo demagogicamente “fazer a América grande novamente”, ou seja, uma política de introversão produtiva e de nacionalismo míope. Nunca antes, desde Bretton Woods, o governo americano havia se empenhado em desmantelar a ordem econômica global que ele mesmo havia se esforçado em construir, com bases nos princípios do multilateralismo incondicional e nas práticas da liberalização comercial.

Enquanto isso, a China, admitida no Gatt-OMC em 2001, continuava sua longa marcha em direção à sua inserção econômica global, primeiramente nos campos da divisão mundial do trabalho e dos intercâmbios comerciais globais, depois nas áreas da cooperação ao desenvolvimento, mas sobretudo nos investimentos em infraestrutura em países pobres. O Brasil se beneficiou enormemente da imensa avidez chinesa por commodities de todos os tipos, em especial grãos, carnes e minérios, assim como pela oferta concorrente à da indústria nacional de ampla gama de manufaturados de qualidade a preços extremamente reduzidos: o gigante asiático se tornou o principal parceiro comercial do Brasil desde 2009, destronando nesse setor os Estados Unidos, que sempre foram o primeiro parceiro bilateral em todos os quesitos da vida econômica desde mais de um século.

Depois de um fin-de-siècle marcado pela arrogância unipolar do império americano sobre a agenda mundial, a primeira década do século XXI foi, portanto, marcada por um sutil, silencioso, mas efetivo rearranjo das relações econômicas internacionais, com a ascensão fulgurante da China, uma presença também relativamente bem sucedida da Índia nos assuntos globais, e um lento, mas deformado, retorno da Rússia pós-soviética aos novos equilíbrios geopolíticos em conformação, contemporaneamente ao lamento do seu novo líder, Vladimir Putin, sobre a “maior catástrofe geopolítica do século XX”, que teria sido o desaparecimento da União Soviética. Aliás, o chanceler brasileiro do lulopetismo diplomático, Celso Amorim, dava início, em 2006, aos primeiros entendimentos com seu colega russo, Sergey Lavrov, para tornar o exercício puramente econômico de um funcionário de um grande banco de investimentos sobre as oportunidades de mercado existentes em quatro grandes países em desenvolvimento – justamente os BRICs, Brasil, Rússia, Índia e China – em um grupo diplomático formalmente estabelecido: a metamorfose ocorreu no final da década, para ser, logo em 2011, ampliada pelas mãos da China, visando incorporar a África do Sul a esse bloco pouco convergente de novos atores internacionais. 

Paralelamente, as novas ameaças surgidas depois dos ataques às torres gêmeas de Nova York e ao Pentágono em Washington, em setembro de 2001, quando os Estados Unidos adotaram uma postura absolutamente monotemática de “caça aos terroristas”, seguidas pelas incursões armadas da superpotência no Oriente Médio, resultando numa completa ruptura dos equilíbrios internos e geopolíticos em diversos países da região e do norte da África, o que provocou o intensificação dos fluxos migratórios irregulares em direção à Europa ocidental e outros países desenvolvidos. Atentados do terrorismo islâmico e emigração selvagem tiveram o poder de reavivar os sentimentos xenofóbicos de parte das populações desses países, dando novo alento a partidos de direita e movimentos nacionalistas em todos eles, sobretudo na Itália, na Áustria e Alemanha, em países da Europa central e oriental, inclusive nos Estados Unidos, onde o Partido Republicano foi praticamente sequestrado por um oportunista que já havia tentado a sorte com os Democratas, Donald Trump. Tal foi o início de uma grande mudança nas relações internacionais que vai se acentuar na terceira década deste século.

As grandes rupturas nos equilíbrios internacionais e os novos arranjos pós-Ucrânia

Embora as relações internacionais sejam mais caracterizadas pelas continuidades do que pelas rupturas – com base no fato de que um mesmo grupo restrito de grandes potências militares e economias avançadas continua a gerir a agenda mundial nos últimos séculos –, estas também ocorrem, geralmente em função de disputas diretas entre essas mesmas grandes potências. Num livro de duvidosa consistência teórica e baseado em fundamentação empírica bastante seletiva, o cientista político Graham Allison – conhecido autor de uma análise clássica sobre a crise dos mísseis soviéticos em Cuba, em 1962, The Essence of Decision: explaining the Cuban Missile Crisis (1971; 2ª ed.: 1999, com Philip Zelikow) – tentou prever a próxima grande catástrofe geopolítica, desta vez entre uma potência estabelecida, os Estados Unidos, e uma ascendente, a China.

Allison o faz sob a forma de um discutível dossiê organizado ao abrigo do ambíguo conceito de “armadilha de Tucídides”: A Caminho da Guerra: os Estados Unidos e a China conseguirão escapar da Armadilha de Tucídides? (Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020; tradução de Cássio de Arantes Leite a partir da 2ª. edição americana, Destined to War, 2017, edição original: 2015). À página 283 da edição brasileira, e precedendo um longo apêndice explicativo, Allison consigna uma tabela alinhando 16 grandes conflitos entre potências rivais, uma supostamente dominante, a outra ascendente, em torno de objetivos de supremacia naval ou territorial, 12 dos quais resultaram em guerras e apenas quatro não teriam apresentado solução bélica. Muitas das inserções apresentam alto grau de subjetividade, tanto pela natureza da disputa, quanto pela designação dos contendores ou a definição de guerra ou não guerra. Por exemplo, a 15ª “armadilha de Tucídides” seria o período da Guerra Fria, dos anos 1940 aos 80, com os EUA como potência dominante e a União Soviética como “potência em ascensão”, numa disputa pela dominação global, e que, segundo Allison, se teria concluído “sem guerra” (o que é altamente duvidoso, tendo em vista as muitas “guerras por procuração”, ou proxy wars, que foram travadas entre elas, geralmente no Terceiro Mundo). O 16º. e último conflito se teria desenvolvido desde a década de 1990 até o presente, entre Reino Unido e França, como potências dominantes, e a Alemanha, como potência em ascensão”, supostamente em busca do domínio ou influência política sobre a Europa, e que também estaria inconclusivo até o presente momento. 

Em ocasiões anteriores, notadamente por ocasião das guerras napoleônicas, do início do século XIX, da primeira guerra da Crimeia em 1853-55, da guerra franco-prussiana que redundou na unificação da Alemanha em 1870-71, das disputas russo-japonesas do final do século XIX e início do XX e, sobretudo, da segunda “guerra de trinta anos, da primeira metade do século XX, tais conflitos entre potências produziram mudanças nos cenários hegemônicos em escala regional ou mundial, tendo sido “resolvidos” por conferências diplomáticas de amplo escopo, em Viena (1815), Paris (1919) e San Francisco (1945), delas resultando novos modus vivendi entre as grandes potências, a última delas criando a ordem política multilateral sob a qual ainda vivemos, sob a égide das Nações Unidas. Essa ordem manteve-se relativamente intacta, a despeito de importantes transformações no cenário global ao longo das últimas oito décadas: descolonização das antigas dependências coloniais europeias, fim do império soviético, justamente, e ascensão da China ao primeiro escalão da economia global, com profundas alterações nas relações econômicas internacionais.

Pois bem, nos últimos três meses temos sido apresentados a uma variedade de cidades ucranianas antes praticamente desconhecidas – Kherson, Mariupol, Kharkiv –, devido aos dotes de “turismo bélico” de um novo Baedeker russo, Vladimir Putin. A guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, uma “república federada” da antiga União Soviética entre 1921 e 1991, pode estar lançando as bases de novos equilíbrios internacionais, com importantes alinhamentos e desalinhamentos regionais, tocando basicamente na geografia política europeia – especificamente a da União Europeia – e na geopolítica do mais relevante esquema de segurança e defesa desde o final dos anos 1940, a Otan. Tais desenvolvimentos certamente exigirão uma nova edição da duvidosa obra de Graham Allison sobre o temido conflito entre a Esparta-China e a Atenas-EUA, trazendo a Rússia de Putin ao centro de uma 17ª “armadilha de Tucídides”, ainda que, stricto sensu, a Rússia não poderia ser exatamente considerada uma “potência em ascensão”, talvez um poderoso revisionista bélico, mas dotado de base econômica muito reduzida para a sua amplidão territorial e pretensões geopolíticas.

