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segunda-feira, 17 de julho de 2023

Guerra na Ucrânia gera impasse em cúpula entre Europa e América Latina -Jamil Chade (UOL)

Vamos ser claros: o Brasil, como principal país, mas também os autoritários conhecidos (Cuba, Venezuela, Nicarágua), não  querem de nenhuma forma descontentar o criminoso de guerra Putin. Sabemos os motivos, por parte das três ditaduras. Mas a oposição do Brasil é mais escandalosa, pois que partindo de um país supostamente democrático, mas com um governo atualmente amigo de ditaduras, especialmente das duas do Brics.

Paulo Roberto de Almeida

Guerra na Ucrânia gera impasse em cúpula entre Europa e América Latina

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Guerra na Ucrânia: depois da batalha de Artyomovsk - Andrew Korybko (A Terra é Redonda)

 

Guerra na Ucrânia – depois da batalha de Artyomovsk


Por ANDREW KORYBKO*

Análise do estado atual do teatro de guerra e o significado da batalha de Artyomovsk para russos e ucranianos

A Rússia declarou vitória na Batalha de Artyomovsk no sábado, 21 de maio, depois de 224 dias de combates. Volodymyr Zelensky previu, no início de março, que seus oponentes poderiam avançar pelo resto do Donbass se isso acontecesse, razão pela qual o líder ucraniano ordenou às suas forças que lutassem até o fim, apesar de os Estados Unidos o terem aconselhado a retirar-se dali já em janeiro. Este artigo avalia o estado atual da situação com o objetivo de obter uma melhor ideia do que poderá vir a seguir.

Artyomovsk não é uma cidade estratégica

Não há nada de especial em Artyomovsk que a distinga de outras cidades de tamanho semelhante no Donbass, embora seu controle, de uma forma ou de outra, possa facilitar o acesso ao resto das posições mais estratégicas da região.

Em vez de retirar pragmaticamente suas forças para salvar vidas e reforçar posições muito mais facilmente defensáveis em outros locais, Volodymyr Zelensky decidiu transformar Artyomovsk em outra Mariupol por razões puramente políticas relacionadas com o reforço do moral de suas tropas e com o fomento da guerra de informação anti-russa.

A Rússia virou o jogo

À medida que a Batalha de Artyomovsk se arrastava, Volodymyr Zelensky tentou justificar sua decisão de não se retirar com o falso argumento de que queria esmagar as forças de seu adversário e ganhar tempo para a contraofensiva de Kiev, mas a Rússia virou o jogo, esmagando as forças dele e ganhando tempo para preparar seus próprios planos.

O plano de Volodymyr Zelensky para reforçar o moral de sua tropa ao longo desta batalha saiu totalmente pela culatra depois que a vitória da Rússia mostrou que milhares de ucranianos morreram literalmente por nada, o que pode levar a uma crise de confiança com implicações de longo alcance para este conflito se ele não reparar rapidamente este dano.

A cisão entre o Ministério da Defesa russo e o Grupo Wagner

Apesar dos receios de que a escalada da rivalidade entre o Ministério da Defesa e o Grupo Wagner pudesse fazer com que a Rússia perdesse a Batalha de Artyomovsk, ao final, ela não se revelou fatal e parece ter sido gerida discretamente pelo presidente Vladimir Putin, como demonstrado no domingo pelo agradecimento a ambos por esta vitória.

A contraofensiva de Kiev apoiada pela OTAN parece ser iminente

Volodymyr Zelensky precisa recuperar urgentemente o moral de sua tropa e mostrar à população de seus patronos ocidentais que a ajuda militar fornecida pelos contribuintes, no valor de 165 bilhões de dólares, foi utilizada para alguma coisa, talvez até mesmo para tentar invadir o território russo antes de 2014, razão pela qual a contraofensiva de Kiev apoiada pela OTAN parece ser iminente.

proposta de Henry Kissinger para que a Ucrânia se junte à OTAN e o artigo do Politico prevendo um conflito congelado do tipo coreano sugerem que os EUA, o Reino Unido e/ou a Polônia farão promessas de segurança a Kiev na próxima cúpula do bloco, tal como as que os EUA fizeram à Finlândia e à Suécia em maio passado ou à Coreia do Sul após o armistício.

A pressão por um cessar-fogo

China, a Arábia Sauditaalguns países africanos e o Vaticano pressionam por um cessar-fogo, mas as perspectivas de que isso seja bem sucedido (independentemente de quem desempenha esse papel) dependerão em grande medida do resultado da próxima contraofensiva de Kiev e da próxima Cúpula da OTAN.

A menos que Kiev, apoiada pela OTAN, ou a Rússia consiga um avanço militar até o final do ano, um cessar-fogo de algum tipo parece inevitável, tornando assim seus respectivos esforços de gestão da percepção fundamentais, uma vez que terão que convencer sua população de que ganharam mesmo que não tenham atingido seus objetivos máximos.

Teorias da conspiração

Quer se trate da teoria da conspiração “xadrez 5D”, que afirma que “tudo está acontecendo de acordo com o plano”, ou da teoria da “perdição e melancolia”, que diz a todos para “abandonarem todas as esperanças”, os apoiadores de ambos os lados vão certamente deparar-se com estas falsas narrativas com mais frequência à medida que a guerra por procuração entre a OTAN e a Rússia entra na sua próxima fase.

As observações acima partilhadas sobre o estado atual deste conflito sugerem que este se intensificará em breve com o início da contraofensiva de Kiev apoiada pela OTAN, mas que não é provável qualquer avanço de ambos os lados, a menos que o comando e controle e/ou a logística entrem em colapso. Qualquer uma destas situações pode acontecer devido aos ataques do adversário e/ou a intrigas internas, mas nenhuma delas deve ser considerada um fato consolidado. Assim sendo, um cessar-fogo ao longo da linha de contato poderá começar a ser seriamente discutido no final do ano.

*Andrew Korybko é mestre em Relações Internacionais pelo Instituto Estadual de Relações Internacionais de Moscou. Autor do livro Guerras Híbridas – Das Revoluções Coloridas aos Golpes(Expressão Popular).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Publicado originalmente na newsletter do autor.

terça-feira, 9 de maio de 2023

Guerra na Ucrânia – depois de Bakhmut (uma visão cética) - Michael G. Foeller, David H. Rundell (Newsweek)

 Guerra na Ucrânia – depois de Bakhmut


Bakhmut / Artemovs
MICHAEL G. FOELLER  &  DAVID H. RUNDELL*

A batalha sangrenta deixou a Ucrânia ferida e a Rússia em ascensão

Não há nada de patriótico quando um americano ergue uma bandeira ucraniana. Também não há traição quando um americano questiona o apoio ilimitado a uma nação estrangeira numa guerra estrangeira. Reconhecer que a Ucrânia não derrotará a Rússia sem uma intervenção americana muito maior não é algo pró-russo, mas pró-realidade.

