É impossível compreender a guerra na Ucrânia sem conhecer a História
Timothy Snider
O Estado de S. Paulo, 28/02/2023
Enquanto dava uma aula de história ucraniana no semestre passado, senti um gosto do surreal. A guerra na Ucrânia já estava em andamento há meio ano quando comecei. Uma potência nuclear tinha atacado um país que abriu mão de suas armas nucleares. Um império tentava deter a integração europeia. Uma tirania tentava esmagar uma democracia vizinha. Nos territórios ocupados, a Rússia cometeu atrocidades genocidas com claras expressões de intenção genocida.
E ainda assim, a Ucrânia estava reagindo. Os ucranianos resistiram à chantagem nuclear, desprezaram o império fanfarrão e assumiram riscos em nome da sua democracia. Em Kiev, Kharkiv e, mais tarde, Kherson, eles derrotaram os russos, detendo a tortura, o assassinato e a deportação.
Estávamos em um ponto de inflexão histórica. Mas onde estava a história? As telas de TV mostravam continuamente a Ucrânia, e a única coisa que um espectador poderia dizer com alguma certeza é que os comentaristas jamais estudaram a Ucrânia. Ouvi de antigos alunos meus, atualmente empregados no governo ou no jornalismo, o quanto estavam felizes por terem feito o curso de história do Leste Europeu. Disseram estar um pouco menos surpresos que os outros com a guerra; disseram ter mais pontos de referência.
O contraste entre a importância histórica dessa guerra e a falta de lição de casa em história revela um problema maior. Conhecemos muito pouco da história. Projetamos o ensino para envolver questões técnicas: como fazer. E solucionar os problemas do cotidiano é muito importante.
Mas, se nos privamos da história, tudo é uma surpresa: o 11/9, a crise financeira, a invasão do Capitólio, a invasão da Ucrânia. Quando somos chocados todos os dias mas não temos história, tateamos em busca de pontos de referência, e nos tornamos vulneráveis a pessoas que nos dão respostas fáceis. Então o passado se torna a dimensão do mito, na qual aqueles que ocupam o poder geram as narrativas que julgam mais convenientes.
O presidente russo Vladimir Putin contou uma história a respeito do passado que nada tem a ver com a História. De acordo com ele, Rússia e Ucrânia foram criadas juntas, no batismo de um governante mil anos atrás. Partilham a mesma cultura, e portanto devem ser governadas pela mesma pessoa. Se parecer que algo diferente aconteceu, não seria de fato um capítulo dessa história. Se os ucranianos acreditarem que não são russos, isso seria resultado da obra nefasta de forasteiros. Putin não se limitou a dizer essas coisas: ele aprovou leis da memória para evitar que os russos sejam questionados pela história, e chegou a riscar dos manuais a palavra “Ucrânia”.
Em termos de lógica, é algo circular; e enquanto política, é algo tirânico. Se eu pudesse afirmar que os canadenses são americanos porque falam a mesma língua, ou porque partilhamos uma história em comum, isso nos pareceria um motivo idiota para dar início a uma invasão. Quando um ditador reivindica o poder de definir a identidade de outro povo, a questão da liberdade desse povo jamais vem à tona. Se a identidade for congelada para sempre pelos desígnios de um governante, os cidadãos logo se veem sem escolha.
Enquanto observamos onde essa lógica levou os russos, começamos a questionar a validade dessas histórias. Mas não deveria ser necessário uma atrocidade tão óbvia para nos fazer duvidar. Até recentemente, era grande demais o número de comentaristas que se contentavam em seguir a versão de Putin: Rússia e Ucrânia eram eternamente semelhantes de alguma forma, pessoas que falam russo são russas de alguma forma, e a cultura de acordo com as definições de um ditador seria o seu destino.
Foi surreal, de maneira bem diferente, quando milhões de pessoas vieram participar da minha aula online. Os americanos tinham percebido que havia algo de errado no mito russo, mas não sabiam como preencher a lacuna. Foi animador ouvir, nos milhares de e-mails que recebi, que essa lacuna poderia ser preenchida pela história. Foi um semestre muito animado; a história estava fazendo os estudantes pensarem. Quando pensamos historicamente, reconhecemos que as comunidades políticas têm ascensão e queda, e que as escolhas humanas — incluindo as escolhas perversas de tiranos militaristas — são sempre parte da história. Aprendemos a absorver melhor os eventos. Despertamos para as vivências dos outros. Para mim, pessoalmente, foi tocante ouvir relatos dos próprios ucranianos, incluindo soldados da linha de frente, que acompanharam a aula online.
A história ucraniana dá mais sentido ao mundo de hoje. Toda a trajetória da nossa civilização ocidental, dos gregos em diante, fica mais clara se entendermos que Atenas era alimentada pelo que é atualmente o sul da Ucrânia. A fantástica história dos vikings torna-se ainda mais surpreendente quando entendemos que eles fundaram um estado em Kiev. A era da exploração toma novas dimensões quando reconhecemos que potências polonesas e russas construíram seus impérios penetrando a leste na massa terrestre eurasiana, onde finalmente encontrariam a Ucrânia. A era dos impérios é concluída com os projetos neo-imperiais nazista e soviético, que tinham ambos o seu foco na Ucrânia. Esse conflito horrivelmente sangrento fez da Ucrânia o lugar mais perigoso do mundo durante a era totalitária de 1933 a 1945. Esse capítulo e a russificação que se seguiu tornaram a história da Ucrânia difícil de contar, até mesmo para os ucranianos.
Mas isso está mudando agora. Praticamente tudo que eu disse nas minhas aulas veio da obra de historiadores ucranianos. Iaroslav Hritsak, um dos melhores dentre eles, diz há décadas que a Ucrânia vai sobreviver quando uma nova geração amadurecer. Agora, isso ocorreu, não somente na minha área, mas no jornalismo, na sociedade civil, nos negócios e na política. A Ucrânia é diferente da Rússia por causa de sua história distinta, incluindo a história dos 30 anos mais recentes, desde o fim da União Soviética. Enquanto Putin empurrava seu país para a areia movediça dos mitos, os ucranianos — com seus votos, seus protestos e sua resistência — abriram caminho para chegar a uma noção mais confiante de si mesmos e de quem são.
Ao fazerem história, eles nos lembram que precisamos da história para compreendê-los melhor, para compreender melhor a guerra — e também para entender melhor a nós mesmos. Como os ucranianos, vivemos um ponto de inflexão histórica. Como eles, teremos que aprender história e desafiar os mitos para alcançar um futuro democrático.
TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
* Timothy Snyder é professor de história na Universidade Yale e autor de “The Road to Unfreedom” e “Bloodlands” Sua edição atualizada em áudio de “On Tyranny” inclui novas aulas abordando a Ucrânia.
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