Qualquer especulação sobre o novo cenário geopolítico a ser criado por alguma definição quanto à guerra de agressão da Rússia de Putin contra a Ucrânia depende, no entanto, mais da postura que possa exibir a China de Xi Jinping – e sua “aliança sem limites” com a Rússia de Putin – do que do estrito resultado dessa guerra inesperada, que terminará provavelmente num impasse, com a preservação da independência da Ucrânia, sua adesão quase certa à União Europeia e um status ainda indefinido com relação à Otan. A Rússia emergirá diminuída em seu prestígio internacional, abalada em sua base econômica, assim como excluída de diversos foros multilaterais, cabendo ainda aguardar quanto a novos desenvolvimentos e definições mais precisos com respeito à “aliança” sino-russa e com relação ao futuro do Brics, um grupo informal que comporta ainda Índia, Brasil e África do Sul. Sem argumentos adicionais nessa esfera da alta geopolítica mundial, caberia agora traçar o impacto político, econômico e diplomático desse conflito com respeito ao Brasil.

O Brasil, o direito internacional e a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia

Desde o Barão do Rio Branco, seguido por Rui Barbosa, passando por Oswaldo Aranha, chegando a San Tiago Dantas, os grandes nomes da diplomacia brasileira no século XX souberam imprimir, pelos seus escritos e ações, uma espécie de corpus doutrinal informal que, com base no absoluto respeito ao Direito Internacional e numa ação político-diplomática que, paulatinamente, foi reforçando a sua vertente multilateralista, consolidou, na corporação profissional dos diplomatas, um padrão e um estilo de ação que muito distinguiram tanto a diplomacia nacional, quanto as grandes linhas da sua política externa em face do mundo. A Constituição de 1988, finalmente, consagrou, em seu Artigo IV, uma série de cláusulas fundamentais que consolidam os princípios pelos quais se guia a nação nas suas relações internacionais; cabe citá-las por inteiro: 

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: 
I - independência nacional; 
II - prevalência dos direitos humanos; 
III - autodeterminação dos povos; 
IV - não-intervenção; 
V - igualdade entre os Estados; 
VI - defesa da paz; 
VII - solução pacífica dos conflitos; 
VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; 
IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; 
X - concessão de asilo político. 
Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.
 (Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm)

Estes são princípios gerais que inspiram a ação diplomática, mas não se detêm, especificamente no patrimônio jurídico-legal que foi sendo acumulado ao longo dos anos, sobretudo no período contemporâneo, e que deve servir de baliza quanto aos princípios e valores que devem guiar, na prática, a ação da diplomacia e balizar as referências doutrinais e “contratuais” da política externa concreta. Servimo-nos, para esse particular, do preâmbulo proposto pelo jurista Modesto Carvalhosa para o estabelecimento de uma nova Constituição para o Basil, por ele proposta com o objetivo de tornar o Brasil uma autêntica democracia. Transcrevo, da letra G do preâmbulo ao texto do anteprojeto de Constituição por ele proposto, as seguintes disposições normativas: 

G – A Nação brasileira proclama sua vinculação plena aos direitos humanos, individuais, coletivos e sociais expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas e suas Resoluções; na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e suas Resoluções; na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados e suas Resoluções; na Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho e suas Resoluções, sobre Povos Indígenas e Tribais [Nota PRA: aprovada por Decreto Legislativo de 2002, mas ainda não ratificada pelo Brasil junto à OIT]. Declara, ainda, seu irretratável compromisso com a preservação do meio ambiente e do clima tal como disposto no Acordo de Paris de 2016 e em suas Resoluções e demais tratados e convenções subscritas pela Nação Brasileira no interesse do país, do continente, da humanidade e da preservação da vida no planeta. (Modesto Carvalhosa, Uma nova constituição para o Brasil: de um país de privilégios para uma nação de oportunidades. São Paulo: LVM Editora, 2021, p. 38) 

O mesmo jurista, em seu exercício textual em prol de uma nova Carta Constitucional para o Brasil, teve o cuidado de desdobrar os princípios e os dispositivos constitucionais que entende devem aplicar-se à prática das relações internacionais pelo Brasil, num longo artigo propositivo que cabe transcrever por inteiro, pois oferece uma visão mais completa de como devem ser conduzidas as relações internacionais do Brasil: 

Dos tratados e convenções internacionais
Art. 102– Cabe ao Presidente da República negociar, celebrar, ratificar, promulgar e denunciar os tratados ou as convenções internacionais de natureza universal, regional e bilateral, que serão recepcionados com plena vigência, validade e eficácia pelo ordenamento jurídico nacional após sua promulgação e publicação em regime de paridade com a lei ordinária.
As normas previstas em tratados ou convenções internacionais ratificados pelo Brasil que versem sobre matéria tributária prevalecem sobre a lei ordinária.
Independentemente do rito de aprovação adotado pelo Congresso Nacional, as normas previstas em tratados ou convenções internacionais ratificados pelo Brasil que versem sobre direitos humanos e que sejam mais benéficas ao cidadão prevalecem sobre a constituição federal e sobre a lei ordinária brasileiras, que terão sua eficácia automaticamente protraída durante toda a vigência dos referidos textos internacionais.
Os tratados ou as convenções internacionais, uma vez celebrados pelo Presidente da República, serão submetidos ao Congresso Nacional. Se aprovados pelas duas Casa legislativas, serão remetidos para ratificação e promulgação pelo Presidente da República.
Na hipótese de não aprovação pelo Congresso de tratado ou convenção internacional que verse, total ou parcialmente, sobre direitos humanos, caberá ao povo aprovar ou rejeitar a respectiva norma de direitos humanos no referendo bienal que se seguir.
Será também submetida à aprovação do Congresso e ao referendo bienal, em se tratando de matéria de direitos humanos, a denúncia unilateral, pelo Presidente da República, de tratados ou convenções internacionais ratificados pelo Brasil. 
Incluem-se na categoria dos tratados ou convenções internacionais sobre direitos humanos os que versem sobre direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, ao meio ambiente natural, ao clima, às águas e à dignidade da pessoa humana.
 (Carvalhosa, Uma nova Constituição para o Brasil, op. cit., p. 60-61)

Cabe concluir, pelas transcrições e exemplos acima, que o Brasil aparece, concretamente e potencialmente, como suficientemente munido de um corpo de princípios sólidos e democraticamente orientados à sua plena participação no sistema internacional, em especial no que se refere à cooperação internacional, regional e bilateral, na defesa da paz e da segurança internacional, visando à promoção integrada do desenvolvimento humano e social, assim como ao pleno fortalecimento de instituições democráticas no âmbito interno e no ambiente internacional. Tem sido assim, com poucas controvérsias, desde a consolidação de um corpo profissional de diplomatas orientados para a busca daqueles princípios e objetivos. Daí o grande prestígio de que sempre gozou a diplomacia brasileira. 

De fato, desde Rio Branco e Rui Barbosa, a diplomacia brasileira assume uma postura multilateralista exemplar, a despeito do desastre que foi a condução do assunto da Liga das Nações, e nossa saída desastrada, em 1926, inteiramente devido à inépcia e teimosia do presidente Artur Bernardes. Mas, mesmo tendo saído da Liga, o Brasil continuou a seguir os trabalhos do organismo, sobretudo do ponto de vista econômico, como ocorreu, por exemplo, com a conferência econômica e financeira de Londres, em 1933, sem qualquer resultado prático, mas que serviu para negociações com os principais parceiros econômicos do Brasil nos mercados de café e no fornecimento de recursos financeiros (já em estado de moratória técnica e de renegociação dos atrasados). Graças a Oswaldo Aranha, o Brasil manteve uma postura alinhada aos EUA durante toda a guerra, sendo beneficiário dos acordos de Lend-Lease e dispondo-se a participar das operações de guerra no teatro europeu.