Entre 2014 e 2022, houve uma violenta insurreição separatista no leste da Ucrânia. Para evitar a intervenção russa, o governo de Kiev construiu uma linha de cidades fortemente fortificadas e rotas de abastecimento ao longo de sua fronteira oriental. Bakhmut era uma importante plataforma de transporte nessa rede.

Há cinco meses, quando escrevemos que Bakhmut em algum momento cairia nas mãos dos russos, alguns leitores destas páginas zombaram de nós. Não sabíamos que a Ucrânia estava ganhando a guerra? Pois bem, os ucranianos defenderam-se de forma notável naquela que se tornou a batalha mais sangrenta do século XXI, mas a maior parte de Bakhmut, incluindo as linhas ferroviárias vitais, caiu. Demorou mais tempo do que esperávamos, mas esta derrota tornou ainda menos provável que a Ucrânia consiga restabelecer suas fronteiras de 2014 sem a intervenção direta das tropas da OTAN.

Quantas vezes ouvimos dizer que as tropas russas, mal treinadas, mal conduzidas e mal equipadas, muitas delas de mercenários e ex-presidiários, sofreram perdas espantosas e foram obrigadas a recuar do território que inicialmente capturaram? Tudo isto pode ser verdade. Isso não altera o fato de que agora a Rússia está preparada para tirar o máximo proveito da queda de Bakhmut quando chegar o tempo seco do verão.

Há sete meses, a Rússia mobilizou 300.000 reservistas e aproveitou esse meio tempo para treiná-los. Acelerou a produção de armamento e acumulou quantidades significativas de equipamento e munições. Centenas de milhares de tropas russas estão agora posicionadas no leste da Ucrânia, onde começaram a avançar em numerosos locais ao longo de uma frente de 724 quilômetros.

A Ucrânia, por outro lado, concentrou muitas de suas tropas mais bem equipadas e treinadas em Bakhmut, onde foram bombardeadas durante meses pela artilharia, mísseis e drones russos. Na batalha de Bakhmut, a Ucrânia perdeu milhares de tropas experientes que não podem ser substituídas por recrutas com algumas semanas de treino acelerado.

As armas ocidentais tornaram possível a defesa de Bakhmut. Repetidamente, o apoio da OTAN à Ucrânia elevou-se de mísseis Javelin e Stinger de curto alcance para baterias de mísseis HIMARS e Patriot de médio alcance, e para armas pesadas como tanques Abrams e veículos de combate Bradley. À medida que a maré da batalha se voltava contra os insuficientes e mal armados ucranianos, os defensores de Kiev no Ocidente não pararam para refletir sobre a forma como poderiam pôr fim a esta tragédia. Em vez disso, pediram a entrega de caças e mísseis de longo alcance.

Estas entregas de armas alimentaram a ira pública generalizada na Rússia e a convicção de que agora estão em guerra com a OTAN. A entrega de tanques alemães Leopard II resultou em manchetes em Moscou tais como “Os tanques alemães estão novamente em solo russo”, e até em editoriais afirmando que “O Quarto Reich declarou guerra à Rússia”. Não é preciso ser profeta para ver para onde essa escalada persistente está levando ou por que ela tem que parar.

Em última análise, não somos generais, mas entendemos de economia. Sempre nos pareceu extremamente improvável que uma nação com um PIB de 200 bilhões de dólares em 2021 e uma população de 44 milhões de habitantes pudesse derrotar uma nação com um PIB de 1,8 trilhão de dólares e uma população de 145 milhões de habitantes. E isto seria particularmente verdadeiro se somente a nação maior, ou seja, a Rússia, possuísse uma força aérea considerável, indústrias de defesa significativas e armas nucleares.

De acordo com as estatísticas do Banco Mundial, a Ucrânia tinha uma população de 44 milhões de pessoas quando a guerra começou, mas atualmente apenas metade desse número ainda se encontra em suas casas. Onze milhões de ucranianos fugiram para a Europa ou estão deslocados internamente. Vários milhões de ucranianos fugiram para a Rússia e outros milhões vivem agora em áreas sob controle russo.

No ano passado, a economia ucraniana registou uma contração de 30%, enquanto o PIB russo caiu apenas 3%. O rublo é hoje tão forte em relação ao dólar como era quando a guerra começou. O FMI prevê que, em 2023, o crescimento do PIB da Rússia ultrapassará os da Grã-Bretanha e da Alemanha. É evidente que as sanções ocidentais não destruíram a economia russa.

Enquanto a Rússia continua sendo largamente autossuficiente em alimentos, energia e equipamento militar, grande parte da infraestrutura da Ucrânia está em ruínas. Embora a Ucrânia tenha se tornado fortemente dependente da OTAN em armamento, tanto as reservas da própria OTAN como as antigas reservas de munições soviéticas da Ucrânia, de projéteis de artilharia e mísseis de defesa aérea, estão esgotando-se rapidamente. Nesta guerra de desgaste, o tempo não está do lado de Kiev.

Moscou encara qualquer presença da OTAN na Crimeia da mesma forma que Washington encararia os mísseis russos em Cuba ou uma base naval chinesa na Nova Escócia. Nunca foi realista esperar que a Rússia entregaria a Crimeia sem sofrer uma derrota militar decisiva. Agora, porém, os termos de paz que Kiev pode esperar tornaram-se ainda menos favoráveis do que eram há sete meses.

Do ponto de vista de Moscou, os referendos realizados em setembro de 2022 transformaram as províncias de Lugansk, Donetsk, Zaporizhia e Kherson em regiões da Federação Russa e, consequentemente, Moscou procurará agora obter o controle total delas. Em seis meses, a Rússia poderá muito bem ditar condições de paz ainda mais duras.

Os requisitos clássicos para uma guerra justa incluem uma possibilidade razoável de vitória. Enquanto uma geração de homens ucranianos está morrendo, a triste realidade é que a Ucrânia tem tantas chances de ganhar uma guerra contra a Rússia como o México teria de vencer uma guerra contra os Estados Unidos. Prolongar o conflito não vai alterar essa equação. Mais mortes de ucranianos e destruição da infraestrutura só traumatizarão ainda mais aquela sociedade. A menos que estejamos preparados para arriscar uma escalada significativa, que poderia muito bem envolver forças da OTAN lutando contra os russos, a melhor forma de assegurar a sobrevivência de um Estado ucraniano viável e independente é negociar um acordo agora.

*Michael Gfoeller é embaixador, membro do Conselho de Relações Exteriores. Serviu por 15 anos na União Soviética, na Rússia e na Europa Oriental.