Foi com base nessa aliança informal que participamos da construção da ordem econômica e política do pós-guerra, desde Bretton Woods, em junho de 1944, a reunião de Chapultepec, em janeiro de 1945, e finalmente a conferência de San Francisco, em meados daquele ano, quando assinamos a Carta, mas indicamos nossa objeção do direito de veto, solicitando uma outra conferência diplomática em poucos para revisar esse dispositivo claramente discriminatório. Pode-se dizer que o Brasil aderiu a todos os instrumentos diplomáticos do multilateralismo contemporâneo, em todas as esferas de atividade. No campo da segurança internacional, depois do Pacto Briand-Kellogg de 1928, que visava obter o compromisso de todos os Estados com a solução pacífica das controvérsias, a Carta das Nações Unidas de 1945 prescreve claramente a proibição do recurso à guerra para os mesmos casos, como se constata imediatamente no seu Artigo 2: 

Article 2
The Organization and its Members, in pursuit of the Purposes stated in Article 1, shall act in accordance with the following Principles.

1. The Organization is based on the principle of the sovereign equality of all its Members.
2. All Members, in order to ensure to all of them the rights and benefits resulting from membership, shall fulfill in good faith the obligations assumed by them in accordance with the present Charter.
3. All Members shall settle their international disputes by peaceful means in such a manner that international peace and security, and. justice, are not endangered.
4. All Members shall refrain in their international relations from the threat or use of force against the territorial integrity or political independence of any state, or in any other manner inconsistent with the Purposes of the United Nations.

(Texto integra da Carta da ONU disponível na base de dados do Projeto Avalon da Universidade de Yale: avalon.law.yale.edu/20th_century/unchart.asp)

Com base nesses dispositivos, a Rússia já deveria ter sido unanimemente condenada pelos demais membros do Conselho de Segurança, o que de fato ocorreu, mas com várias abstenções, sobretudo a da China e as de diversos outros países; não é preciso detalhar que a resolução recebeu o veto da própria Rússia. Da mesma forma, uma grande maioria de membros da Assembleia Geral também ratificou tal condenação, embora não com a maioria avassaladora que seria de se esperar, a partir de uma violação tão clara, tão flagrante, de um dos principais artigos da Carta da ONU. E qual foi a postura do Brasil em relação ao conjunto de deliberações e votações que ocorreram desde quando a guerra de agressão começou, em 24 de fevereiro de 2022, até a fase recente da questão? É o que veremos a partir de agora.

O Brasil e o processo multilateral em torno do conflito na Ucrânia

Antes de examinar quais foram, exatamente, as posturas adotadas em nome do Brasil pela representação junto às Nações Unidas em Nova York, caberia precisar algumas coisas: em primeiro lugar, o que o mundo leva em conta, como posição oficial do Brasil, são as declarações e os votos registrados no Conselho de Segurança da ONU e na sua Assembleia Geral, assim como em instâncias derivadas do órgão, como o Conselho de Direitos Humanos e outras agências especializadas; em segundo lugar, o que é dito em nome do Brasil nessas instâncias nem sempre é a posição do corpo profissional do Itamaraty, enquanto instituição de Estado encarregada das relações exteriores do país, mas pode expressar, concreta e claramente, a postura do governo, isto é, do chefe do Executivo, que tem a última palavra, aconselhado por assessores próximos, sobre qual será a política externa do Brasil; o que o presidente declara, ocasionalmente, em encontros improvisados com seus apoiadores, não tem qualquer valor como postura oficial do governo, pois, há muito tempo, o mundo, ou seja, os agentes diplomáticos aqui acreditados, mais os correspondentes e observadores estrangeiros deixaram de levar a sério o que é dito pelo presidente, preferindo se fiar mais nas notas oficiais do Itamaraty, e no caso da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, nas declarações da delegação do Brasil junto à ONU; em terceiro lugar, portanto, podem ocorrer discrepâncias entre o que o Itamaraty pensa sobre quais deveriam ser as posições oficiais do Brasil a esse respeito, e o que transparece nessas declarações, artigos e entrevistas a respeito do mais importante problema de paz e segurança internacional da atualidade. 

Não é preciso lembrar, ab initio, que a postura adotada pelo Brasil desde praticamente a consolidação dos grandes princípios de sua política exterior, no Segundo Reinado, em meados do século XIX, foi a defesa intransigente do Direito Internacional. Ao início de seu envolvimento com questões internacionais, que se deu na segunda conferência internacional da paz, realizada na Haia em 1907, Rui Barbosa expressou em termos claros o princípio que se converteria no eixo central do multilateralismo contemporâneo e o defendeu de maneira enfática: a igualdade soberana dos Estados, não importa seu tamanho, ou seu poderio militar. Esse mesmo princípio foi repetido ipsis litteris pelo presidente da Finlândia quando ele discorreu, no início do ano, sobre a possibilidade de o país, oficialmente neutro desde a Segunda Guerra Mundial, vir a aderir, isoladamente ou em conjunto com a Suécia, à Otan.

A defesa do Direito Internacional e da paz, a busca de solução pacífica dos conflitos entre Estados, e a não interferência nos assuntos internos dos demais Estados constituem, portanto os elementos fundamentais da postura do Brasil e da própria comunidade mundial que assinou e prometeu respeitar a Carta das Nações Unidas. Na conferência internacional de San Francisco de 1945 que aprovou essa Carta a delegação do Brasil manifestou sua objeção ao direito de veto, como contrário ao princípio da igualdade soberana dos Estados, mas, com o espírito de facilitar o primeiro grande entendimento mundial depois do mais terrível conflito militar em qualquer época histórica precedente, resolveu aceitar essa exceção, pedindo, no entanto, que essa questão fosse revista em poucos anos mais à frente. Isso nunca se fez, como é sabido, tendo ocorrido apenas uma revisão da Carta para a ampliação do número de membros temporários do seu Conselho de Segurança. 

Pois bem, tendo em vista estes elementos fundamentais da posição diplomática do Brasil, o que teria sido possível de se esperar quando a Rússia, em 2014, desrespeitando a Carta da ONU e a soberania do vizinho país, invadiu e sequestrou violentamente a península da Crimeia e a declarou parte do seu território? Como diversos outros países o fizeram, o normal teria sido que o Brasil condenasse a atitude da Rússia com base na Carta da ONU e em seus próprios princípios de relações internacionais inscritos em sua Constituição. Ora, nada disso se fez, de onde se conclui que o Brasil do governo Dilma Rousseff violou, de forma clara e insofismável, sua fidelidade absoluta à Carta da ONU, ao Direito Internacional e à sua própria Constituição. Cabe relembrar que a presidente Dilma Rousseff fez pior do que isso: confirmou expressamente, em uma reunião do G20, que o Brasil não tinha, e não teria, em seu governo, qualquer posição sobre a Ucrânia, alegando que o Brasil “não se envolveria em assuntos de outros países” (sic; O Globo, 16/11/2014). Ironicamente, no almoço oferecido pelo país anfitrião, a Austrália, Putin sentou-se só, numa mesa, com apenas uma pessoa à sua frente, Dilma Rousseff; não ocorreu nenhuma conversa entre os dois e o presidente russo deixou mais cedo a reunião do G20, criticado pela grande maioria dos presentes.

Passando de 2014 a 2022, quais foram as posições adotadas e as declarações feitas pelo representante do Brasil na ONU, em nome do país, imediatamente após a violação da Carta da ONU pela invasão armada do território da Ucrânia por forças militares da Rússia no dia 24 de fevereiro de 2022? Na verdade, a postura ambígua do Brasil com respeito a um possível conflito na região antecedeu a própria invasão, e possivelmente tem relação com a inadequada visita do chefe de Estado brasileiro ao seu parceiro da Rússia, alguns dias antes de iniciada a invasão. Como se sabe, a invasão foi precedida pela inusitada declaração de Putin reconhecendo a “independência” das duas províncias rebeldes da Ucrânia oriental. Ao se pronunciar sobre a questão, em 21 de fevereiro, o Representante do Brasil na ONU deu início a uma posição de aparente “equilíbrio” entre as partes, reafirmando a “necessidade de buscar uma solução negociada, com base nos Acordos de Minsk, e que leve em consideração os legítimos interesses de segurança da Rússia e da Ucrânia”, como se este segundo país tivesse condições de ameaçar a segurança do primeiro. (As declarações do Brasil no âmbito da ONU sobre a Ucrânia, estão disponíveis neste link: www.gov.br/mre/pt-br/Brasil-CSNU/discursos-artigos-e-entrevistas; filtrar por “declarações de voto” e por “Ucrânia”).

Segundo declaração feita no mesmo dia da invasão pelo Representante do Brasil na ONU, depois de afirmar que o governo brasileiro acompanhava “com grave preocupação a deflagração de operações militares pela Federação da Rússia contra alvos no território da Ucrânia”, a posição apresentada aos membros do Conselho de Segurança foi a seguinte: 

O Brasil apela à suspensão imediata das hostilidades e ao início de negociações conducentes a uma solução diplomática para a questão, com base nos Acordos de Minsk e que leve em conta os legítimos interesses de segurança de todas as partes envolvidas e a proteção da população civil.

Vista de uma maneira leniente, esta foi a primeira das hipocrisias perpetradas, não pelo Itamaraty, mas pelo atual governo brasileiro, a respeito da mais grave violação do Direito Internacional desde o final da Segunda Guerra Mundial. Como pedir “suspensão de hostilidades”, como se estas fossem recíprocas e equivalente, ou seja, dois países mantendo hostilidades um contra o outro? O que ocorreu, e a declaração se eximiu de dizer, foi uma violação flagrante do Artigo 2º da Carta da ONU, tão flagrante que todos os países amantes da paz e defensores do Direito Internacional se apressaram em condená-la da maneira mais veemente. Como proclamar, por outro lado, a necessidade de uma solução diplomática para a questão, levando em conta “os legítimos interesses de segurança de todas as partes”, como se a Ucrânia tivesse colocado em risco a segurança da Rússia? O desequilíbrio nos conceitos transparece de maneira clara, em especial a total falta de identificação da parte responsável pela violação de todos os princípios expressos no terceiro parágrafo dessa declaração: 

Como membro do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o Brasil permanece engajado nas discussões multilaterais com vistas a uma solução pacífica, em linha com a tradição diplomática brasileira e na defesa de soluções orientadas pela Carta das Nações Unidas e pelo direito internacional, sobretudo os princípios da não intervenção, da soberania e integridade territorial dos Estados e da solução pacífica das controvérsias.

O governo brasileiro se esqueceu de dizer quem estava violando esses princípios basilares do Direito Internacional, da Carta da ONU e de sua própria Constituição. Como tinha sido feito em 2014, o Brasil não tinha nada de muito concreto a dizer sobre o caso. Essa primeira posição oficial sobre a agressão da Rússia à Ucrânia ocorreu pouco tempo depois que o presidente brasileiro efetuou uma visita oficial à Rússia, declarou que era solidário ao país e ao seu líder, com quem entreteve-se amistosamente, e depois que a embaixada em Kiev, contrariamente à maioria das demais representações diplomáticas no país, tranquilizou os brasileiros residentes. No próprio dia da invasão, o Itamaraty apenas recomendou em nota que “cidadãos brasileiros em território ucraniano, em particular aos que se encontrem no leste do país e outras regiões em condições de conflito, que mantenham contato diário com a Embaixada.” Foi patético, para dizer o mínimo. 

Na primeira reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas para tratar da situação da Ucrânia invadida selvagemente pelas tropas russas, a partir da própria Rússia e da Belarus, a declaração do representante brasileiro persistiu na linguagem ambígua, evitando de indicar claramente a natureza do conflito e o responsável pela agressão e pela violação da paz e da segurança internacional, ainda que revelando a preocupação do governo brasileiro – provavelmente bem mais do próprio Itamaraty –com as “operações militares russas contra alvos em território ucraniano.” Mas o que se seguiu persistiu na linguagem neutra, o que coincida com a expressão utilizada logo em seguida pelo chefe de Estado para se desvincular da postura de “solidariedade” ao agressor russo. Segundo a declaração e explicação de voto numa resolução (não aprovada) do CSNU condenando a invasão, em 25/02/2022: 

... nosso principal objetivo atual [isto é, de todos os membros do CSNU] é o de interromper imediatamente as hostilidades em curso. Como devemos fazer isso? Primeiramente, o Conselho de Segurança deve agir prontamente quanto ao uso da força contra a integridade territorial de um Estado membro. Um limite foi ultrapassado, e este Conselho não pode permanecer em silêncio.

A ironia totalmente despropositada estava, em primeiro lugar, na recomendação inicial de “interrupção das hostilidades em curso”, como se, mais uma vez, elas fossem recíprocas e estivessem sendo cometidas de maneira simétrica, cabendo então esse chamado à razão para a “cessação de hostilidades”, como já tinha sido a demanda no dia anterior. Compareceu, igualmente, em segundo lugar, uma renovada menção às “preocupações de segurança manifestadas nos últimos anos pela Federação da Rússia, particularmente no que diz respeito ao equilíbrio estratégico na Europa”, como se estas “preocupações” tivessem se concretizado numa “iminente ameaça de guerra”, ou de invasão do território russo, que seria a única hipótese suscetível do recurso à força autorizado pela Carta da ONU. Em terceiro lugar, compareceram novamente os grandes conceitos do Direito Internacional, que são também, tradicionalmente, os da diplomacia brasileira, mas que permaneceram no ar, sem uma indicação concreta quanto à sua violação por uma parte plenamente identificada: 

O sistema de segurança coletiva das Nações Unidas baseia-se, em última instância, no pilar do direito internacional. A igualdade soberana e a integridade territorial dos Estados membros da ONU não são palavras vazias. É nosso dever dar significado concreto às altas aspirações dos redatores da Carta da ONU.

Ironicamente, mais uma vez, numa nova explicação da posição do Brasil, depois que o veto da Rússia inviabilizou a adoção da resolução condenando-a pela violação da Carta da ONU, e da sua ameaça concreta à paz e à segurança internacional, a delegação, lamentando que em casos precedentes o Conselho também tinha se mostrado incapaz de demonstrar reação equivalente, declarou o seguinte: 

O Brasil lamenta que o Conselho de Segurança não tenha sido capaz de reagir ao rompimento da paz e segurança internacionais que está em curso, enquanto fazemos pronunciamentos nesta reunião.

Ou seja, houve um rompimento da paz e da segurança internacionais, mas o Brasil se esquivou de indicar claramente e diretamente a identidade do agressor, insistindo em conceitos vagos sobre o Direito Internacional e sobre a responsabilidade do Conselho. Em seguida, antecipando-se a uma nova discussão da questão ucraniana no âmbito da Assembleia Geral, no dia 27 de fevereiro, o delegado do Brasil expressou, numa linguagem aparentemente neutra, mas que expressava, objetivamente, uma postura favorável à Rússia, a posição contrária do Brasil no tocando às sanções e fornecimento de armas: 

Let us be exceedingly cautious in moving forward in the General Assembly. The supply of weapons, the recourse to cyberattacks, and the application of selective sanctions, which could affect sectors such as fertilizers and wheat, with a strong risk of famine, entail the risk of exacerbating and spreading the conflict and not of solving it. We cannot be oblivious to the fact that these measures enhance the risks of wider and direct confrontation between NATO and Russia. It is our duty, both in the Council and in the General Assembly, to stop and reverse this escalation. We need to engage in serious negotiations, in good faith, that could allow the restoration of Ukraine's territorial integrity, security guarantees for Ukraine and Russia, and strategic stability in Europe. (Declaração em sessão do CSNU, em 27/02/2022)

Numa longa declaração feita no âmbito da Assembleia Geral, no dia 28/02/2022, a delegação do Brasil não mudou sua postura quanto às consequências do ato de agressão – jamais identificado por esse conceito ou no tocante ao agressor, nominalmente designado –, mas lamentou que o projeto de declaração condenando a Rússia não tivesse sido adotado. A declaração reconhece, em todo caso, que o governo da Ucrânia tinha iniciado um caso na Corte Internacional de Justiça baseado na Convenção sobre o Genocídio. Poucos dias depois a CIJ adotava uma “Ordonnance” condenando a Rússia, ordenando a retirada das tropas, aprovada por todos os seus juízes, à exceção da juíza chinesa e, obviamente, do juiz russo. Mas o representante do Brasil volta novamente a adotar uma postura objetivamente pró-Rússia quando a sua declaração expressa o seguinte entendimento sobre a origem do conflito: 

Over the last years, we have seen the progressive deterioration of the security situation and balance of power in Eastern Europe. The undermining of the Minsk agreements by all parties and the discrediting of the security concerns voiced by Russia prepared the ground for the crisis we are all witnessing.