*David H. Rundell é ex-chefe de missão da Embaixada Americana na Arábia Saudita. autor de Vision or Mirage, Saudi Arabia at the Crossroads (I. B. Tauris).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Publicado originalmente no portal da revista Neesweek.


domingo, 19 de março de 2023

Lula na China: Guerra na Ucrânia e comércio estão entre as prioridades - Ingrid Soares, Rosana Hessel (Correio Braziliense)

Uma matéria que contou com minha colaboração sob a forma de entrevista:  

Lula na China: Guerra na Ucrânia e comércio estão entre as prioridades

Após um ano de conflito no leste europeu, analistas avaliam que o mundo estará de olho nas declarações de Lula e do presidente chinês, Xi Jinping

Ingrid Soares, Rosana Hessel
Correio Braziliense, 19/03/2023 

No encontro bilateral entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente chinês, Xi Jinping, durante a visita de Estado do chefe de Estado brasileiro ao país asiático, entre 26 e 30 deste mês, a guerra entre Rússia e Ucrânia, será um assunto inevitável.

O embaixador Eduardo Saboia, secretário de Ásia e Pacífico do Ministério das Relações Exteriores, reconhece que o momento para o encontro de Lula e o líder chinês é propício para colocá-los em destaque no cenário global, porque os dois presidentes estarão em evidência e o mundo vai querer ouvir o que eles têm para falar, especialmente após China fazer uma proposta para o fim do conflito e Xi Jinping ir a Moscou visitar o presidente russo, Vladimir Putin, que teve a prisão decretada pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), sediado em Haia, na Holanda, na sexta-feira.

O diplomata e professor Paulo Roberto de Almeida considera que a viagem de Lula à China tem aspectos potencialmente benéficos ao Brasil, e, ao mesmo tempo, preocupantes no plano político. "O superavit comercial que o Brasil obtém nas suas exportações para a China é absolutamente crucial para equilibrar a balança de transações correntes do Brasil, que é cronicamente deficitária", afirma.

Almeida demonstra otimismo para um bom diálogo bilateral durante a visita de Estado de Lula ao país asiático. Contudo, do ponto de vista político, as coisas se complicaram após a invasão russa da Ucrânia, na avaliação dele.

"À medida em que o Brics (bloco integrado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), está numa posição incômoda de neutralidade positiva em relação ao presidente russo. Então, não se imagina que países que pertençam ao Tribunal Penal Internacional, como é o caso do Brasil, possam acolher um criminoso contra o qual existe uma ordem de prisão decretada", emenda.

Almeida acha que Putin não deverá comparecer à próxima reunião de cúpula do Brics, em agosto, na África do Sul. "Esse é um aspecto extremamente delicado para o Brasil, porque ele fica em confronto com as demais nações do Ocidente que estão apoiando a Ucrânia. É algo terrivelmente desgastante para Lula. Esse será o aspecto mais delicado na sua visita à China, que é uma apoiadora, ainda que não entusiasta, dessa invasão russa", destaca.

Lucas Fernandes, coordenador de análise política da BMJ Consultores Associados, avalia que o Brasil continuará na linha de neutralidade, apesar de que, em algumas declarações extra oficiais, Lula chegou a culpar a Ucrânia pelo conflito.

"O presidente brasileiro tem uma postura um pouco dúbia, mas quando a gente olha para esse posicionamento, em certa medida, está alinhado com a China. A China é a principal aliada do Putin, e não tem também declarado um apoio formal à Rússia, não tem oferecido armamento mas é um país que não fechou as portas para os russos e que segue sendo o maior parceiro comercial de Moscou", ressalta.

Porém, Fernandes acredita que a viagem não deverá causar atritos diplomáticos com os Estados Unidos e, muito menos, com o presidente norte-americano, Joe Biden, que foi visitado por Lula no mês passado, mas sem a pompa de uma visita de Estado como será na China.

"O Brasil, ao não ter chancelado as sanções econômicas que foram feitas à Russia, fica no terreno da neutralidade. Está alinhado com o comportamento dos demais países do Brics, tentando adotar um tom mediador. Não acredito que essa viagem abale as relações do Lula com o governo Biden."

O especialista da BMJ analisa que o grande foco da viagem está nas relações econômicas com a China. "O governo tem uma agenda ambiciosa de tentar assinar até vinte acordos bilaterais. Eles devem focar, sobretudo, em agricultura. A China é o maior comprador de produtos agrícolas do Brasil, e também em termos de ciência e tecnologia, que são estratégicos. A China é um dos mercados tecnológicos do mundo, logo, acordos de cooperação podem trazer bons incentivos para o Brasil", afirma.

Para ele, na passagem por Xangai, o chefe do Executivo brasileiro deverá fortalecer a posição do Brasil em relação aos Brics, cuja sede fica na cidade chinesa, o que reforça a natureza comercial e política da visita. "Essa, sim, mudou bastante. Na gestão Bolsonaro, o bloco Brics não foi tratado como uma prioridade. Lula tem repensado isso. E a gente deve ver a ex-presidente Dilma Rousseff assumindo a presidência da instituição. Nessa comitiva, também viajam uma série de empresários e políticos, portanto, essa questão da Rússia-Ucrânia, que deve ser tangencial, não é o foco prioritário dessa viagem", complementa.

Wagner Parente, consultor em relações internacionais, também considera que Lula deverá focar mais em questões comerciais e de investimentos nas conversas com Xi Jinping. "O presidente deverá tratar do acordo com a BYD e a Ford na Bahia, além de outras áreas de cooperação. Em relação aos EUA, a diplomacia do PT foi sempre pautada pela independência e na altivez. Essa situação de se equilibrar entre as duas potências no momento deve ser uma tônica dos próximos quatro anos. Entendo que o Brasil vai ser o mais isento possível, tentando um diálogo com seus principais parceiros comerciais".

"Lula tentará trazer de lá compromissos mais concretos de investimentos, mas terá dificuldades para fazer isso, talvez promessas. Mas investimentos concretos acho difícil. A gente vê com algum ceticismo. Talvez novidade em relação ao banco dos Brics", reforça.

FRASE

O superavit comercial que o Brasil obtém nas suas exportações para a China é absolutamente crucial para equilibrar a balança de transações correntes do Brasil, que é cronicamente deficitária"
O diplomata e professor Paulo Roberto de Almeida


terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

É impossível compreender a guerra na Ucrânia sem conhecer a História - Timothy Snider (O Estado de S. Paulo)

É impossível compreender a guerra na Ucrânia sem conhecer a História

Timothy Snider

O Estado de S. Paulo, 28/02/2023

Enquanto dava uma aula de história ucraniana no semestre passado, senti um gosto do surreal. A guerra na Ucrânia já estava em andamento há meio ano quando comecei. Uma potência nuclear tinha atacado um país que abriu mão de suas armas nucleares. Um império tentava deter a integração europeia. Uma tirania tentava esmagar uma democracia vizinha. Nos territórios ocupados, a Rússia cometeu atrocidades genocidas com claras expressões de intenção genocida.