Em outros termos, a deterioração da “balança de poder” na Europa Oriental poderia ser explicada pelo não respeito dos acordos de Minsk “por todas as partes” – como se a Rússia, a invadir e sequestrar a província ucraniana da Crimeia, em 2014, já não tivesse minado a arquitetura da paz desenhada em Minsk, e como se a Ucrânia fosse responsável pelo “descrédito das preocupações de segurança expressas pela Rússia”, como se estes fossem os elementos responsáveis pelo início do conflito e pela invasão da Ucrânia. Da mesma forma, a delegação volta a expressar a preocupação do governo brasileiro com as decisões de certos “atores” – não designados, mas claramente os países “ocidentais” – com respeito ao suprimento de armas, o recurso a ataques cibernéticos e a aplicação de sanções seletivas, que poderiam afetar a economia global e ameaçar a segurança alimentar, como se estes problemas já não tivessem sido provocados pela Rússia, antes e durante a sua agressão. Novamente se apela à “cessação de hostilidades” – como se estas fossem recíprocas, como já observado aqui – e à criação de condições para um “maior sentido de segurança entre todos os envolvidos”, como se as duas partes fossem igualmente responsáveis pelo conflito.

Por ocasião de nova sessão de emergência da Assembleia Geral, realizada em 2 de março, a delegação volta a insistir nos conceitos e posturas já expressos anteriormente, quanto à “cessação de hostilidades” e um “trabalho abrangente a propósito das preocupações de segurança das partes”, como se houvesse simetria nesse jogo desequilibrado. Tal posição coincidia com novos conceitos expressos no Brasil, num malabarismo bizarro, pois que já superando a expressão de “solidariedade” e a manifestação de “neutralidade” para uma de “equilíbrio” e de “imparcialidade” no conflito. A esse respeito, pode-se relembrar as palavras de Rui Barbosa, em 1916, quando ele condenou, em tom veemente, a neutralidade de países, entre eles o Brasil, a respeito da invasão do Reino da Bélgica pelo Império Alemão, com as seguintes palavras: 

Entre os que destroem a lei e os que a observam não há neutralidade possível. Neutralidade não quer dizer impassibilidade; quer dizer imparcialidade; e não há imparcialidade entre o direito e a injustiça. (Rui Barbosa, Conceitos Modernos do Direito Internacional; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983)

Essa clara postura de Rui Barbosa, quanto aos “deveres dos neutros”, foi relembrada pelo chanceler Oswaldo Aranha, em 1942, no exato momento em que o Brasil se viu confrontado à extensão da guerra europeia ao continente americano, instando, então, o país a assumir suas responsabilidades no plano dos princípios do direito internacional e em consonância com os deveres da solidariedade hemisférica. A Alemanha tinha, mais uma vez, violado a neutralidade da Bélgica, para invadir a França. A postura de Aranha foi decisiva para que, ao contrário da vizinha Argentina, então controlada pelo Grupo de Oficiais Unidos, de orientação simpática ao Eixo, o Brasil adotasse uma postura compatível com a construção doutrinária iniciada por Rui e de acordo a seus interesses nacionais, nos contextos hemisférico e global, em face do desrespeito brutal ao direito internacional cometido pelas potências nazifascistas na Europa e fora dela. O governo do Brasil, ou sua diplomacia, parecem ter se esquecido das palavras de Rui Barbosa que, no entanto, compõem o eixo doutrinal da moderna diplomacia brasileira, junto com as lições de Rio Branco e San Tiago Dantas. Com efeito, vinte anos depois de Oswaldo Aranha, o chanceler San Tiago Dantas, um dos grandes tribunos do pensamento jurídico da diplomacia brasileira, defendeu o respeito ao princípio da não intervenção nos assuntos internos de outros Estados, que estava então em causa nas conferências e reuniões panamericanas em torno do caso de Cuba.

Dois dias depois das declarações no âmbito da AGNU, em 4 de março, o representante do Brasil no Conselho de Direitos Humanos, em Genebra, se opunha à expulsão da Rússia daquele órgão, considerava o projeto de declaração falho e desequilibrado e lamentava as menções à possíveis ações no âmbito do Tribunal Penal Internacional, ainda que votando a favor da resolução sobre “a Situação dos Direitos Humanos na Ucrânia decorrente da agressão russa”. De forma geral, o teor das declarações feitas em nome do Brasil pelos representantes na ONU, em Nova York e Genebra, sempre expressou as restrições da chefia do Executivo contrárias a uma condenação direta da Rússia pelo seu ato de agressão e de clara violação da Carta da ONU. Nas etapas seguintes, com a extensão do conflito e a inesperada reação dos ucranianos em defesa do seu território, o Brasil continuou a manter uma oposição de princípio à imposição de sanções unilaterais contra o agressor – pelo simples motivo que medidas multilaterais estavam fora de cogitação dado o malfadado direito de veto concedido à Rússia –, assim como contra o fornecimento de armas. 

As justificativas alegadas eram as de que sanções agravariam a situação econômica de todas as partes, do mundo inteiro, e não apenas daquelas envolvidas diretamente no conflito, e que o fornecimento de armas causaria ainda mais mortes de civis inocentes. A decorrência lógica da postura brasileira seria a de que o agressor poderia ficar impune pela sua agressão – não considerando o fato de que todas as sanções implementadas seguiam rigorosamente o espírito e a letra dos artigos 41 e 42 da Carta da ONU – assim como se convidava o povo ucraniano a não se defender, deixando que a parte mais forte aplicasse toda a força militar à sua disposição, pois que seria inútil o mais fraco tentar se contrapor ao mais forte. Pronunciei-me sobre a posição adotada pelo Brasil desde o início do conflito num artigo publicado pelo blog científico International Law Agendas, do ramo brasileiro da International Law Association, que abordava igualmente outras questões de direito internacional e de posições adotadas pelo Brasil: “Renúncia infame: o abandono do Direito Internacional pelo Brasil” (7/03/2022; link: http://ila-brasil.org.br/blog/uma-renuncia-infame/). 

Em nova reflexão sobre o assunto, feita para atender a um convite do Instituto Direito e Inovação, examinei o histórico das sanções multilaterais desde a Liga das Nações até a Carta da ONU, como contribuição útil a respeito do uso de sanções no sistema internacional. Um texto de apoio à conferência, preparado naquela ocasião, “A guerra da Ucrânia e as sanções econômicas multilaterais”, foi divulgado na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/77013457/A_guerra_da_Ucrânia_e_as_sanções_econômicas_multilaterais_2022_) e anunciado no blog Diplomatizzando (20/04/2022; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2022/04/a-guerra-da-ucrania-e-as-sancoes.html). A conferência ficou disponível no canal do Instituto no Instagram (21/04/2022; link: https://www.instagram.com/p/CcoEemiljnq/). 

Em síntese, considero a postura do governo brasileiro em relação à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia não exatamente condizente com as tradições de sua diplomacia profissional com respeito aos grandes princípios do Direito Internacional e do inarredável compromisso com a Carta da ONU, mas como uma expressão política da chefia do Executivo numa tentativa pouco compatível com os valores históricos de nossa política externa, no sentido de manter uma inaceitável neutralidade num cruel conflito que coloca em questão, justamente, todos aqueles princípios que sempre integraram nosso compromisso com o núcleo essencial do respeito ao Direito Internacional. Uma posição que deveria ser revista tão pronto o Brasil possa renovar sua adesão àqueles valores e princípios que sempre integraram o patrimônio doutrinal do Itamaraty.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4152: 11 maio 2022, 16 p.; revisão 13/05/2022

Disponibilizado na versão original na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/78954459/O_Brasil_e_a_guerra_de_agressão_da_Rússia_contra_a_Ucrânia_2022_

e divulgado no blog Diplomatizzando (https://diplomatizzando.blogspot.com/2022/05/o-brasil-e-guerra-de-agressao-da-russia.html)

sábado, 21 de maio de 2022

Guerra na Ucrânia: debate no Mackenzie - Rubens Barbosa, Paulo Roberto de Almeida, Juliano Ferreira

https://www.mackenzie.br/noticias/artigo/n/a/i/guerra-na-ucrania-nao-vejo-perspectivas-de-paz-avaliam-especialistas 

Guerra na Ucrânia: “não vejo perspectivas de paz”, avalia especialista

Em debate na Universidade Mackenzie, autoridades rememoram história e avaliam impactos do conflito

Mackenzie, 16.05.202219h32 


Guerra da Ucrânia e implicações para o Brasil foi o tema da palestra de encerramento, na noite de 13 de maio, promovida pelo Centro de Ciências Sociais e Aplicadas (CCSA) da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), em parceria com a Empresa Junior Mackenzie de Consultoria, por meio do Centro Mackenzie de Liberdade Econômica (CMLE), para a XX Semana do CCSA. O debate contou com a participação do diplomata e professor, Paulo Roberto Almeida; do economista e antigo mackenzista Juliano Ferreira; do embaixador Rubens Barbosa; e moderação do professor coordenador do CMLE, Vladimir Fernandes Maciel.

Para um auditório Ruy Barbosa lotado, no campus Higienópolis (SP), Maciel destacou que, para além da importância e urgência do tema, a oportunidade de realização do debate com figuras tão importantes tinha muitos significados. “Em primeiro lugar por ser uma sessão comemorativa ao aniversário de seis anos do Centro Mackenzie de Liberdade Econômica, que celebramos no encerramento da XX Semana do CCSA e que ocorre no aniversário de 70 anos da UPM”, afirma.

Sanções

O professor e diplomata Almeida, que participou de forma on-line do evento, de Brasília (DF), tratou a respeito das sanções econômicas que acometem a área do conflito entre Rússia e Ucrânia e a posição do Brasil neste quadro. “Podemos dizer que um dos maiores cerceamentos à liberdade econômica é justamente a guerra. Desde a Liga das Nações, tenta-se interromper o uso da força militar entre os países, utilizando as sanções econômicas, que são outra maneira de cercear a liberdade, uma arma às vezes tida como mais forte que a guerra”, diz.

Para Almeida, a dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) foi uma das maiores mudanças geopolíticas do século XX, mas foi positiva, “pois era um dos impérios mais opressores da humanidade”, coloca ele.

O diplomata lembra que, apesar da guerra ser uma situação em que todas as nações perdem em vários sentidos, a inflação de combustíveis e de outras commodities, por conta dela beneficiam, em partes, a própria Rússia, pela dominação na área de exportação de combustíveis, em especial petróleo e gás.

“A China ainda tem muitos interesses não declarados e isso pode mudar todo o quadro, este é um país que não fez sanções à Rússia. Num futuro próximo, vejo a Ucrânia talvez como membro da União Europeia (UE), mas não necessariamente da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN)”, reflete ele.

Almeida realça, acima de tudo, que o Brasil de hoje parece “ter se esquecido de tudo que defende dentro do direito internacional. Esquecemos que, além da expansão da OTAN, umas das justificativas da guerra pela Rússia, há a decisão das nações. E o Brasil sempre viu a igualdade soberana dos Estados, ou seja, há liberdade de decisão e responsabilidade por isso”.

Atualmente, de acordo com ele, mais de 35 países declararam sanções à Rússia, mas elas não estão funcionando com a pressão que deveriam porque muitos países ainda dependem do que aquele país produz (leia o artigo na íntegra produzido pelo especialista).

leia o artigo na íntegra produzido pelo especialista


As implicações econômicas

Já o economista Juliano Ferreira, macro estrategista da filial brasileira da corretora inglesa BGC Partners, conta que os impactos, nos modelos econômicos simulados, de guerras de cerca de cinco anos têm consequências fortes mesmo em nações não envolvidas diretamente no conflito. “Para dizer o mínimo, há queda do Produto Interno Bruto (PIB) das nações, queda de consumo e de salário”.

Globalmente falando, Ferreira avalia que por Rússia e Ucrânia corresponderem, juntas, a cerca de 2% do PIB mundial, o impacto direto é baixo, mas os indiretos são mais fortes. “A zona do euro começa a se recuperar mais devagar, em especial depois da covid-19. Há menos exportação para os países da região em conflito e um choque negativo de termos de troca para a Europa, pelo encarecimento dos produtos provenientes da Rússia”, diz.

Dessa forma, avalia o economista, as sanções não afetam tanto a Rússia por conta da exportação de petróleo e gás natural, pois ela segue recebendo em dólares.

“O problema imediato se dá mais na Europa, que precisa gastar mais para comprar energia russa. Só para se ter uma ideia, entre petróleo e gás, a Alemanha, por exemplo, importa algo em torno de 17% de sua matriz energética da Rússia”, avalia ele.

No Brasil, por sermos grande produtores de commodities, não deveremos ter insegurança alimentar, de acordo com Ferreira, mas haverá subida de juros e queda do crédito, inclusive o internacional. “Todo mundo crescerá mais devagar”.

Para o nosso país, os choques são positivos, de início, por conta da subida de preço das exportações. “Apesar disso, a inflação de alimentação e combustível, por mais que traga algum ganho de receita fiscal, traz também a provável necessidade de subsídios, que são riscos para crescimento”, enfatiza o economista.

Ferreira ainda pontua duas consequências de longo prazo de todo esse movimento da guerra: a possibilidade de haver um movimento de desglobalização e regionalização de cadeias de suprimentos; e a possibilidade das commodoties poderem voltar a ser a moeda de troca do mundo no lugar do dólar, o que mexeria bastante no cenário internacional.


Conflito com mais de 30 anos

O embaixador Rubens Barbosa trouxe uma recapitulação histórica para que os presentes entendessem o desencadear do conflito entre Rússia e Ucrânia, demonstrando que são mais de três décadas de movimento que culminam nessa guerra. “A ação da Rússia é uma verdadeira marcha da insensatez que pode desencadear até um confronto nuclear com efeitos extraterritoriais. É algo que não interessa a ninguém e todos seguem persistindo no esforço militar”, assinala.

As narrativas, segundo Barbosa, são as mais diversas, a da Rússia é de defesa de seu interesse, "questão de segurança nacional", pois o país já foi atacado antes por este corredor geográfico, por Hitler e até Napoleão. “Com vistas a deter a expansão da OTAN, a Rússia quer desmilitarizar a Ucrânia”, afirma.

A do lado ocidental, coloca ele, é contrária, dizendo ser uma ação expansionista da Rússia rumo aos países bálticos. “Baseada no autoritarismo do presidente Putin, com vistas à criação do império soviético”, adiciona.

O objetivo declarado é impedir a entrada da Ucrânia na OTAN e a expansão da Organização de forma geral. Segundo Barbosa, Trump (EUA) deixou a OTAN mais fraca, mas o presidente Biden a fortaleceu. “A ação de Putin, na verdade, tem fortalecido a OTAN em vez de diminuir sua expansão, os investimentos nela têm aumentado”, destaca o embaixador, trazendo um ponto de atenção: o forte rearmamento da Alemanha, inclusive fornecendo armas a outros países.

Barbosa lembra que a ação da Rússia é totalmente contrária às declarações de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) e que, mesmo com os interesses do país, essa agressão não se justifica com a violência que foi feita.

Recapitulando os fatos, Barbosa lembra que, com a dissolução da URSS, houve conversas em 1991 entre James Baker, secretário de Estado dos EUA na época; representante da Alemanha; e o presidente russo Gorbatchov, garantindo que não haveria expansão da OTAN em direção à Rússia.

Em 1994, na crise dos balcãs, os EUA atacaram a Iugoslávia, que saía da situação de satélite da URSS. Em 1997, há uma virada, quando a Polônia e a Tchecoslováquia pediram para entrar na OTAN. “Na época, os especialistas já diziam que a Rússia não iria permitir essa expansão e que seria um erro de política internacional se os EUA apoiassem esse movimento”, rememora Barbosa.