E ainda assim, a Ucrânia estava reagindo. Os ucranianos resistiram à chantagem nuclear, desprezaram o império fanfarrão e assumiram riscos em nome da sua democracia. Em Kiev, Kharkiv e, mais tarde, Kherson, eles derrotaram os russos, detendo a tortura, o assassinato e a deportação.

Estávamos em um ponto de inflexão histórica. Mas onde estava a história? As telas de TV mostravam continuamente a Ucrânia, e a única coisa que um espectador poderia dizer com alguma certeza é que os comentaristas jamais estudaram a Ucrânia. Ouvi de antigos alunos meus, atualmente empregados no governo ou no jornalismo, o quanto estavam felizes por terem feito o curso de história do Leste Europeu. Disseram estar um pouco menos surpresos que os outros com a guerra; disseram ter mais pontos de referência.

O contraste entre a importância histórica dessa guerra e a falta de lição de casa em história revela um problema maior. Conhecemos muito pouco da história. Projetamos o ensino para envolver questões técnicas: como fazer. E solucionar os problemas do cotidiano é muito importante.

Mas, se nos privamos da história, tudo é uma surpresa: o 11/9, a crise financeira, a invasão do Capitólio, a invasão da Ucrânia. Quando somos chocados todos os dias mas não temos história, tateamos em busca de pontos de referência, e nos tornamos vulneráveis a pessoas que nos dão respostas fáceis. Então o passado se torna a dimensão do mito, na qual aqueles que ocupam o poder geram as narrativas que julgam mais convenientes.

O presidente russo Vladimir Putin contou uma história a respeito do passado que nada tem a ver com a História. De acordo com ele, Rússia e Ucrânia foram criadas juntas, no batismo de um governante mil anos atrás. Partilham a mesma cultura, e portanto devem ser governadas pela mesma pessoa. Se parecer que algo diferente aconteceu, não seria de fato um capítulo dessa história. Se os ucranianos acreditarem que não são russos, isso seria resultado da obra nefasta de forasteiros. Putin não se limitou a dizer essas coisas: ele aprovou leis da memória para evitar que os russos sejam questionados pela história, e chegou a riscar dos manuais a palavra “Ucrânia”.

Em termos de lógica, é algo circular; e enquanto política, é algo tirânico. Se eu pudesse afirmar que os canadenses são americanos porque falam a mesma língua, ou porque partilhamos uma história em comum, isso nos pareceria um motivo idiota para dar início a uma invasão. Quando um ditador reivindica o poder de definir a identidade de outro povo, a questão da liberdade desse povo jamais vem à tona. Se a identidade for congelada para sempre pelos desígnios de um governante, os cidadãos logo se veem sem escolha.

Enquanto observamos onde essa lógica levou os russos, começamos a questionar a validade dessas histórias. Mas não deveria ser necessário uma atrocidade tão óbvia para nos fazer duvidar. Até recentemente, era grande demais o número de comentaristas que se contentavam em seguir a versão de Putin: Rússia e Ucrânia eram eternamente semelhantes de alguma forma, pessoas que falam russo são russas de alguma forma, e a cultura de acordo com as definições de um ditador seria o seu destino.

Foi surreal, de maneira bem diferente, quando milhões de pessoas vieram participar da minha aula online. Os americanos tinham percebido que havia algo de errado no mito russo, mas não sabiam como preencher a lacuna. Foi animador ouvir, nos milhares de e-mails que recebi, que essa lacuna poderia ser preenchida pela história. Foi um semestre muito animado; a história estava fazendo os estudantes pensarem. Quando pensamos historicamente, reconhecemos que as comunidades políticas têm ascensão e queda, e que as escolhas humanas — incluindo as escolhas perversas de tiranos militaristas — são sempre parte da história. Aprendemos a absorver melhor os eventos. Despertamos para as vivências dos outros. Para mim, pessoalmente, foi tocante ouvir relatos dos próprios ucranianos, incluindo soldados da linha de frente, que acompanharam a aula online.

A história ucraniana dá mais sentido ao mundo de hoje. Toda a trajetória da nossa civilização ocidental, dos gregos em diante, fica mais clara se entendermos que Atenas era alimentada pelo que é atualmente o sul da Ucrânia. A fantástica história dos vikings torna-se ainda mais surpreendente quando entendemos que eles fundaram um estado em Kiev. A era da exploração toma novas dimensões quando reconhecemos que potências polonesas e russas construíram seus impérios penetrando a leste na massa terrestre eurasiana, onde finalmente encontrariam a Ucrânia. A era dos impérios é concluída com os projetos neo-imperiais nazista e soviético, que tinham ambos o seu foco na Ucrânia. Esse conflito horrivelmente sangrento fez da Ucrânia o lugar mais perigoso do mundo durante a era totalitária de 1933 a 1945. Esse capítulo e a russificação que se seguiu tornaram a história da Ucrânia difícil de contar, até mesmo para os ucranianos.

Mas isso está mudando agora. Praticamente tudo que eu disse nas minhas aulas veio da obra de historiadores ucranianos. Iaroslav Hritsak, um dos melhores dentre eles, diz há décadas que a Ucrânia vai sobreviver quando uma nova geração amadurecer. Agora, isso ocorreu, não somente na minha área, mas no jornalismo, na sociedade civil, nos negócios e na política. A Ucrânia é diferente da Rússia por causa de sua história distinta, incluindo a história dos 30 anos mais recentes, desde o fim da União Soviética. Enquanto Putin empurrava seu país para a areia movediça dos mitos, os ucranianos — com seus votos, seus protestos e sua resistência — abriram caminho para chegar a uma noção mais confiante de si mesmos e de quem são.

Ao fazerem história, eles nos lembram que precisamos da história para compreendê-los melhor, para compreender melhor a guerra — e também para entender melhor a nós mesmos. Como os ucranianos, vivemos um ponto de inflexão histórica. Como eles, teremos que aprender história e desafiar os mitos para alcançar um futuro democrático.


TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL


* Timothy Snyder é professor de história na Universidade Yale e autor de “The Road to Unfreedom” e “Bloodlands” Sua edição atualizada em áudio de “On Tyranny” inclui novas aulas abordando a Ucrânia.

https://www.estadao.com.br/internacional/e-impossivel-compreender-a-guerra-na-ucrania-sem-conhecer-a-historia/

 

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Artigo do chanceler Mauro Vieira sobre a guerra na Ucrânia

 É hora de dar voz aos que querem a paz na Ucrânia; leia o artigo do chanceler Mauro Vieira


Países relevantes não diretamente envolvidos no conflito têm papel construtivo a desempenhar agor

Por Mauro Vieira
24/02/2023 | 05h00
Atualização: 24/02/2023 | 07h29

Um ano após a invasão do território ucraniano por forças russas, que deu início à guerra, o impasse armado no terreno, a retórica triunfalista de ambas as partes e as informações de inteligência sobre a perspectiva de novas ofensivas militares predominam. A cobertura da mídia reflete essa realidade, a de um conflito cujas perspectivas de solução imediata são – é preciso reconhecer – escassas.

O presidente Lula tomou posse neste contexto internacional desafiador, e desde então tem deixado clara a posição do Brasil, fiel à nossa tradição diplomática. Como ponto de partida, é inequívoca a condenação da invasão russa e da violação territorial de um Estado soberano, a Ucrânia.

Mas, um ano depois, a compreensão do governo brasileiro é a de que, em meio ao coro mais estridente, e de vozes poderosas, focadas na guerra e na sua forte dimensão geopolítica, chegou a hora de também dar voz aos que querem falar em caminhos para a construção da paz. O presidente Lula fez uma opção clara e pública nesse sentido.

O atual governo não desconhece que esforços anteriores em favor de um entendimento lograram apenas avanços pontuais, em questões humanitárias ou na possibilidade de retomada de exportação de grãos a partir dos portos ucranianos. O Brasil não chega para o debate em curso, portanto, com a pretensão de apresentar uma solução pronta. Chega, sim, para ouvir e para dialogar com os países e blocos dispostos a explorar o caminho do entendimento – e há vários países relevantes entre eles. Estou convencido de que a busca de novos avanços, ainda que pontuais, é passo necessário para iniciativas mais ambiciosas em matéria de paz.

A eventuais críticas internas a essa posição brasileira, em geral por um alegado excesso de protagonismo no cenário internacional a esta altura do conflito, respondo com fatos: seja nos contatos mantidos até agora pelo presidente Lula com 15 Chefes de Estado e de governo, seja nas mais de 40 reuniões que mantive com chanceleres, dirigentes de organismos internacionais e com outros chefes de Estado e de governo, a posição brasileira no conflito é bem compreendida. E vários desses interlocutores chegam a sugerir que ela é bem-vinda a esta altura, ainda que sejam pessimistas quanto ao fim do conflito no futuro mais imediato.

Papel construtivo
Da minha recente participação na Conferência de Segurança de Munique, na semana passada, à margem da qual mantive 21 encontros bilaterais em dois dias, trouxe – e transmiti ao presidente Lula – a convicção de que países relevantes como o Brasil, que não estão diretamente envolvidos no conflito, têm um papel construtivo a desempenhar no debate a partir de agora. Em nenhum dos encontros citados, entre eles com os chanceleres da Ucrânia e de vários outros países, ouvi qualquer crítica à disposição brasileira de explorar, em conjunto com outros interlocutores, caminhos que busquem criar as condições para o fim do conflito. Nossa atuação na deliberação sobre a mais recente resolução da Assembleia Geral da ONU sobre a guerra foi nesse sentido, o de conclamar as partes a cessarem hostilidades, termo que aparece pela primeira vez nos debates, por sugestão do Brasil.

Essa linha de atuação não perde de vista, em nenhum momento, o drama humano que chega diariamente às casas de todos, em especial das comunidades de imigrantes ucranianos e russos e de seus descendentes aqui radicadas. E tampouco ignora o impacto macroeconômico nacional e global da guerra, em particular no que se refere à elevação de custos de insumos para a produção agrícola e dos alimentos.

O Brasil continuará a perseverar nesse caminho, já a partir da reunião ministerial do G-20 em Nova Délhi, na semana que vem, da qual farei parte. E conta, neste momento, com suficiente massa crítica na comunidade internacional para que as vozes em favor do entendimento ganhem maior poder de influência nos movimentos e conversações capazes de evitar, no futuro, novas datas sobre a duração da guerra, como a triste marca de um ano completada hoje.


sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Guerra na Ucrânia: o primeiro de muitos anos? - Carolina Riveira (Exame)

Guerra na Ucrânia: o primeiro de muitos anos?

Carolina Riveira *

Revista Exame | Mundo

17 de fevereiro de 2023 

 

Em fevereiro de 2007, o presidente russo, Vladimir Putin, disse em Munique, na Alemanha, o que ficaria conhecido como uma de suas falas mais marcantes. "Acho óbvio que a expansão da Otan não tem nenhuma relação com a modernização da própria Aliança ou com a garantia da segurança na Europa", afirmou na ocasião, em uma crítica direta à entrada de países vizinhos da Rússia na Otan, aliança militar criada nos tempos de guerra fria entre União Soviética e Estados Unidos. "Temos o direito de perguntar contra quem se destina essa expansão", disse Putin.

 

Para muitos, hoje está claro que o discurso foi a largada do que se veria 15 anos depois, quando aeronaves russas bombardearam Kiev na madrugada de 24 de fevereiro de 2022, dando início à atual guerra contra a Ucrânia.

 

O argumento oficial para o ataque incluiu sandices como uma "desnazificação" ucraniana e suposta proteção de russos étnicos vivendo na região. Na prática, Putin expôs sua visão de que a Ucrânia não tem o direito de agir de forma independente de Moscou e, além disso, esboçou o que acredita ser uma resposta ao Ocidente por expandir a Otan para a antiga órbita soviética no Leste Europeu - tema que se tornou uma obsessão de Putin, como mostra o discurso de 2007. De lá para cá, sem uma saída nem diplomática nem militar no horizonte próximo, a guerra em solo ucraniano completa neste mês o que pode ser só o primeiro de muitos anos.

 

Chegar a um ano de guerra sem definição não era necessariamente o esperado no começo de 2022. Dias antes de Putin ordenar os primeiros ataques a Kiev, a leitura era de que a Rússia poderia derrubar com alguma facilidade o presidente Volodymyr Zelensky e instalar na Ucrânia um governo aliado, como já ocorre em alguma medida na vizinha Belarus. Oficiais da inteligência dos Estados Unidos e da União Europeia chegavam a dizer naquela época à imprensa, em condição de anonimato, que a tomada russa poderia vir "em questão de dias".

 

Não à toa: a Rússia tinha, no começo da guerra, 900.000 cabeças ativas no Exército e 2 milhões na reserva, o segundo maior Exército do mundo e o triplo das forças ucranianas, além de força aérea muito mais sofisticada. Chegou-se a pensar que o mundo reviveria imagens como as do Afeganistão meses antes, quando o Talibã derrubou o governo quase sem resistência.

 

Não foi o que aconteceu na Ucrânia, por algumas razões. A Rússia iniciou a invasão dividindo as tropas e atacando o país por todas as frentes, certa de que sufocaria a reação. Pelo contrário, a combinação entre o ataque difuso, a surpreendente resistência ucraniana e a resposta unificada de potências do Ocidente travou o avanço russo nos arredores da capital Kiev ao norte. Os confrontos, hoje, se restringem principalmente ao leste da Ucrânia.

 

"Putin não conseguiu colocar um fantoche em Kiev como esperava, e esse tipo de vitória não é mais vista como viável", diz Alexandra Vacroux, diretora-executiva do Davis Center para Estudos de Rússia e Eurasia na Universidade Harvard, nos Estados Unidos. Ela argumenta, por outro lado, que Moscou, apesar de tudo, ainda controla quase 20% do território ucraniano. "Então há algum sucesso militar, mesmo que a estratégia inicial tenha falhado."

 

Entrando no segundo ano de guerra, os dois lados estão agora preparados para novas ofensivas. No fim de 2022, a Ucrânia retomou alguns territórios que havia perdido, como a estratégica cidade de Kherson. No começo de fevereiro, potências ocidentais também ensaiavam enviar equipamentos mais modernos ao país.

 

Já a Rússia, depois de perder pessoal experiente nos primeiros meses do conflito, convocou 300.000 reservistas, colocou a indústria em modo de guerra e está pronta para tentar mais avanços.

 

"Hoje, o consenso é claro de que vai ser uma guerra longa", resume Tomas Jermalavi?ius, pesquisador de inteligência de guerra no Centro Internacional para Defesa e Segurança (ICDS), na Estônia. "A Ucrânia obteve sucessos espetaculares em se defender, mas também terá certa desvantagem até estar pronta para usar os novos equipamentos. Já a Rússia parece estar se movendo em modo de contraofensiva, tentando afastar os ucranianos e reivindicar Donbas [região separatista no leste] em breve. É difícil dizer quem vai ser bem-sucedido e quando."

 

Mesmo que a realidade no campo de batalha esteja mais dura do que nunca, para o restante do mundo não diretamente envolvido a guerra pode ter impactos menos visíveis neste segundo ano. Na frente econômica, ainda não é visto como provável que se repita a panaceia do começo de 2022, quando a Europa perigava ficar sem energia no inverno, o Brasil perigava ficar sem fertilizantes e os mercados assistiam ao preço do petróleo chegar às alturas.

 

Essas incertezas ajudaram a piorar a inflação no mundo - que já subia com os choques da covid-19 - , fazendo bancos centrais entrar de vez em ritmo de alta de juros e aumentando riscos de recessão. Mas, passado um ano, parte dos gargalos da guerra já foi absorvida nos mercados no curto prazo. "A guerra só piorou de lá para cá. Mas o mundo não responde à gravidade do evento, responde com base no susto", diz Thiago de Aragão, analista especializado em relações internacionais na consultoria Arko e baseado nos Estados Unidos. 

 

Quando a guerra estourou, o risco de alguma interrupção na oferta de petróleo russo fez o barril do tipo Brent chegar à casa dos 130 dólares. A partir de junho, no entanto, o preço baixou e está hoje na faixa dos 80 dólares - ainda alto na série histórica, mas longe do pior cenário.

 

"Aquele pico veio da incerteza sobre como seria a oferta russa. Agora já temos a resposta, e a resposta é: sim, o petróleo russo continuou fluindo", diz Jim Burkhard, vice-presidente e head de pesquisa de mercados de petróleo e mobilidade na S&P Global Commodity Insights.

 

O desafio inicial na frente energética também foi relativamente equacionado pelas potências. A Europa, dependente do gás russo e uma das principais afetadas pela guerra, diversificou o leque de fornecedores, embora siga sofrendo com inflação alta e energia cara.

 

Para 2023, o que ainda pode acontecer, no limite, é algum embate na Opep+, organização dos maiores produtores: se o preço do petróleo cair muito, a Rússia pode tentar um corte coordenado de produção para valorizar o insumo. Nesse caso, o resultado dependeria da resposta da Arábia Saudita, com quem os Estados Unidos têm cultivado uma aproximação (aliança que, em tempos de crise, conta com o governo Joe Biden fazendo vista grossa às situações de direitos humanos).

 

Mas tudo isso ainda está só no campo da possibilidade. A S&P projeta o barril entre 75 e 95 dólares neste ano, e a dúvida realmente concreta vem não da guerra, mas da China (o preço dependerá da dimensão da reabertura chinesa após o fim da política de covid zero, que pode alavancar a demanda global).

 

Não significa que não existam cenários imprevistos na guerra. A esta altura, ainda há uma série de frentes - das mais prováveis às inimagináveis - que podem fazer o conflito hoje restrito ao leste da Ucrânia escalar e respingar com força em outros países.

 

ameaça nuclear é a principal. A Rússia tem o maior arsenal de armas nucleares do mundo, seguida pelos Estados Unidos, em uma herança da guerra fria. Embora declarações do tipo ainda soem como bravata pelo potencial de destruição mútua, a cartilha nuclear é vez ou outra citada por Moscou. O ex-presidente Dmitry Medvedev, por exemplo, foi às redes sociais neste mês dizer que um ataque à Crimeia (território ucraniano anexado pela Rússia em 2014) seria visto como ataque ao próprio território russo e respondido com "inevitável retaliação, usando armas de qualquer tipo".

 

Ainda que nada disso ocorra deliberadamente, outro risco sempre presente é o de que embates atinjam usinas nucleares da Ucrânia, como no complexo de Zaporizhia, o maior da Europa e hoje controlado pela Rússia. Batalhas chegaram a ocorrer perto do local e a danificar o complexo, e agências nucleares internacionais apontam que as margens de segurança estão no limite.

 

"Uma tragédia acidental em uma usina pararia a Europa e as cadeias de suprimentos. Então, não é porque infelizmente normalizamos a tragédia que o perigo deixa de existir", diz Aragão, da Arko. Na linha do "tudo pode acontecer", mísseis que atinjam acidentalmente países da Otan também criariam um cenário de caos, assim como avanços russos que ameacem áreas no norte e oeste da Ucrânia, hoje vistas como menos afetadas - e para onde migrou parte dos 10 milhões de ucranianos que deixaram suas casas em zonas de guerra no ano passado. 

 

Se os efeitos imediatos talvez consigam ser minimizados em parte do mundo, os de longo prazo não poderão mais ser ignorados. Um impacto duradouro para absolutamente qualquer país - incluindo o Brasil - é que a guerra na Ucrânia mudou de vez a geopolítica deste século.