Em 2002, os EUA publicam a estratégia de segurança nacional onde consta a expansão da OTAN. Em 2007, na conferência de Munique, Putin reage, condenando o unilateralismo dos EUA nas grades decisões globais. A seguir, com anúncio da Geórgia querendo entrar na OTAN, a Rússia invadiu dois territórios de lá e permanece até hoje na região.

Além disso, em fevereiro de 2014, com apoio dos EUA, o presidente ucraniano de origem russa, Viktor Yanukovitch, é deposto, aumentando as tensões. A Rússia anexa, a seguir, a Crimeia, que era da Ucrânia, e decide proteger a população russa que vive naquele país. Em 2021, houve treinamento militar dos EUA à Ucrânia, com pedido formal desta última para entrar na União Europeia e na OTAN.

“Esses fatos mostram essa marcha da insensatez da Rússia e do ocidente, onde ambos caminharam para algo que não é desejado por ninguém, ao custo da morte e da violência. Algo que começa com a expansão da OTAN e segue com as invasões da Rússia de forma ilegal. A guerra, enfim, se torna uma disputa de forças entre Rússia e EUA”, pontua o embaixador.

“A curto prazo, não enxergo perspectiva ou tentativas de acordo de paz entre os países para encerrar o conflito”, finaliza Barbosa.


Para conferir o evento completo, assista aqui

sábado, 14 de maio de 2022

Guerra na Ucrânia e suas implicações para o Brasil - Paulo Roberto de Almeida (Intervenção oral no evento do Mackenzie)

Abaixo, meu texto-guia, usado de maneira muito informal e seletiva (ou seja, não foi lido, assim como o texto maior preparado como base conceitual da palestra, a que eu refiro in fine), na sessão de encerramento da XX Semana de Ciências Sociais Aplicadas do Mackenzie.

O vídeo dessa sessão encontra-se disponível no seguinte link: 

Palestra 050 - Guerra da Ucrânia e as implicações no Brasil 20h30 13-05-2022: https://www.youtube.com/watch?v=7jQtR277iDc

A palestra do embaixador Rubens Barbosa começa ao 38:09 minutos (do total de mais de duas horas do evento); minha palestra começa aos 1:06:41 e vai até 1:28:08, seguida pela excelente explanação do Juliano Ferreira, um economista da mais alta qualidade, como vocês poderão assistir na sequência do vídeo.

Guerra na Ucrânia e suas implicações para o Brasil 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Notas para exposição oral no quadro do encerramento da Semana de Ciências Sociais do Mackenzie, em 13/05/2022, 20h30

 


O tema título desta sessão de encerramento é bastante amplo, embora instigante. Como se trata de um evento organizado pelo Centro de Liberdade Econômica do Mackenzie, pode-se tentar abordar o tema por meio do conceito de liberdade econômica, justamente. 

Não existe maior cerceamento à liberdade econômica do que a guerra, sobretudo uma guerra não justificada por qualquer preocupação real com ameaça à soberania e à segurança de um país, que seria a única justificativa inscrita na Carta das Nações Unidas para o recurso legítimo ao uso da força militar, ou seja, a defesa de um país ante um ataque iminente. Todas as demais hipóteses de apelo ou uso efetivo da força estão banidas pela Carta de San Francisco de 1945, como aliás já estavam antes, pelo Pacto Briand-Kellog de 1928, ao qual o Brasil aderiu em 1931. 

Mas, parece que esse tratado, banindo as guerras e prescrevendo o uso de meios pacíficos para a resolução de diferendos entre os Estados signatários, não funcionou a contento na década seguinte, tendo em vista sua derrogação prática desde a invasão da Manchúria pelo Japão em 1931 (depois ao resto da China em 1937), assim como pela invasão da Etiópia pelas forças fascistas da Itália em 1935, assim como as ameaças da Alemanha nazista contra a Áustria e a Tchecoslováquia em 1938-39, assim como a selvagem intervenção das duas potências fascistas na guerra civil espanhola de 1936-39.

O segundo maior fator de cerceamento à liberdade econômica são as sanções econômicas por quaisquer motivos, geralmente por desentendimentos políticos, territoriais, comerciais, ou ameaça à segurança nacional, justamente, mas, no registro histórico das sanções no decorrer do século XX, a maior parte delas foi, tem sido, de forma unilateral, uma vez que as sanções multilaterais foram extremamente raras. No âmbito da Liga das Nações, as sanções contra a Itália pela invasão de um outro membro da própria Liga foram muito débeis, para não dizer totalmente inócuas; elas nem existiram para o caso do Japão em 1931 ou para os casos mais graves da invasão e esquartejamento da Polônia, em ação conjunta da Alemanha hitlerista e da União Soviética stalinista em 1939, para não mencionar a invasão e a incorporação dos três países bálticos, independentes desde 1919, pela União Soviética em 1940, ou sua criminosa guerra contra a Finlândia no mesmo ano. Diga-se de passagem, que o Brasil do Estado Novo simpático ao fascismo nunca reconheceu esse sequestro violento pela URSS de três países independentes, com os quais o Brasil mantinha relações diplomáticas normais, ainda que pela via cumulativa. 

Descobri isto quando comecei a trabalhar com o então conselheiro Rubens Barbosa na Divisão da Europa Oriental, em 1977, e encontrei, nos arquivos da DE-II, três maços, um pouco sonolentos, correspondendo a cada um dos três bálticos, Estônia, Letônia e Lituânia. Nunca me esqueci disso, mas só me inteirei dos detalhes mais tarde, quando, ao pesquisar sobre a gestão Oswaldo Aranha no Itamaraty – o segundo maior chanceler do Brasil no século XX, depois de Rio Branco –, fui ler os relatórios do Ministério das Relações Exteriores relativos aos anos de guerra e constatar que até o governo arbitrário do Estado Novo não reconhecia a anexação pela força de territórios de Estados independentes, o que se aplicava tanto ao governo da Polônia, em 1939, quanto aos dos três países bálticos, em 1940.

 

Guerras e sanções, unilaterais ou multilaterais, por causa de guerras ou quaisquer outras desavenças entre Estados, ou entre chefes de Estado, são, portanto, os maiores entraves à liberdade econômica que possam existir. Mas as sanções existem e são usadas justamente como armas econômicas, ainda mais terríveis, como aliás reconheceu seu propositor formal, o presidente Woodrow Wilson, ao estabelecer suas propostas para a conferência de paz de Paris em 1919. Transcrevi suas palavras, tal como relembradas pelo professor Nicholas Mulder em seu livro Economic Weapon (2022), do qual retirei largos trechos para inseri-los em meu trabalho “A guerra da Ucrânia e as sanções econômicas multilaterais”, já colocado à disposição de todos em minha página da plataforma Academia.edu. Como também registrado nesse trabalho e em todos os livros que consultei, o maior volume de sanções é sempre de natureza econômica e de iniciativa unilateral, contra algum parceiro recalcitrante de uma potência mais arrogante. O Brasil já entrou no grande clube dos recalcitrantes sancionáveis e não apenas por questões de comércio exterior (subsídios considerados ilegais, créditos fiscais muito generosos e contrários aos regimes do Gatt, contrafação de produtos ou pirataria de software e sistemas informáticos, suposto dumping de produtos siderúrgicos ou simplesmente reclamação de alguma indústria poderosa contra uma concorrência mais atraente, julgada, a torto ou a direito, como desleal). 

O Brasil também sofreu sanções econômicas, na verdade políticas, como, por exemplo, quando o governo Goulart parecia que se dava bem com os comunistas, e tínhamos vários governadores de esquerda, ou simplesmente progressistas: Leonel Brizola, por exemplo, governador do Rio Grande do Sul (1958-62), nacionalizou, ou estadualizou, em todo caso expropriou, duas empresas americanas e não queria pagar indenização; Miguel Arraes, de Pernambuco, e Mauro Borges, de Goiás, eram considerados nacionalistas antiamericanos; assim, os americanos cortaram assistência, empréstimos e financiamentos ao governo da União e passaram a ajudar apenas os governadores amigos dos Estados Unidos. Depois é que veio a promessa de ajuda aos militares golpistas, se por acaso ocorresse uma guerra civil. Outros países foram tratados de igual forma, os governos amigos a pão de ló, mesmo que fossem ditaduras, os recalcitrantes na base da ameaça do big stick, o porrete, como foi o caso da Guatemala de Jacobo Arbens, o Irã de Mossadegh, e outros. 