 

Herdeira da URSS mas longe do poderio da antiga potência (que chegou a ser a segunda economia do mundo), a Rússia está hoje somente entre as 15 maiores economias e é um competidor menos relevante globalmente. Por isso, a guerra na Ucrânia, mais do que o embate entre dois vizinhos, escancarou a disputa de gigantes que se desenha entre Estados Unidos, China e suas respectivas órbitas de influência.

 

Nenhum dos dois diz em alto e bom som que está envolvido no conflito. Mas a ajuda financeira e o envio de armas dos Estados Unidos são cruciais para que a Ucrânia brigue de igual para igual na guerra, enquanto a parceria econômica chinesa (e de alguns outros países vistos como ainda neutros, como a Índia) é chave para Moscou.

 

"A China mantém uma neutralidade pró-Rússia, embora não se possa dizer que está comprometida com a Rússia como a Otan está com a Ucrânia, com envio de armas", diz Felipe Loureiro, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) e organizador do livro Linha Vermelha: A Guerra da Ucrânia e as Relações Internacionais do Século 21.

 

A soma de fatores como a situação da China, o fortalecimento da Otan e a incapacidade de organismos multilaterais como as Nações Unidas de impedir a guerra é um indício que leva o pesquisador a afirmar que o mundo entra, de fato, em um novo ciclo. "Apesar de estarmos no calor do momento histórico, é possível dizer com alguma segurança que essa guerra é um divisor de águas", diz.

 

Para a Rússia, é na proximidade econômica com a China (mesmo que ainda não militar, como Moscou gostaria) que Putin aposta para seguir adiante. Era esperado que a economia russa encolhesse entre 8% e até mais de 10% em 2022 com o esforço de guerra e sanções recorde do Ocidente, mas projeta-se que o resultado foi muito melhor, perto dos 3%.

 

O pior das sanções conseguiu ser amenizado até o momento, o que explica a manutenção do ímpeto russo no front.

 

"O que é certo, pelo menos enquanto Putin estiver no poder, é que Moscou não reduzirá sua agressão - especialmente não diante da pressão ocidental. "Ali Wyne, analista sênior da consultoria de risco Eurasia.


 No meio do caminho

 

O economista e cientista político belga Gérard Roland, da Universidade da Califórnia, em Berkeley (Estados Unidos), já não teme dizer que a Ucrânia é o centro de uma "nova guerra fria" - inicialmente entre parte da Europa e a Rússia, mas que no futuro respingará em outros países.

 

A discussão não é nova. Desde o desmantelamento da União Soviética, a Otan e a própria União Europeia passaram a incluir nos anos 1990 e 2000 países do Leste Europeu, a contragosto da Rússia. Nesse meio tempo, enquanto quase todos os países da antiga órbita soviética entraram na Otan, como os Bálcãs, a Hungria e a Polônia, a Ucrânia ficou no meio do caminho, uma espécie de fronteira geográfica entre a Rússia e o resto da Europa.

 

Soma-se a isso um passado delicado entre Rússia e Ucrânia e as naturais divisões internas entre a própria população ucraniana - com a parte oeste querendo se aproximar mais da União Europeia e a parte leste sendo mais próxima da Rússia. A ascensão da China como potência antagonizando com os Estados Unidos só ajuda a intensificar a discussão.

 

"Neste momento, a 'guerra quente' só acontece na Ucrânia. Mas há uma nova guerra fria de facto", diz Roland, que acredita que, para Europa e Estados Unidos, vencer a Rússia ajudaria também a conter "as ambições hegemônicas da China".

 

Há debates acalorados sobre o uso do termo "guerra fria" ou sobre quanto, ao patrocinar o esforço de guerra ucraniano, a Otan não tem feito ela própria parte do conflito. Um consenso é que a questão ucraniana, independentemente do resultado no front, começa cada vez mais a respingar para outros debates, como o caso de Taiwan, território autônomo da China desde 1949 e que Pequim reivindica. 

 

Com as tensões crescentes, outra das visões consolidadas pela guerra é que os países olharão com cada vez mais atenção para seus investimentos em Defesa. Para alguns governos, como na União Europeia, pode ser uma mudança fundacional de paradigma.

 

Os países do bloco, somados, gastam hoje 1,5% do PIB em Defesa, patamar que foi reduzido progressivamente após o fim das guerras mundiais. O valor deve subir com as ameaças no quintal. "A Europa ainda depende dos Estados Unidos para sua Defesa, o que não é normal", critica Roland, de Berkeley.

 

Pouco antes da guerra, com o mundo ainda envolto na pandemia de covid-19, o discurso em muitos lugares era outro: o planeta havia chegado a 2 trilhões de dólares gastos com Defesa e pipocavam críticas de que tamanhos recursos poderiam ser gastos com políticas sociais, vacinas e meio ambiente.

 

Um grande exemplo é a Alemanha, país mais rico da União Europeia e onde o governo de centro-esquerda de Olaf Scholz (que substituiu a centro-direita de Angela Merkel após 16 anos) chegou ao poder em 2021 prometendo foco na política interna, no social e na questão climática. A guerra mudou tudo - fará a Alemanha gastar mais com Defesa e, de quebra, queimar mais carvão do que o previsto no processo de substituir o gás russo.

 

"Os países entram em uma fase em que, sem um big stick, sem uma ameaça militar crível, só a diplomacia pode não ser suficiente."Tomas Jermalavirius, do ICDS

 

Enquanto o mundo se arma e as implicações para o futuro ficam mais incertas, o segundo ano de guerra na Ucrânia, em solo, está apenas no começo.

 

E há um motivo puro e simples: os dois lados ainda acreditam que podem vencer, diz Chris Blattman, professor da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, e autor de Por Que Lutamos: As Raízes da Guerra e os Caminhos para a Paz, em que estudou os motivos que levam a guerras duradouras.

 

Até o momento, a Ucrânia afirma que não abrirá mão de nenhum território, incluindo a Crimeia que perdeu em 2014. As tropas ainda estão longe de obter tal cenário militarmente, mas apostam no aumento do apoio ocidental para chegar lá. Já o plano da Rússia, menos ambicioso do que o inicial de dominar o governo em Kiev, parece ser manter todo o leste e sul da Ucrânia, aumentando seu poder de barganha. Moscou, porém, pode partir para movimentos arriscados se sentir que está sendo verdadeiramente ameaçada na Crimeia ou no extremo leste, ambos hoje dominados sem esforço.

 

Como há uma diferença incompatível entre esses dois objetivos, vias diplomáticas serão carta fora do baralho enquanto persistir a incerteza na frente militar. "O que poderia acelerar o fim da guerra seria uma resolução dessa incerteza", argumenta Blattman.