 

No caso da Ucrânia ou de outros países anteriormente fazendo parte da União Soviética, ou daqueles inseridos na chamada Cortina de Ferro nos tempos da Guerra Fria, não foram poucos os que incorrerão em retaliações de Moscou, mesmo deixando de lado as incursões armadas, como a Hungria de 1956, a Tchecoslováquia de 1968, ou ameaças de visitas de tanques soviéticos por discordâncias políticas, como a Polônia do Solidarnosc, a Romênia julgada muito independente, na primeira fase de Ceausescu, ou ainda a Albânia, que se bandeou para o lado da China maoísta, quando a União Soviética foi acusada de ser “revisionista”. Todos eles sofreram sanções ou ameaças de intervenção, quando não atuação direta do KGB junto aos membros fiéis dos partidos comunistas amigos de Moscou. Já na fase putinesca, a partir dos anos 2000, os países independentes das antigas repúblicas federadas soviéticas – bálticos e Europa central e oriental –, assim como os “associados” à Rússia, Belarus, Ucrânia e as antigas satrapias da Ásia central passaram por diversos constrangimentos derivados do desejo do novo czar de todas as Rússia de recompor as fronteiras do antigo império, cuja dissolução, disse ele, foi “a maior tragédia geopolítica do século XX”. Creio que foi realmente, ao cabo dos “dez anos que abalaram o mundo”, não exatamente o “fim da história”, mas o cumprimento de um vaticínio que já tinha sido antecipado muitos anos antes por mentes lúcidas como Hélène Carrère d’Encausse e Emmanuel Todd, por diferentes razões – periferia islâmica ou declínio demográfico –, mas todas elas convergentes com outro vaticínio, o de Jean-Baptiste Duroselle, segundo quem “todo império perecerá”. Aliás, o mesmo Emmanuel Todd escreveu um outro livro, Après l’Empire, prevendo a decomposição do império americano. 

Voltando à questão dos impactos econômicos da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia e seus efeitos sobre o Brasil, creio que muito já foi dito nas reportagens dos grandes jornais ocidentais e nos artigos analíticos e de opinião de famosos jornalistas e de economistas: podemos estar às vésperas de uma nova Grande Recessão, pelos efeitos combinados da guerra diretamente – interrupção de fluxos comerciais, ruptura de abastecimento, destruição dos canais logísticos do lado da oferta –, como pelos que derivam das fortes sanções unilaterais, mas convergentes, dos grandes atores da economia global, com exceção da China, que provocam consequências igualmente devastadoras para o alvo designado e para os autores das sanção. A China também não deixará de sentir os efeitos do novo regime de exclusão e de isolamento da Rússia, uma vez que seus grandes mercados estão praticamente todos nos países aplicadores de sanções. O Brasil, como a própria Rússia, sentiu os efeitos “benéficos” da guerra – subida das commodities de exportação, sobretudo na energia e nos alimentos –, mas também sofre os efeitos maléficos: inflação importada, ruptura de insumos cruciais para a economia brasileira, impactos difusos em quase todos os setores produtivos, no comércio exterior e no câmbio. 

Os economistas saberão explicar melhor do que eu a importância e a magnitude desses choques para a vida econômica e financeira do Brasil. O que eu poderia tentar argumentar, e com isso terminarei, seria a questão de saber se estamos entrando, como afirmou há pouco a velha raposa Henry Kissinger, numa nova era das relações internacionais. Creio que não é o caso, pelo menos não totalmente ou radicalmente, apenas parcialmente, uma vez que a Rússia é, sim, um grande ator das relações internacionais. Mas é preciso bem mais do que o isolamento de um grande ator para precipitar o surgimento de um mundo inteiramente diverso deste que temos atualmente, com a ordem econômica nascida em Bretton Woods, e ainda resiliente, e a ordem política inaugurada em San Francisco, e que ainda se mantém, a despeito de fissuras em seu edifício mais do que septuagenário. 

A questão central me parece ser o direito de veto, o mesmo que impede a imposição de sanções multilaterais contra a Rússia – da mesma forma como foi feito contra a África do Sul do Apartheid, contra a Rodésia do Sul de minoria branca, contra a Coreia do Norte, o Iraque de Saddam Hussein, o Afeganistão dos talibãs dos anos 2000. Creio que será preciso uma longa caminhada da comunidade internacional para que a Assembleia Geral, em talvez mais vinte ou trinta anos, com a crescente multipolaridade mundial, consiga dobrar a prepotência dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança no sentido de banir essa discriminação no princípio básico das relações internacionais contemporâneas, que é a igualdade soberana dos Estados, como proclamava Rui Barbosa em 1907. 

Não será uma caminhada fácil, pois o atual sistema do CSNU se parece muito com aquele velho samba-canção sobre a gafieira: “quem está fora não entra, quem está dentro não sai”, mas não é verdade que o baile segue calmamente: as tensões, e as ameaças de conflito nuclear, se acumulam, enquanto déspotas agressores permanecerem impunes. Pois é isso que está em causa atualmente no debate nos foros multilaterais sobre como tratar o caso da Rússia, de acordo com os princípios consagrados do Direito Internacional, ou aceitando escapatórias ao que deve ser feito, como parece estar ocorrendo neste mesmo momento com a diplomacia do Brasil sob o atual governo.

Com efeito, segundo leio uma matéria do jornalista Jamil Chade no UOL desta quarta-feira: 

O governo de Jair Bolsonaro manobra para tentar esvaziar uma resolução que será votada nesta semana na ONU (Organização das Nações Unidas) e retirar acusações diretas sobre crimes que possam ter sido cometidos na Ucrânia pela Rússia. O Itamaraty chegou a propor a exclusão do termo "agressão contra a Ucrânia" do projeto de resolução apoiado por europeus e países ocidentais. (“Na ONU, Brasil tenta esvaziar acusação contra Rússia por causa da guerra”, UOL notícias, 11/05/2022; link: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/05/11/na-onu-brasil-tenta-esvaziar-acusacao-contra-russia-por-causa-da-guerra.htm?cmpid=copiaecola&fbclid=IwAR2DeQ9qUOaaL9SHr4pN5HIFYzerGs0qWPcXWSVCTN1brteavEw5BjJ1wCk)

 

Como ainda escreveu o competente jornalista, registrando que a delegação do Brasil tem se esforçado para eliminar qualquer responsabilização da Rússia pelo que ela chama de  “conflito” e não de agressão, há um esforço visível para poupar a Rússia de qualquer tipo de acusação mais contundente: 

Ao longo das últimas semanas, o Itamaraty passou a adotar uma postura crítica contra diferentes resoluções apresentadas pela Europa nos vários órgãos internacionais. O argumento do Brasil é de que o "cancelamento diplomático" da Rússia ameaça aprofundar a crise e radicalizar as posições. Ao lado de China, Índia e outros países, o Brasil também é contra a expulsão dos russos do G20 e não deu seu voto para a suspensão do Kremlin do Conselho de Direitos Humanos.

 

Esse é o mesmo Brasil que, junto com o G4 – em companhia da Índia, da Alemanha e da África do Sul – tem envidado muitos esforços, desde a era Lula, para reformar a Carta da ONU, ampliar o número dos membros permanentes do seu Conselho de Segurança, a pretexto de “democratizar as relações internacionais”, que mais parece uma tentativa de ampliar a atual oligarquia num sistema que deveria ser simplesmente eliminado. Se não fosse uma ilusão política, sem qualquer correspondência com a capacidade do Brasil de contribuir efetivamente para a paz e a segurança internacionais, eu diria que é pura hipocrisia.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4153: 11 maio 2022, 5 p.