 

Isso poderia ser uma série de vitórias decisivas da Ucrânia ou, o contrário, derrotas que levassem a uma virada da opinião na Europa Ocidental e redução do apoio militar. Ou, até mesmo, uma mudança de regime na Rússia. "Nenhum desses cenários parece provável no curto prazo", conclui Blattman. Mas ele alerta: "Todo mundo que tentou prever qualquer coisa errou até agora". 

 

A visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva aos Estados Unidos no início de fevereiro estava cercada de dúvidas sobre quanto a situação da Ucrânia apareceria na pauta. O tema surgiu. E foi até mesmo incluído no comunicado final, acordado por ambos os países, lamentando a "violação da integridade territorial da Ucrânia pela Rússia e a anexação de partes de seu território" - ações que o governo brasileiro concordou em chamar no texto de "violações flagrantes do direito internacional".

 

Em falas anteriores, Lula chegou a dizer que "quando um não quer, dois não brigam" - declaração de difícil tradução e questionada pela superficialidade. A posição brasileira, no fim, não chega a ser decisiva nesse tema. Mas tem sua relevância, já que o Brasil se prepara, por exemplo, para assumir em 2024 a presidência rotativa do G20, clube das 20 principais economias do mundo, e pode ter de falar mais vezes sobre a questão. "Ser neutro a esta altura pode parecer com ficar ao lado do agressor", diz Tomas Jermalavi?ius, do ICDS, que está baseado na vizinha direta do conflito Estônia e que acredita que a visão anti-imperialista do Brasil deveria se refletir nesse caso.

 

Ao fim e ao cabo, a posição brasileira não deve sofrer grandes alterações. Lula tem falado em criar um hipotético "clube da paz" para negociar, com apoio de países que não estejam envolvidos diretamente na guerra. Também pressiona para uma reforma no Conselho de Segurança da ONU, que falhou em impedir diplomaticamente o embate.

 

"Há uma responsabilidade russa direta pela invasão, que não pode ser esquecida, e nesse aspecto algumas das declarações anteriores de Lula foram infelizes", argumenta Felipe Loureiro, do IRI-USP. O Brasil, ainda assim, é a maior economia da América Latina, uma região importante do bloco "não alinhado" e que pode se tornar uma liderança junto com outros países do chamado Sul Global, como África e parte da Ásia. "Então existe algum espaço para manter certa neutralidade e tentar avançar em negociações", diz o professor. 

 

No começo da guerra, ainda sob o governo Jair Bolsonaro, o Brasil foi arrastado aos holofotes por uma visita do então presidente a Moscou, dias antes de o conflito estourar. Depois disso, o Itamaraty, seguindo a tradição, apoiou nota na ONU condenando o ataque. Como em boa parte das guerras anteriores, o Itamaraty tem um posicionamento visto como neutro na comunidade internacional: defende a autodeterminação dos povos, mas pede uma busca diplomática pela paz e se nega terminantemente a um alinhamento militar, como enviar armas à guerra.

 

Nas novas divisões globais que o último ano acentuou, a posição brasileira, nesse e em outros temas, será a de tentar unir a América Latina para uma relação mais equânime com a China, maior compradora das exportações do país, e, ao mesmo tempo, mostrar-se como um parceiro estável para os Estados Unidos de Joe Biden na região.

 

Tudo isso faz sentido em outras pautas, mas, para a guerra na Ucrânia, Thiago de Aragão, analista da consultoria Arko, acredita que a posição brasileira não geraria liderança em nenhum tipo de negociação. O Brasil tem uma situação diferente da de países do Sul Global como a Índia, que, embora no clube dos neutros, é um dos maiores parceiros comerciais da Rússia, ao lado da China, e determinante para o jogo de forças. "O Brasil tende a ser visto como um excelente parceiro para falar de meio ambiente e energia renovável, mas não para falar de Ucrânia ou Mar do Sul da China. O país tem pouca capacidade, hoje, de influenciar nesses assuntos", diz.

 

Dentro de casa, enquanto isso, há alguns fatores de atenção em meio à guerra. Uma preocupação imediata no começo do conflito foi a situação dos fertilizantes, dos quais a Rússia é o principal fornecedor nacional. A incerteza levou o preço dos insumos (derivados do petróleo) às alturas na época, embora a situação agora esteja equacionada. As exportações russas continuaram acontecendo, e os produtores brasileiros fizeram amplo estoque de fertilizantes, ainda que mais caros. Uma agenda de bioinsumos como substitutos também ganhou força. Para 2023, o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, disse ainda que a questão será tratada como "segurança nacional" e que, dentre outras medidas, a Petrobras pode voltar a investir em fábricas de fertilizantes. 

 

Apesar disso, alguns dos efeitos econômicos da guerra continuarão no Brasil. Como no resto do mundo, a alta do petróleo e das commodities (incluindo alimentos) fez subir os preços nas prateleiras dos brasileiros. A inflação chegou a passar de 10% no primeiro semestre de 2022 e só caiu por uma combinação entre alta de juros e subsídio via desoneração de combustíveis, incluindo os questionados, como a gasolina. A desoneração foi prorrogada temporariamente, mas deve acabar progressivamente nos próximos meses com a questão fiscal difícil. Se a demanda na China pressionar o preço do barril, a inflação poderá novamente ser um problema.

 

E a guerra, ainda que não esteja impactando os volumes de petróleo no momento, segue sendo uma "incerteza massiva e que pode levar a surpresas", diz Jim Burkhard, da S&P Global. Na outra ponta, como um dos maiores produtores de petróleo, o Brasil tem oportunidades. Burkhard diz que o mercado mudou com a guerra, muito menos focado nos tipos de óleo e mais nas origens. Assim, o Brasil se posiciona para ser fornecedor a quem quer que seja, além de receber investimentos. A Petrobras bateu em 2022 recordes de produção, um cenário que pode continuar. "O Brasil está aberto aos negócios ocidentais de uma forma que a Rússia não está", conclui o analista. 

 

Como se nota, a guerra na Ucrânia respinga nas estratégias globais brasileiras, especialmente no desafio de se espremer entre a crescente tensão dos Estados Unidos com a China. Em março, Lula desembarcará em Pequim para a primeira visita ao país, o maior parceiro comercial nacional. O convite mostra prestígio da atual gestão - "furando" uma longa fila de governos - e aumenta a pressão por movimentos estratégicos para se aproximar do gigante asiático sem conturbar a relação com os americanos. A nova política externa brasileira está no começo e terá grandes testes nos próximos meses.

 

 

* Repórter de Economia e Mundo, Formada pela Universidade de São Paulo, cobre temas de políticas públicas, economia e política internacional para a EXAME. Publicou em veículos como Pequenas Empresas e Grandes Negócios e Folha de S.Paulo.